De onde vêm as ideias?

Uma entrevista com Stephen Johnson e Kevin Kelly, para a Wired, sobre a história das invenções humanas.

01/10/2010
Da Wired

“As ideias estão no chão”, diz uma música dos Titãs. Será? Onde estão as ideias, de onde elas vêm, como os seres humanos inventam coisas, é o tema de dois livros recém-lançados nos Estados Unidos: De Onde Vêm as Boas Ideias: A História Natural da Inovação, de Stephen Johnson, e O que a Tecnologia Deseja, de Kevin Kelly.

Uma das constatações dos dois é que as ideias são redes — raramente, na história das inovações humanas, alguém descobriu algo sozinho. Os livros não foram lançados aqui no Brasil. Mas a Wired publicou, no dia 27 de setembro, uma entrevista com os dois autores. É uma delícia ler algo sobre um tema tão instigante — a gente começa a ter ideias. Por isso, aí vai a tradução livre do encontro de Johnson e Kelly.

Kevin Kelly e Steven Johnson falando sobre de onde as ideias vêm

Quando se usa a palavra “inventor”, as pessoas logo pensam em um gênio solitário trabalhando em um porão. Dois novos e ousados livros sobre a história da inovação — escritos por Steven Johnson e Kevin Kelly, ambos colaboradores da Wired há muito tempo — defendem que as grandes invenções não brotam de mentes solitárias, mas da cabeça de toda a colmeia. Em De Onde Vêm as Boas Ideias: A História Natural da Inovação, Johnson descreve sete séculos de progresso científico e tecnológico, de Gutemberg ao GPS, para mostrar que tipo de ambiente alimenta a genialidade. Ele percebe que grandes vizinhanças criativas, sejam o MIT ou Los Alamos, Nova Iorque ou a World Wide Web, são como recifes de coral agrupados, diversas colônias de criadores que interagem entre si e influenciam um ao outro.

Sete séculos são somente um piscar de olhos na linha do tempo do livro de Kelly, O que a Tecnologia Deseja, que se volta para cerca de 50 mil anos de história e olha quase tão longe quanto isso em direção ao futuro. Sua tese é igualmente abrangente: a tecnologia, acredita Kelly, pode ser vista como uma forma de vida, com objetivos próprios, na direção das quais ela tateia no longo curso de seu desenvolvimento. Esses objetivos, diz ele, são como as propensões da vida biológica, que com o tempo se diversifica, se especializa e (finalmente) se torna mais consciente.

A Wired reuniu esses dois grandes cérebros em Nova Iorque, e o resultado foi uma conversa onde se falou de tudo, desde a evolução tecnológica aos retweets e ao valor do lixo na internet.

Steven Johnson: Nós temos em comum a fascinação pela longa história das invenções simultâneas: casos em várias pessoas têm a mesma ideia quase ao mesmo tempo. O cálculo, a bateria elétrica, o telefone, o motor a vapor, o rádio — todas essas inovações revolucionárias foram achadas por muitos inventores, que trabalhavam em paralelo e não tinham conhecimento um do outro. 

Kevin Kelly
: Nossos livros são outro exemplo disso. Independente um do outro, nós chegamos às mesmas ideias e também usamos, muitas vezes, os mesmos exemplos de inovação.

Johnson: Na verdade eu hackeei seu computador! (Risos)

Kelly: É espantoso que o mito do gênio solitário tenha persistido por tanto tempo, já que a invenção simultânea é a norma, não a exceção. Os antropólogos mostraram que as mesmas invenções apareceram na pré-história em épocas mais ou menos semelhantes, mais ou menos na mesma ordem, em culturas de diferentes continentes, que não tinham como estabelecer contato umas com as outras.

Johnson: Há outro mito relacionado a esse, o de que a inovação é motivada principalmente pelo lucro, pelas pressões competitivas de uma sociedade de mercado. Se você olhar para a história, a inovação não é gerada apenas por incentivos dados às pessoas, ela surge em ambientes criativos nos quais as ideias podem se conectar.

Kelly: O músico Brian Eno inventou uma palavra maravilhosa para descrever esse fenômeno: scenius (uma mistura de cenário, ambiente, com gênio). Estamos habituados a pensar nos inventores como gênios, mas para Eno a inovação surge em cenários, cenas sociais, surge de grupos de pessoas entusiasmadas e conectadas.

Johnson: No final de meu livro, tento enxergar o fenômeno sistematicamente. Estudei cerca de 200 invenções cruciais da era pós-Gutemberg e tentei entender quantas delas vieram de empreendedores individuais ou empresas privadas e quantas vieram de redes de colaboração, que atuavam fora do mercado. Acontece que o gênio empreendedor e sozinho sempre foi uma raridade — há muito mais inovação vinda de redes abertas, não pertencentes ao mercado, do que nós tendemos a acreditar.

