Software público, cooperativas,
investimentos de prefeituras, sistemas embarcados, formação de
consórcios. O mercado do código aberto dá sinais de aquecimento.
Verônica Couto
Além das crianças passeando pela feira, de laptops XO a
tiracolo, chamaram atenção, no 8º Fórum Internacional do Software Livre
(Fisl 8.0), realizado em Porto Alegre (RS), no início de abril, os
sinais de aquecimento na economia do software livre. O evento
reuniu cerca de 6 mil participantes e, em alguns momentos, fez lembrar
as feiras de informática do século passado, com estandes cheios,
distribuição de brindes, negociações de contratos e parcerias. Com
diferenças cruciais, obviamente: em vez de executivos de gravata, uma
quantidade de jovens hackers lotou as salas do Centro de
Exposição da Fiergs para discutir técnicas de programação (linhas e
linhas de código passando nos telões), economia solidária, inclusão
digital, conhecimento compartilhado, neutralidade da rede, Matrix.
Pôde-se ver, claramente, que software livre não é sinônimo de software
de graça, mas um novo modelo de produção e de geração de conteúdo, com
distintos grupos de interesse e que avança em diferentes áreas, no
país. O governo federal lançou o Portal do Software Público Brasileiro,
repositório de sistemas desenvolvidos por instituições governamentais,
e de alto valor agregado, que poderão ser utilizados por empresas para
prestar serviços a seus clientes. Foram iniciadas várias articulações
em rede: para a criação de uma associação de cooperativas; entre
prefeituras que estão investindo em soluções livres; e até entre a TV
Globo e equipes de projetos de inclusão digital, para geração conjunta
de soluções. Grupos multinacionais também estiveram no evento para
reafirmar compromissos com os códigos abertos frente à comunidade. E,
como fez o Google, para atrair e contratar programadores.
Do Uruguai: percussão com
sucata, acionada pelo
computador
Estiveram no evento a IBM, que aplica, em média, US$ 1 bilhão/ano em software
livre, e a Sun, que desembolsou US$ 4 bilhões na área e que voltou a
anunciar a adesão integral do Java à licença GPL. De
acordo com Sady Jacques, coordenador geral do Fisl8.0, foram 5.038
inscritos (para ver as 200 palestras), 57 expositores (incluindo os 26
patrocinadores) e cerca de 800 visitantes que andaram pela feira.
A ação colaborativa é a senha para o amadurecimento das iniciativas, e o que diferencia o ecossistema do software
livre. Para desenvolver soluções multimídia abertas, por exemplo,
formou-se, durante o Fórum, uma lista de discussão (batizada de
Moviola) para trocar contribuições entre técnicos da TV Globo,
ativistas dos Pontos de Cultura, do Casa Brasil, do Tangolomango (que
faz a mostra cultural que acontece no Rio) e do II Festival Criei Tive
Como de Cultura Livre (promovido pelo Creative Commons, dentro o Fórum).
No Fisl8.0, também reuniram-se representantes de prefeituras dispostos
a resolver demandas tecnológicas e a desenvolver fornecedores locais.
Vieram de Belo Horizonte (MG), Fortaleza (CE), Itajaí (SC), Recife
(PE), Recreio (MG), Niterói e Piraí (RJ). Nas semanas seguintes ao
encontro, criaram sua própria lista de discussão online, cujo objetivo é formar um grupo para o “desenvolvimento do software livre
nas prefeituras”, segundo a convocação disparada, no início de maio,
por Luis Felipe Costa, consultor técnico da prefeitura de Recreio (MG).
O assessor de tecnologia da informação da prefeitura de Fortaleza,
Cristiano Therrien, presente ao Fórum, contou que a adminstração
municipal licitou, este ano, um plano diretor de TI para software
livre, no valor de R$ 379 mil, que será desenvolvido pela Propus, de
Porto Alegre, em parceria com a cearense Bureau Tecnologia. O projeto
terá recursos do BID e do BNDES.”Além da informatização, queremos criar
um ambiente de desenvolvimento para as empresas locais e as
cooperativas de TI”, diz Cristiano, que também vai licitar redes wireless e serviços de Voz sobre IP, uma especialidade da mesma Propus (projetos integrados com a solução livre Asterisk).
