19/04/2010 – No dia 13 de abril a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei de acesso às informações públicas. O texto ainda precisa passar pelo Senado, mas sua aprovação é um sinal de que o debate democrático está avançando no país. A opinião é de Daniela Silva, uma das criadoras do Transparência Hackday, uma comunidade que pretende fomentar uma cultura de uso de informações e dados públicos por parte da sociedade.
Daniela acredita que a aprovação da lei é um bom sintoma sobre o amadurecimento da democracia brasileira porque, além de trazer avanços inéditos — como acabar com o sigilo eterno de documentos públicos e obrigar os governos a terem posturas próativas na divulgação de informações, inclusive online –, a lei afeta centros de poder importantes no país. Veja abaixo, em sua entrevista, quais são seus pontos mais importantes e porque é fundamental sua aprovação pelo Senado.
ARede – Por que é importante a aprovação, pela Câmara, da Lei de Acesso à Informação?
Daniela Silva – A aprovação de uma Lei de Acesso à Informação pela Câmara significa que o Brasil dá um importante passo na construção de um dispositivo que fortalece um dos pilares da democracia, que é a publicidade dos atos de governo. As discussões e negociações para a formulação e aprovação dessa lei contaram com a participação ativa da sociedade e vêm acontecendo há bastante tempo. Chegar ao ponto em que a lei contempla diversos pontos sensíveis, que afetam diversos centros de poder da política brasileira (daí a complexidade da discussão), e é aprovada com unanimidade na Câmara é certamente um sinal de que o debate democrático está avançando no país.
ARede – Os governos já não são obrigados a dar publicidade aos seus atos?
Daniela – A Constituição brasileira já reflete o princípio da publicidade dos atos do governo (no Art. 5 e no Art. 37). Mas as leis que regulam a aplicação desse princípio, até o momento, deixavam a desejar no sentido de não determinarem uma postura ativa de publicação de informações por parte do governo (exceto no caso das informações orçamentárias – para as quais temos a Lei de Responsabilidade Fiscal, que é exemplar internacionalmente), de ainda refletirem alguns resquícios de um estado não-democrático (como o sigilo eterno de documentos), e de não serem atualizadas em relação às novas possibilidades de comunicação e de tratamento das informações em rede. O PL 219/2003 é muito importante para mudar essa realidade.
ARede – Quais os pontos mais avançados da lei?
Daniela – A Lei de Acesso à Informação brasileira apresenta alguns avanços inéditos, mesmo em relação a legislações já bastante avançadas que servem ao mesmo propósito. Ela abrange todas as esferas de governo do país – federal, estadual e municipal – e pressupõe que os governos tenham uma postura pró-ativa e garantidamente atualizada e efetiva sobre a publicação de informações.
Pontualmente, um dos avanços mais importantes da lei é o fim do sigilo eterno de documentos públicos, o que significa que informações de governo não podem mais ser classificadas como sigilosas, em prol da segurança nacional, por tempo indeterminado. Quando um documento for classificado como sigiloso, haverá prazo para que ele volte ao domínio público e possa ser acessado pelos cidadãos.
ARede – Este foi um dos pontos mais debatidos da lei, não é?
Daniela – É importante ressaltar que, quando um país vive sob uma ideologia de segurança nacional, considera-se que informações do governo não devem chegar ao conhecimento dos cidadãos. É como se uma parcela dos cidadãos do país fossem considerados inimigos do estado. Considerando que, num sistema democrático, o poder emana dos cidadãos – ou seja, o poder do estado é o poder terceirizado pelas pessoas para o estado – não faz sentido a manutenção do sigilo, como um dispositivo da segurança nacional, por tempo indeterminado. Democracias avançadas precisam tratar o sigilo como exceção, e não como a regra. Com a aprovação da lei, esse avanço poderá se refletir na realidade brasileira.
ARede – E sobre outros dados de governo?
Daniela – Para nós, da comunidade do Transparência HackDay, os avanços mais significativos da lei são os pontos que garantem as possibilidades de uso e ressiginificação da informação pública na rede. Na nossa participação no processo de formulação do substitutivo, no final do ano passado (quando a comunidade do #thackday foi consultada sobre o texto), o que fizemos foi levantar coletivamente, na nossa lista de e-mails, pontos da lei que pudessem refletir os princípios dos dados governamentais abertos, tal como são apontados por ativistas em prol da abertura dos governos na rede de todo o mundo (http://resource.org/8_principles.html).