Kelly: Na realidade deveríamos pensar nas ideias como conexões, tanto dentro de nosso cérebros quanto entre as pessoas. As ideias não se bastam em si mesmas, são mais como ecologias ou redes. Elas andam em grupo.

Johnson: Exatamente. Este é outro exemplo fantástico de como as ideias funcionam. Quando você leu uma prova de meu livro, me escreveu em um e-mail que ele é “um livro sobre porque as ideias são redes”. E mesmo que essa expressão esteja em algum lugar do livro, eu nunca havia formatado ela dessa maneira em minha cabeça. Desde que recebi seu e-mail, quando as pessoas me perguntam sobre o livro eu uso seu conceito para explicá-lo. Você viu meu trabalho com um olhar novo e me mostrou um jeito realmente legal de expressar minha tese principal. Um jeito que me havia escapado. E é dessa maneira que as ideias revolucionárias aparecem. Elas não vêm de gênios contemplativos sentados sozinhos em seus escritórios, tentando pensar novos pensamentos.

Kelly: Isso acontece, em parte, porque ideias que dão saltos muito grandes adiante quase nunca são concretizadas — elas não são sequer valiosas. As pessoas conseguem absorver somente um avanço, um pequeno salto, de cada vez. As ideias de Gregor Mendel sobre genética, por exemplo: foram formuladas em 1865 mas ignoradas nos 35 anos seguintes, porque eram muito avançadas. Ninguém conseguiu incorporá-las. Então, quando a inteligência coletiva estava pronta e essas ideias apenas a um pequeno salto de distância, três cientistas diferentes redescobriram seu trabalho em um espaço de tempo de cerca de um ano entre um e outro.

Johnson: Charles Babbage é um outro grande caso. Sua “máquina analítica”, que ele começou a desenvolver nos anos 1830, era uma visão incrivelmente detalhada do que viria a ser o computador moderno, com uma CPU, memória RAM e por aí vai. Mas não era possível construir algo assim naquela época, e suas ideias foram redescobertas uma centena de anos depois.

Kelly: Há muitas ideias de hoje que estão à frente de seu tempo. Clonagem humana, carros autopilotados, uma lei livre de patentes. Todas estão muitos próximas tecnicamente mas muitos passos adiante em termos de cultura. Inovar significa muito mais do que você ter uma ideia, é preciso trazer todo mundo para onde sua ideia está. E isso é muito difícil se você estiver muitos passos adiante.

Johnson: O cientista Stuart Kauffman chama isso de “o adjacente possível”. Em um momento determinado na evolução — da vida, de sistemas naturais ou de sistemas culturais — há um espaço de possiblidades em torno de qualquer configuração das coisas. A mudança acontece quando você pega aquela configuração e a rearranja, de uma maneira nova. Mas há limites para o que você pode mudar em apenas um movimento.

Kelly: É por isso que as grandes invenções são aquelas que fazem o menor movimento possível para liberar a maior mudança. Essa foi a diferença entre o bem-sucedido código HTML de Tim Berners-Lee e o projeto Xanadu de Ted Nelson. Os dois tentaram ocupar o mesmo espaço — o do hipertexto em rede — mas a abordagem do Tim foi a de um meio-passo bobo, enquanto o design de Ted, anterior e mais elegante, exigia cinco passos adiante de uma vez só.

Johnson: Além disso, os passos devem ser dados na ordem certa. Você não tem como inventar a internet antes do computador digital. Isso vale para a vida também. As partes que compõem o DNA precisaram estar em seu lugar antes que a evolução pudesse produzir coisas mais complexas. Aliás, uma das ideias chave que eu recebi de você, aliás, quando li seu livro Fora de Controle, na escola, é a da continuidade entre os sistemas biológico e tecnológico.

Kelly: Nós dois escrevemos livros sobre isso, sobre a primazia do modelo evolucionário para entender o mundo. Mas em O que a Tecnologia Deseja vou um pouco mais longe e enxergo a tecnologia como uma incrível história alternativa, uma fonte diferente para nos ajudar a entender onde estamos no cosmos. Acho que a tecnologia é algo que pode dar sentido a nossas vidas, particularmente no mundo secular.

Johnson: Uma coisa que adoro em seu livro é que ao chegar ao fim você saiu das discussões sobre a tecnologia de ponta para essa espetacular visão sobre a vida e a criação humana. É muito raro um livro sobre tecnologia que seja emocionante nesse sentido — há quase um componente espiritual nele. De verdade, é uma espécie de manifesto anti-Unabomber.