Economia solidária
A Propus é filha do Fisl: os sócios se conheceram no Fórum de 2001. No
ano passado, a empresa faturou R$ 300 mil, devendo dobrar esse
resultado em 2007. Tem clientes grandes, como a Guascor do Brasil
(geradora de energia elétrica), para a qual está integrando as unidades
de Campinas (SP), Porto Velho (RO) e Belém (PA). Fechou contratos
recentes no Canadá e nos EUA, e seu alvo, este ano, é crescer no
mercado externo. Para tanto, a empresa também faz parte do consórcio
Latinux, criado em 2006 para dar sinergia às associadas na América
Latina e que, em Porto Alegre, anunciou que vai oferecer uma
certificação profissional. Estão lá as venezuelanas Corvus e Iseit, a
Red Boricua, de Porto Rico, e a Alacos, dos EUA. E, adesão recente,
também a argentina X-Tech. Do Brasil, ainda a Solis, uma cooperativa
com sede em Lajeado (RS), e que, no Fisl8.0, envolveu-se em outro
movimento colaborativo, dessa vez reunindo cooperativas de software livre.
Desenvolvedores da Solis, e também da Colivre (de Salvador, BA), da
Cooperjovem (SP), da Sintectus (Brasília) e da Tecnolivre (Lavras,
MG) sentaram à mesa para definir estratégias de ação solidária. A
primeira medida, pós-evento, foi reformar um wiki para reunir lá
documentos, estatatutos, modelos de gestão, fazer do espaço a área onde
vão testar a colaboração na prática. “Quando houver a oportunidade para
trabalhar juntos, a gente vê como faz”, explica Junior Mulinari,
presidente da Solis, que identificou, no Fórum, uma presença maior do
público corporativo. A cooperativa negocia, com apoio da uruguaia
ImproveMit, atender à Biblioteca Nacional daquele país. E fechou, no
próprio Fisl8.0, acordo com a Cia.Tecnologia, de Brasília, para
representá-la no Rio Grande do Sul e vice-versa.
A Solis nasceu há quatro anos, mas a equipe formou-se antes disso, na
Univates, quando a universidade precisou trocar seu sistema de gestão
acadêmica e optou por um desenvolvimento em software livre. A
solução interessou outras instituições de ensino, e decidiu-se criar
uma empresa para prestar serviços com sua implantação. Os técnicos de
TI da Univates formaram a Solis, que faturou, em 2006, cerca de R$ 1
milhão (espera crescer 30% em 2007), tem um quadro de 35 colaboradores,
entre cooperados, estagiários e contratados, e é um espaço de
empreendedorismo para os alunos formados na universidade. Presta
serviços de implantação, customização de ferramentas e capacitação,
principalmente (mas não só) nas suas soluções: o Sagu – Sistema Aberto
de Gestão Unificada e a GNUteca, para gestão de bibliotecas. Entre seus
clientes, além de universidades, as Lojas Benoit, o Hospital Ana Nery,
o Laboratório de Jornalismo da Unicamp, o Ministério Público de
Rondônia, entre outros.
Há vários modelos de geração de renda apoiados no software
livre, diz Mario Teza, do Projeto Software Livre (PSL-Brasil), uma das
entidades promotoras do Fisl: desenvolvimento, customização, integração
de projetos (redes, VoIP, gestão, etc), suporte, capacitação
profissional e treinamento. No PSL-Brasil estão cadastradas 425
empresas, 1.837 profissionais e 4.379 usuários. Um salto nos negócios
nessa área, acredita Teza, virá com a mudança na lei das licitações
(8.666), em estudo, para permitir a participação dos desenvolvedores de
pequeno porte nas compras públicas.
