A Internet é copyleft (IV de V)

No quarto artigo da série escrita por Alan Lazalde para o blog espanhol Bitelia sobre os fundamentos libertários da internet, o nascimento do software livre, da FSF, da GPL e do Linux.

30/08/2010

Este é o quarto de uma série de cinco artigos escritos por Alan Lazalde para o blog espanhol Bitelia, em que ele faz uma “revisão da história da internet e das ideias libertárias que a sustentam”.

No primeiro artigo, ele fala sobre a Arpanet e a origem da internet. No segundo, sobre a criação da World Wide Web (WWW). No terceiro, sobre os algoritmos de software. Este é sobre o software livre, a licença GPL e o Linux. Veja a tradução livre abaixo:

 

Software livre: conhecimento para todos

Convencido de que software é conhecimento, Richard Stallman criou o Projeto GNU (em 1983) e logo depois a Fundação para o Software Livre (Free Software Foundation ou FSF, criada em 1985); organizações encarregadas de promover os aspectos técnicos e filosófico-legais, respectivamente, de suas ideias. Sob a proteção do projeto e da FSF nasceu uma nova geração de softwares qualificados como livres em relação ao seu valor econômico e, principalmente, social. Porque o software livre, explica a FSF, não é somente gratuito. Trata-se de um bem comum tecnológico, com o qual é possível obter e gerar conhecimento comum, ou seja, para todos.

Em inglês, a tradução de software livre é Free Software, com a dupla conotação da plavra free, que equivale a “grátis” mas também a “livre”. Mas o que torna um software “livre”, nos termos propostos por Stallman e pela FSF? O uso de uma licença criada especialmente para manter os princípios que tornam esse software um artefato teconológico livre. Essa licença é a GPL (a General Public License, ou Licença Pública Geral do Projeto GNU), publicada em 1989 e que hoje existe em várias versões.

Um software com licença GPL garante quatro liberdades, enumeradas a partir de zero, como acontece com o código-fonte:

0. A liberdade de executar o software para qualquer propósito.
1. A liberdade de estudar o software, com acesso a seus algoritmos e sua implementação.
2. A libertade de distribuir (ou seja, copiar e compartilhar) o software.
3. A libertade de melhorar o software e publicar suas versões modificadas.

O limite a cada uma dessas liberdades é um só: todas elas devem ser preservadas, intactas, para todos os usuários. Isso é muito importante no caso das modificações do software, com a intenção de redistribui-lo, porque nesta versão modificada todas as liberdades devem ser mantidas.

Todo software livre com licença GPL produz outros softwares livres GPL. Assim, não há possibilidade de voltar atrás na licença uma vez que ela tenha sido publicada com o software. É por isso que algumas pessoas dizem que a GPL é uma licença viral. Já os softwares privados podem se tornar softwares livres, em etapas ou de uma só vez, até se tornarem GPL, incluídos aí os softwares de domínio público.

A GPL também é conhecida por ser uma licença copyleft (talvez a primeira), um conceito antagônico ao copyright. Nesse sentido, a FSF afirma que os

“… desenvolvedores de software privado usam o copyright para tirar a liberdade dos usuários; nós usamos os direitos reservados por nossa licença para lhes garantir sua liberdade. Por isso invertemos o nome, trocando copyright (direitos reservados) por copyleft (direitos liberados).”

Os valores libertários por trás do copyleft oferecido pela GPL remontam, historicamente, ao princípio dos anos 70, com o texto Principia Discordia, de Greg Hill e Kerry Thornley. Ali eles promoviam o uso do termo “Kopyleft” e a frase “Todos os direitos revertidos” como paródias do copyright, ao mesmo tempo em que estimulavam seus leitores a “reimprimir o que quisessem”. Tudo isso marcado pelo grande movimento contracultural típico da época, uma herança ideológica recebido por Stallman.

É interessante observar que a FSF não defende a colocação de softwares em domínio público. Isso porque acredita que se assim o fizer o software poderá cair nas mãos de alguém ou alguma empresa que o converta em algo privado, ou seja, que “feche” sua licença. Essa privatização é contrária ao desejo original do desenvolvedor de um software GPL, que é compartilhar seu conhecimento. Nesse sentido, podemos dizer que a GPL é um tipo de licença “distribuída”, que busca o benefício de todos e elimina os benefícios exclusivamente pessoais proporcionados pelas licenças “centralizadas” baseadas em copyright.

