Rápido comentário sobre a versão final do Marco Civil da Internet

Leitura de Pablo Ortellado da versão final do Marco Civil da Internet. "Há muitos aspectos positivos, mas dois ou três pontos que merecem atenção", observa ele.

26/08/2011
Do blog de Pablo Ortellado

1) Regulação de certas questões foi remetida para outros foros, como a Lei de Proteção de Dados Pessoais ou regulamentação da ANATEL (que está com um histórico ruim, depois de demandar dos provedores a guarda de logs por três anos):

Art. 3o A disciplina do uso da Internet no Brasil tem os seguintes princípios:
[…]
III – proteção aos dados pessoais, na forma da lei;
IV – preservação e garantia da neutralidade da rede, conforme regulamentação;
[…]
VI – responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei

2) Exclusão da possibilidade de resposta graduada (punição por suspenção da conexão da Internet causada pela violação de direitos autorais). O Marco Civil inclui dispositivo que impede a resposta graduada. Vale lembrar que, segundo documentos da embaixada americana vazados pelo Wikileaks, a resposta graduada chegou a ser discutida pelo governo brasileiro tendo sido ao final considerada inconstitucional:

Art. 7o O acesso à Internet é essencial ao exercício da cidadania e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
[…]
II – à não suspensão da conexão à Internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização;

3) Neutralidade de rede é afirmada, mas sujeita a regulamentação específica posterior. Novamente, há receio sobre o posicionamento da ANATEL (se é que será ela que fará a regulamentação):

Art. 9o O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicativo, sendo vedada qualquer discriminação ou degradação do tráfego que não decorra de requisitos técnicos necessários à prestação adequada dos serviços, conforme regulamentação.

4) Guarda de registros de conexão está mantida por um ano, embora a especificidade seja remetida para regulamentação posterior, o que, neste caso, parece muito ruim, dando margem para que se entenda como registro de conexão muito mais do que o nome de quem usou determinado IP em determinado momento. Os dados só podem ser enviados para a autoridade policial após ordem judicial, o que é muito bom para evitar abusos e é criado um mecanismo pelo qual a autoridade policial pede extensão da guarda de dados enquanto não recebe a autorização judicial. O excessivo prazo de um ano para guarda de logs de conexão é superior ao de 6 meses anteriormente proposto e mostra o poder da Polícia Federal em determinar a agenda no Ministério da Justiça:

Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet de que trata esta Lei devem atender à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
§ 1o O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar as informações que permitam a identificação do usuário mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo.
[…]
Art. 11. Na provisão de conexão à Internet, cabe ao administrador do sistema autônomo respectivo o dever de manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança,    pelo prazo de um ano, nos termos do regulamento.
§ 1o A responsabilidade pela manutenção dos registros de conexão não poderá ser transferida a terceiros.
§ 2o A autoridade policial ou administrativa poderá requerer cautelarmente a guarda de registros de conexão por prazo superior ao previsto no caput.
§ 3o Na hipótese do § 2o, a autoridade requerente terá o prazo de sessenta dias, contados a partir do requerimento, para ingressar com o pedido de autorização judicial de acesso aos registros previstos no caput.
§ 4o O provedor responsável pela guarda dos registros deverá manter sigilo em relação ao requerimento previsto no § 2o, que perderá sua eficácia caso o pedido de autorização judicial seja indeferido ou não tenha sido impetrado no prazo previsto no § 3o.

5) Provedores de serviços só serão responsabilizados por conteúdos de terceiros que utilizem seus serviços se não cumprirem ordem judicial solicitando a retirada. A solução é razoável, já que a retirada terá que passar pelo julgamento do juiz. No entanto, esse mecanismo deve ser lido em conjunto com artigo 105A da nova Lei de Direitos Autorais que, na última versão disponibilizada, cria um sistema de notificação e retirada sem autorização judicial (o detentor do direito autoral notifica o provedor de serviço alegando alguma suposta violação e se ele não retirar o conteúdo, responde solidariamente pela suposta violação). O tema é tratado da seguinte maneira no Marco Civil:

Art. 15. Salvo disposição legal em contrário, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.
Parágrafo único. A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.

No entanto, na nova Lei de Direitos Autorais (na última versão divulgada), o tema aparece assim:

Art. 105-A. Os responsáveis pela hospedagem de conteúdos na Internet poderão ser responsabilizados solidariamente, nos termos do Artigo 105, por danos decorrentes da colocação à disposição do público de obras e fonogramas por terceiros, sem autorização de seus titulares, se notificados pelo titular ofendido e não tomarem as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro de prazo razoável, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.
§ 1o. Os responsáveis pela hospedagem de conteúdos na Internet devem oferecer de forma ostensiva ao menos um canal eletrônico dedicado ao recebimento de notificações e contranotificações, sendo facultada a criação de mecanismo automatizado para atender aos procedimentos dispostos nesta Seção.
§ 2o. A notificação de que trata o caput deste artigo deverá conter, sob pena de invalidade:
I – identificação do notificante, incluindo seu nome completo, seus números de registro civil e fiscal e dados atuais para contato;
II – data e hora de envio;
III – identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material pelo notificado;
IV – descrição da relação entre o notificante e o conteúdo apontado como infringente; e
VI – justificativa jurídica para a remoção.
§ 3o. Ao tornar indisponível o acesso ao conteúdo, caberá aos responsáveis pela hospedagem de conteúdos na Internet informar o fato ao responsável pela colocação à disposição do público, comunicando-lhe o teor da notificação de remoção e fixando prazo razoável para a eliminação definitiva do conteúdo infringente.
§ 4o. Caso o responsável pelo conteúdo infringente não seja identificável ou não possa ser localizado, e desde que presentes os requisitos de validade da notificação, cabe aos responsáveis pela hospedagem de conteúdos na Internet manter o bloqueio.
§ 5o. É facultado ao responsável pela colocação à disposição do público, observados os requisitos do § 2o, contranotificar os responsáveis pela hospedagem de conteúdos na Internet, requerendo a manutenção do conteúdo e assumindo a responsabilidade exclusiva pelos eventuais danos causados a terceiros, caso em que caberá aos responsáveis pela hospedagem de conteúdos na Internet o dever de restabelecer o acesso ao conteúdo indisponibilizado e informar ao notificante o restabelecimento.
§ 6o. Qualquer outra pessoa interessada, física ou jurídica, observados os requisitos do § 2o, poderá contranotificar os responsáveis pela hospedagem de conteúdos na Internet, assumindo a responsabilidade pela manutenção do conteúdo.
§ 7o. Tanto o notificante quanto o contranotificante respondem, nos termos da lei, por informações falsas, errôneas e pelo abuso ou má-fé.
§ 8o. Os usuários que detenham poderes de moderação sobre o conteúdo de terceiros se equiparam aos responsáveis pela hospedagem de conteúdos na Internet para efeitos do disposto neste artigo.

Se esta redação vingar, podemos ter um sistema de censura prévia, pelo menos no que diz respeito a direito autoral, no qual uma alegação que venha a se mostrar sem fundamento gera a retirada de uma página sem que o usuário do serviço tenha a possibilidade de se defender.

Apesar dessas ponderações, o Marco Civil no geral é muito positivo e devemos agora lutar para que ele seja aprovado antes da aprovação da famigerada lei de crimes digitais.

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