Achamos que, com as possibilidades garantidas pelas TICs e pela internet, faz sentido que os governos se coloquem como fornecedores de informação completa, estruturada e primária; possibilitando um uso mais efetivo dessa informação por parte da sociedade. Hoje é possível, para a sociedade, não apenas pode consumir relatórios consolidados sobre a ação dos governos, mas sim usar a informação pública primária, na rede, para construir suas próprias formas de visualização da realidade dos governos; ou então aplicativos, sites e projetos que ampliam a participação política.
Essa relação com a informação, deixando de ser intermediada pelo governo, pode ser construída não apenas por uma comunidade muito mais extensa de desenvolvedores, designers e profissionais da rede – que dominam as formas de usar e remixar a informação digital –, como, cada vez mais, por quaisquer cidadãos que tenham interesse e acesso a algumas ferramentas, que permitem trabalhar com informação estruturada sem a necessidade de conhecimento técnico específico.
Foi para garantir o acesso a esse tipo de informação – completa, primária, atualizada e em formatos abertos e legíveis por máquina – que nós atuamos, sugerindo alterações na redação do substitutivo, que foram incorporadas ao PL, agora aprovado pela câmara.
ARede – A lei aprovada incorpora a obrigação do poder público dispor suas informações eletronicamente, em formatos abertos e legíveis por computadores?
Daniela – Sim. Veja só o texto do substitutivo (não alterado pelas emendas de plenário nesses trechos) no capítulo 8, artigo 2, que regulamenta as características dos sites que deverão atender à determinação da publicação de informações por meio da internet: “os sítios que de que se trata o parágrafo 2 deverão, na forma de regulamento, atender, entre outros, os seguintes requisitos: conter ferramenta de pesquisa de conteúdo que permita o acesso à informação de forma objetiva, transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão; possibilitar a gravação de relatórios em diversos formatos eletrônicos, inclusive abertos e não-proprietários, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações; possibilitar o acesso automatizado por sistemas externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina; divulgar em detalhes os formatos utilizados para estruturação da informação; garantir a autenticidade e a integridade das informações disponíveis para acesso”, etc.
ARede – Para se tornar lei, o projeto agora precisa ser aprovado pelo Senado. Há quanto tempo ele tramita no Congresso?
Daniela – A lei tramita como PL 219 desde 2003, quando foi proposta pelo deputado Reginaldo Lopes do PT. Também em 2003 começou uma outra articulação, puxada pela Casa Civil, em prol da proposição de uma lei de Acesso a Informação Pública – que culminou na proposição do PL 5228 em 2009 (esse articulado com o Fórum de Acesso à Informação Pública, do qual participam diversas organizações da sociedade). Por tratar do mesmo assunto, os projetos foram apensados, passando a tramitar com o número do PL mais antigo (o 219/2003). A ação da comunidade Transparência HackDay se deu em novembro do ano passado, antes da apresentação do substitutivo do relator, em 23/02/2010.
ARede – Como os cidadãos podem pressionar pela sua aprovação?
Daniela – Além das boas e velhas técnicas e articulação e ativismo – potencializadas pela rede, que dá voz aos cidadãos e possibilita outras formas de agregar pessoas em torno de um interesse comum – , eu acredito que a melhor forma de pressionar pela aprovação de uma Lei de Acesso à Informação Pública, assim como por quaisquer políticas mais avançadas em relação à publicação de informações pelos governos, é usar, remixar e fazer repercutir a informação pública já disponível, deixando claro o quanto essa informação é necessária e indispensável para a vida dos cidadãos.
Essa é uma das ideias que inspirou, por exemplo, a existência do Transparência HackDay – começar a trabalhar com dados públicos na rede, mesmo sabendo que a oferta de dados públicos abertos ainda é menor do que deveria ser, raspando sites governamentais, por exemplo, para forçar os governos a entenderem que precisam se posicionar em relação a essa ação. Já conseguimos conquistar importantes espaços agindo dessa forma – a participação no processo em torno da Lei de Acesso à Informação é um deles, por exemplo. Por isso, acredito que essa seja a estratégia mais importante a ser tomada pelos cidadãos conectados em prol da aprovação da lei.