A licença GPL é acompanhada por outras de espírito semelhante, como a Apache, a BSD, a Artistic, a MIT. Cada uma delas representa um ponto de vista diferente (filosófico e técnico) sobre o que significa fazer software livre. A licença BSD inclui uma cláusula que solicita o reconhecimento dos autores originais do software. O problema com essas licenças, argumenta Stallman, é que não impedem que interesses particulares se apropriem do software.

Com a internet como plataforma, o Projeto GNU liberou, ao longo dos anos, softwares com licenças GPL, com o objetivo de obter um sistema operacional completo (o software que administra a memória, os discos rígidos, o processador e demais recursos de um computador) totalmente livre. Apesar de haver criado praticamente todas as partes periféricas de um sistema operacional, ainda faltava seu componente central, algo conhecido como kernel ou núcleo.

Em 1991 um jovem estudante finlandês, Linus Torvalds, decidiu criar seu próprio sistema operacional em vez de se conformar com o que vinha instalado em seu computador. O que Torvalds projetou como um mero passatempo se converteu no kernel de um sistema operacional, e a peça que faltava ao Projeto GNU.

Torvalds rascunhou o kernel em poucos meses, ao mesmo tempo em que ia completando-o com o software livre distribuído pelo Projeto GNU, até chegar a um pequeno sistema operacional. Com um protótipo em operação, escreveu a um grupo de programadores na internet:

“Oi para todos… Estou fazendo um sistema operacional (livre)… (é somente um passatempo)… Toda sugestão é bem-vinda, mas não prometo implementá-la :-)”

Esse simples convite à participação atraiu o esforço e o talento de dezenas de programadores em todo o mundo. Logo o sistema operacional livre desenvolvido por Linus Torvalds começou a ser chamado de Linux dentro da crescente comunidade de usuários; em uma clara alusão ao velho sistema Unix.

Hoje podemos dizer que o Linux é consequência do trabalho de uma organização formada e defendida por legiões de voluntários, em que a participação de todos se dá em uma hierarquia praticamente horizontal, submetida somente à “ditadura benévola” de Torvalds. Essa benevolência vem do fato de que a comunidade respeita a palavra de Torvalds como definitiva no caso de controvérsias sobre a direção do projeto, que aparecem independente de todas as contribuições terem que permanecer em comunhão com as liberdades que a licença GPL (associada ao Linux) oferece.

Em torno do Linux podemos encontrar literalmente centenas de projetos de todo tipo, que vão desde os que adaptam o sistema operacional para administrar celulares até os que o otimizam para oferecer serviços de nível crítico em empresas e governos, passando pelos que instalam Linux em nuvens ou em grades de consoles de videogames para construir supercomputadores.

A que se deve a flexibilidade do Linux? Em boa medida a sua arquitetura de software, tanto quanto às liberdades inerentes ao seu licenciamento. Empresas como o Google, por exemplo, devem boa parte de sua infraestrutura de baixo custo ao uso e apoio sistemático de todo tipo de software livre. Isso inclui a instalação do Linux em dezenas de milhares de computadores do Google; algo difícilmente sustentável com esquemas de licenciamento tradicionais.

A participação incentivada pela licença GPL, além do trabalho coletivo guiado por objetivos simples e de curto prazo (uma das principais contribuições de Torvalds), converteram cada linha do código-fonte do Linux em um exemplo de evolução e refinamento técnico sem precedentes. Atualmente, o Linux é um software livre em toda a sua extensão e uma das principais bandeiras do movimento iniciado por Stallman.

Boa parte do sucesso do Linux deve-se à proteção social e legal que a GPL lhe proporciona. As contribuições que o Linux recebe de desenvolvedores de todo o mundo não são somente atraídas pela flexibilidade e pela crescente popularidade do sistema, mas também se devem ao fato de que a GPL evita que esse trabalho seja apropriado pelo interesse de poucos. Assim, o projeto Linux é dirigido e apoiado exclusivamente por seu conglomerado de usuários.