Os laptops que estão sendo testados pelo governo federal
para o projeto Um Computador por Aluno (UCA) foram expostos no estande
do Serpro. Da esquerda para a direita: o indiano Mobilis, o XO (da ONG
OLPC) e o ClassMate, da Intel, rodando Metasys, distribuição com software livre.
Um ecossistema de software livre vinculado a pequenos
municípios, em que empreendimentos locais atendam à demanda tecnológica
das prefeituras, é o objetivo do projeto Via Digital, que já conta com
cinco experiências piloto e deve ser concluído, em sua primeira etapa,
até meados do ano. Com recursos da Finep (R$ 1,5 milhão), vai oferecer,
na web, aplicativos e bibliotecas de código para uso na administração
municipal. Participam do piloto as cidades de Patos (PB), Amparo (SP),
Santa Clara do Sul e Canela (RS), e Recreio (MG).
“Pensamos no município articulado com profissionais e universidades, criando demanda e oportunidades de negócios com software
livre, fora das grandes capitais”, explica José Eduardo De Lucca,
professor da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenador do
Via Digital. Além da UFSC, participam a federal de Campina Grande
(UFPB) e o Centro de Pesquisa Renato Archer, com apoio da ONG Softex.
Outras instituições, como a Universidade Federal de Lavras (MG), vão se
integrando ao poucos, diz o professor. O foco da iniciativa são
municípios com até 50 mil habitantes — no país, só em 200 deles a
população supera esse total. Estão previstas dez soluções para o
portal: para farmácia de posto de saúde da família, controle de frota,
controle de estoque e inventário, sistema de cadastro imobiliário, etc.
Todas com licença GPL. Com esses códigos de partida, a idéia é atrair
interessados em oferecer serviços e expandir a base. Como a OpenS, de
Florianópolis, que já aderiu. Além de estudantes, que não precisariam
sair de suas cidades.
Há semelhanças com o Portal do Software Público (veja a página 17), e
De Lucca garante que os projetos interagem. Com a diferença que, no Via
Digital, são soluções específicas para prefeituras. A pesquisa
“Software Livre nas Prefeituras Brasileiras: Novas Alternativas para a
Informatização da Administração Pública” (2005), da Softex, já havia
identificado falta de ferramentas para o segmento, e barreiras no custo
de conversão dos sistemas. No caso dos programas de gestão integrada,
acontecia de fornecedores, mesmo desenvolvendo sobre plataforma
aberta, não transferirem o código para as prefeituras. Reverter esse
quadro é uma das metas do projeto Via Digital.
A Dell, fabricante mundial de computadores, anunciou que pretende lançar notebooks e desktops com Ubuntu 7.04, ainda este mês. Embarcar o software
livre nas máquinas vendidas no varejo, ou seja, que saem de loja com o
sistema operacional instalado, configurado, capaz de reconhecer
automaticamente placas, periféricos, dispositivos multimídia, é o
grande impulso que falta para difundir o código aberto no uso pessoal.
A opinão é de Mario Teza, do Projeto Software Livre (PSL-Brasil),
uma das entidades que promove o Fisl: “Se precisar instalar um sistema
proprietário na sua máquina, o usuário comum também não vai saber como
fazer. Esse é um grande diferencial que o software proprietário
tem em relação ao livre. O sistema operacional vem na máquina,
reconhece o DVD, está configurado, é tudo automático”, diz ele.
“Alguns elementos nos apontam que há um evidente aquecimento na área do software
livre. Um deles é o fato de as vendas do programa Computador para
Todos terem chamado a atenção das empresas. Com isso, surgem cada vez
mais fabricantes que embarcam programas abertos em suas máquinas”,
completa Sady Jacques, coordenador geral do Fisl 8.0. Além da Positivo,
que faz parte do programa federal de financiamento subsidiado ao
consumidor, também embarcam a distribuição livre da Insigne, por
exemplo, fabricantes como Aiko, CCE, Kelow, Kennex, Microsens, Novadata
e Semp Toshiba. São 700 mil desktops e 60 mil portáteis vendidos com software livre da Insigne.
