Cultura – A cultura da mobilidade

Festival lança um olhar sociológico sobre a tecnologia móvel nos países em desenvolvimento



Festival lança um olhar sociológico sobre a tecnologia móvel nos países em desenvolvimento

Leandro Quintanilha


Heather, da Universidade
da Califórnia.
Tela colorida, toques polifônicos, câmera fotográfica, acesso à
internet e, claro, a possibilidade de completar ligações e enviar
mensagens com mobilidade. Além dos avanços tecnológicos que desencadeia
desde os anos 90, a telefonia móvel transforma relações e culturas. As
implicações sociológicas do telefone celular foram o mote do Mobilefest
— Festival de Arte e Criatividade Móvel, realizado entre os dias 16 e
19 de novembro, no Sesc Avenida Paulista.

O objetivo, segundo a organização, era promover o intercâmbio entre
pesquisadores de diferentes países e incentivar a utilização criativa
da tecnologia e a produção de conteúdo móvel no Brasil. Durante o
evento, ocorreu também uma mostra sobre arte e tecnologia, com fotos
(feitas pelo celular, obviamente), cartazes e projeções.

Uma das presenças mais celebradas do evento foi a da antropóloga
norte-americana Heather Hoste, da Universidade da Califórnia, que
participou de uma grande pesquisa multidisciplinar sobre a relação do
telefone celular com o desenvolvimento de quatro países africanos, em
2003 e 2004: Gana, Índia, Jamaica e África do Sul. As conclusões da
pesquisa estão no livro “The cell fone: an antropology of
communication”
, ainda inédito no Brasil.

Heather percorreu a Jamaica em visitas domiciliares para fazer as
entrevistas sobre o uso do telefone celular na vida cotidiana. Das cem
residências que visitou, sempre em bairros pobres e periféricos, apenas
três não tinham ao menos um telefone móvel. “Era um momento de muito
entusiasmo pelo celular no país”, diz. “Muitas jamaicanas guardavam o
telefone no sutiã, como se fosse um tesouro, ou mesmo pendurado no
colar, como um pingente.” Na Jamaica, a cobrança das ligações é feita
por segundo, opção aprovada pelos usuários. “As pessoas telefonavam
umas para as outras apenas para trocar um ‘oi, tudo bem?’ — em média,
as ligações não alcançavam 20 segundos”, conta. “Para o jamaicano, o
celular proporcionava maior sensação de si mesmo no mundo.” A maioria
dos aparelhos tem capacidade para 200 nomes na agenda. Ainda assim, é
relativamente comum no país o consumo de cartões adicionais, com espaço
para outros 200 contatos.

A antropóloga elegeu alguns perfis de entrevistados para garantir mais
humanidade à pesquisa. Entre eles, figura o estudante Romeo, de 18
anos, um jovem bonito e popular. O rapaz mantinha 193 nomes na agenda,
quase todos de mulheres com quem se relacionava — ou pretendia se
relacionar. O celular era seu meio de se manter presente. Na semana em
que foi realizada a pesquisa, ele havia telefonado para dois terços dos
contatos de sua agenda.

Outro perfil apresentado por Heather, durante o Mobilefest, foi o da
desempregada Keisha, uma mãe solteira de 33 anos. Para ela, o telefone
móvel era um meio de obter empréstimos pessoais. “Os jamaicanos são
muito abertos com dinheiro”, comenta a pesquisadora. “Não é considerado
um constrangimento pedir doações para amigos.” Keisha estava decidida a
voltar a estudar — telefonou para todos os contatos de sua agenda, em
ordem alfabética, para pedir contribuições. Deu certo.



O objetivo da pesquisa foi mostrar como a telefonia móvel foi
assimilada pelas populações de baixa renda, a ponto de o celular se
tornar um elemento catalisador das culturas locais. Na Jamaica, onde a
rede fixa não atinge um terço dos domicílios, há cerca de três
aparelhos móveis por família.


SMS e além

Mestre pela Universidade de São Paulo (USP), com dissertação intitulada
“Notícias no celular: uma introdução ao tema”, Paulo Henrique Ferreira
compareceu ao Mobilefest para apresentar o Projeto Alô Cidadão,
realizado pelo Instituto Hartmann Regueira, em parceria com o Instituto
Telemar e a empresa Okto.  

O projeto, que começou em agosto, consiste na emissão de mensagens de
celular com informações sobre vagas de emprego e de cursos, atividades
comunitárias e campanhas de vacinação, entre outras, para moradores da
comunidade da Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte. “É o que
chamamos de tecnologia social.” São cerca de 12 mil telefones celulares
cadastrados. “O celular é uma mídia de bolso, chega mais próximo”, diz.

Foi durante o Mobilefest que o professor Gilson Schwartz, da Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), diretor da
Cidade do Conhecimento (da mesma universidade) lançou a Cidade Móvel,
uma central de conteúdos produzidos pela comunidade de Praia de Pipa
(RN), pelo Ponto de Cultura Flutuante (AP, PA e AM) e pelos índios
Xavante (MT). São imagens e sons que podem ser baixados pelo celular,
para dar visibilidade e gerar renda às comunidades emissoras.

“Mas não podemos restringir os recursos de mobilidade ao telefone
celular”, ressalta o Graham Brown-Martin, fundador e gerente geral da
Handheld Learning, uma consultoria e editora de softwares especializada
em tecnologia educacional. Graham trazia consigo quatro ou cinco
modelos de dispositivos, de marcas variadas, com tamanhos e formatos
parecidos com os aparelhos de jogos eletrônicos. “Carregava mais deles
comigo, mas muitos ficaram presos na alfândega”, conta o entusiasta.


“O formato dos dispositivos educacionais torna-os ainda mais passíveis
de se tornarem instrumentos do cotidiano que o computador”, diz David
Cavallo, diretor do Laboratório para o Futuro da Aprendizagem e da
organização “One Laptop per Child”, ambos vinculados ao Massachusetts
Institute of Technology (MIT). “Há 1 bilhão de crianças em idade
escolar nos países em desenvolvimento. Nosso desafio no campo da
educação é: como usar a tecnologia de forma criativa?”

David e seus colegas visitaram escolas da periferia de São Paulo para
provocar o interesse dos alunos por dispositivos educacionais. Em
grupos, crianças e adolescentes eram estimulados a desenvolver projetos
para melhorar o mundo. Idéias interessantes vieram à tona, como a
possibilidade de se converter poluição sonora em energia. “É claro que
nenhum projeto tinha embasamento técnico, mas o importante era observar
as crianças usando a tecnologia para criar seus próprios modelos de
desenvolvimento.”


Brasil móvel


• População: 187,7 milhões de habitantes



• Número de linhas móveis: 96,7 milhões



• Pré-pago: 80,77%



• Pós-pago: 19,23 %



• Acessos/100 hab: 51,62



• Número de operadoras: 8



• Tecnologias:
GSM (61,93%), CDMA (26,22%) e TDMA (11,78%), AMPS (0,07%)



Fontes: Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), outubro de 2006


www.mobilefest.org
– Mobilefest

www.sescsp.com.br – Sesc São Paulo

www.usp.br – Universidade de São Paulo

www.cidade.usp.br