Kelly: (Rindo) Isso daria uma ótima contracapa.

Johnson: Não, é sério! Ele tinha essa visão fria e mata-almas sobre a tecnologia como uma força autônoma do mal. Você também apresenta a tecnologia como uma espécie de força autônoma, que deseja algo ao longo de sua evolução, mas é uma visão mais equilibrada e em última instância é positiva. Acho isso muito mais atraente.

Kelly: Quando comecei a pensar sobre a história da tecnologia, parecia haver um consciência de que, em algum determinado tempo, havia uma porção de inovação no ar, e havia. Elas vinham ao mesmo tempo, como se quisessem acontecer. É preciso acrescentar bem rápido que não se trata de um agenciamento consciente; é uma forma inferior, algo como a maneira em que um certo organismo, ou uma bactéria, tem determinada probabilidade, determinada tendência, determinada compulsão. Mas é uma ação, de qualquer maneira.

Johnson: Fiquei particularmente atraído pela sua ideia de que a tecnologia deseja uma diversidade cada vez maior — o que eu acho que também acontece em sistemas biológicos, porque o possível adjacente se torna cada vez mais amplo a cada inovação. Como críticos da tecnologia, acho que não devemos esquecer disso, porque quando você aumenta a diversidade de um sistema, isso leva a um aumento de coisas bacanas e também de besteiras, de lixo.

Kelly: Certo. Esse é um grande tema em seu livro, também — a ideia de que os ambientes mais criativos também geram muitos fracassos.

Johnson: E desperdício de tempo e recursos. Se você não soubesse nada sobre a internet e estivesse tentando descobri-la a partir dos dados, poderia concluir que ela foi criada para transmitir spam e pornografia. Ao mesmo tempo, há mais coisas espantosas ao nosso alcance do que jamais houve, graças à internet.

Kelly: Há dez anos eu dizia que o problema da televisão era que não havia tevê ruim o bastante. Era tão caro fazer televisão que os responsáveis não deixavam que ela fosse realmente ruim — ou realmente sensacional. Mas isso foi antes do YouTube. Agora temos uma TV ótima!

Johnson: Sim.

Kelly: Para criar algo sensacional, você precisa ter os meios de inventar um monte de coisa realmente podres. Outro exemplo é o espectro. Um dos motivos pelos quais temos essa grande explosão de inovação em sistemas sem-fio neste momento é que os Estados Unidos desregulamentaram seu espectro. Antes disso, espectro era algo muito valioso para ser usado em coisas bobas. Mas quando se libera — e se diz, pronto, agora gastem isso — aí você chega ao Wi-Fi.

Johnson: Isso é outra ideia com um paralelo claramente evolucionário, certo? Se não existissem mutações genéticas, nós também não existiríamos. O erro é necessário para abrir a porta ao adjacente possível.

Kelly: No seu livro, você usa essa imagem maravilhosa dos recifes de coral como uma metáfora de onde a inovação nasce. Hoje, para você, onde estão os recifes de coral da tecnologia?

Johnson: Não tenho essa reposta. Um deles, claro, é o Twitter — não para ver o que as pessoas tomam de café da manhã, claro, mas para ver sobre o que as pessoas falam, os links para matérias e os posts que elas estão repassando.

Kelly: Os retweets.

Johnson: Isso. Mas meu segundo exemplo de um recife de inovação, e talvez o menos previsível, é o sistema universitário. Independente de a gente às vezes achar uma chatice as torres de marfim isoladas das universidades, elas continuam a ser extraordinárias locomotivas de inovação.

Kelly: No meu livro, eu cito o astrofísico Paul Davies, que se pergunta se as leis da natureza são “manipuladas a favor da vida”. Eu acho que as leis da natureza são forjadas a favor da inovação.

Johnson: A vida parece gravitar no sentido desses estados complecos onde há desordem suficiente para criar coisas novas. Há um grau de mutação alto o suficiente para permitir as inovações acontecerem, mas não tantas mutações que façam as novas gerações morrer imediatamente.

Kelly: Nesse aspecto e em muitos outros a tecnologia é uma extensão da vida. Tanto a vida quanto a tecnologia são aspectos do mesmo sistema maior.

Johnson: O que eu quero saber é o seguinte: comecei a pensar sobre a conexão entre sistemas biológicos e culturais depois que li seu primeiro livro. Mas de onde você tirou essa ideia?

Kelly: Uma das minhas grandes influências foi o livro Gödel, Escher, Bach, do Douglas Hofstadter, publicado em 1979.

Johnson: E de onde ele tirou a ideia?

Kelly: (Rindo) Ele era um gênio!

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