Na opinião de Mario Teza, o mercado de TICs abre-se cada vez mais para o software
livre, não só por razões filosóficas, mas porque as “vantagens
competitivas dessa opção tecnológica são tentadoras, se não
irresistiveis”. Segundo ele, pesquisa da Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp) indica que 70% dos associados usam Linux na
retaguarda de suas atividades.
Bem público
Durante o Fisl, aluna da E.E.
Luciana de Abreu, de Porto Alegre,
onde o XO está sendo testado
O governo federal lançou, durante o Fisl8.0, o Portal do Software
Público Brasileiro, para oferecer programas desenvolvidos em código
aberto (todos com licença GPL) por governos (federal, estaduais ou
municipais) ou universidades. Os programas poderão ser compartilhados
por qualquer pessoa, mediante cadastro no site. Seu alvo é a administração pública, evitando gastos com retrabalho, e empresas da área de software
livre, que poderão incorporar os sistemas na sua carteira de produtos e
prestar serviços aos seus usuários (suporte, implantação, treinamento,
customização).
No início de maio, havia cinco programas no Portal, embora, no Fórum,
tenha sido anunciado mais um, o Cocar – Controle Centralizado de
Administração de Rede, da Dataprev, que deve entrar no ar até agosto. O
Cocar complementa o Cacic – Coletor Automático de Configurações
Computacionais, que já está no site e a partir do qual começou a se consolidar o conceito de software
como bem público, aquele que é de interesse da sociedade e que, por
isso, pode e deve ser compartilhado. A ONG Acessibilidade.org também
vai publicar o seu DaSilva, verificador de acessibilidade de sites, no segundo semestre.
O Cacic tem uma comunidade de 2.390 membros, dos quais 135 prestadores
de serviços, sem contar desenvolvedores, usuários, etc. A malharia
Marisol, por exemplo, usuária do programa, retornou a primeira
contribuição que foi incorporada ao sistema, dentro do modelo do
desenvolvimento compartilhado.
A iniciativa do Portal é da Secretaria de Logística e Tecnologia da
Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento e da Associação
Brasileira de Entidades Estaduais de Tecnologia da Informação e
Comunicação (Abep). O próximo passo é tentar achar um marco jurídico
que estimule a expansão do acervo do portal.
Para Corinto Meffe, da SLTI, a liberação dos softwares
públicos dá acesso a soluções tecnológicas para usuários e empresas que
não teriam condições financeiras de adquirir sistemas semelhantes no
mercado. Segundo Eduardo Vale, da Dataprev, que apresentou o Cocar,
ferramenta capaz de administrar uma rede do porte da Dataprev (com 1,3
mil pontos) custaria cerca de R$ 3 milhões.
Assim começa o primeiro filme da trilogia “Matrix”, e é a síntese do que vai acontecer ao longo de toda a série: o despertar do hacker
Neo para a busca da verdade, contra o aprisionamento da ilusão criada
pelas máquinas. Foi essa também a convocação feita por Alexandre Oliva,
desenvolvedor da RedHat e integrante da Free Software Foundation Latin
America, numa das mais inspiradoras palestras do Fisl8.0. Em uma sala
lotada, com gente pelo chão, em pé, espremendo-se entre as cadeiras,
ele apresentou vídeo de 36 minutos, com imagens editadas dos filmes dos
irmãos Wachowski, combinadas a uma narração própria. O material é
excelente, e com grande poder de mobilizar jovens programadores e
ativistas da democratização tecnológica para a defesa das liberdades do
software livre. Para ver o vídeo:
www.lsd.ic.unicamp.br/~oliva/fsfla/whatisthematrix/small/ — mas com 49 Mb (muita paciência para baixar o vídeo todo).
www.softwarelivre.org – Projeto Software Livre Brasil
http://listas.cipsga.org.br/cgi-bin/mailman/listinfo/sl-prefeituras – Lista das prefeituras para desenvolvimento de software livre.
http://twiki:softwarelivre.org/bin/view/cooperativas/WebHome – Associação de cooperativas
www.propus.com.br
www.solis.coop.br