raitéqui


Alberto Caeiro e Susana Flag: seguindo!

Criminalizar os perfis falsos nas redes sociais é um desconhecimento inaceitável da liberdade lúdica,
do direito de ter um heterônimo, um pseudônimo ou de criar uma personagem.
Sergio Amadeu da Silveira


ARede nº 81 – junho de 2012

UM DOS MAIORES poetas da língua portuguesa certamente foi Fernando Pessoa. Junto com os escritos de Luís de Camões, a obra de Pessoa é considerada uma das maiores expressões da cultura portuguesa no mundo. A criatividade, a sagacidade e a sensibilidade de Fernando Pessoa não cabiam em uma única personalidade e em único escritor. Fernando Pessoa desdobrava-se em diversos heterônimos. Enquanto um pseudônimo é apenas um outro nome para aquele que escreve algo, o heterônimo representa uma personalidade poética completa. Os heterônimos mais conhecidos de Pessoa foram Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Os pesquisadores da obra de Fernando Pessoa estimam que entre pseudônimos, heterônimos e poetas mediúnicos ele criou 72 nomes.

Fernando Pessoa morreu em 1935. Ele não conheceu a internet, muito menos as redes sociais. Dificilmente seu heterônimo Alberto Caeiro não teria um concorrido perfil no Twitter. Provavelmente Caeiro postaria sua “não-filosofia” no Facebook e em outras redes. Igualmente é provável que o niilismo de Augusto de Campos despertaria o interesse de milhares de seguidores nos nanoblogues, principalmente em tempos de crise. Sem dúvida, antes mesmo das redes virtuais, muitos sempre tentaram brincar com a sua identidade, muitos tentaram criar outras vidas paralelas e imaginar outras trajetórias de sua existência. Fernando Pessoa não foi um caso isolado.

Stanislaw Ponte Preta foi o mordaz autor de Febeapá – Festival de Besteiras que Assola o País. O livro simulava notícias jornalísticas e satirizava a ditadura militar que havia abatido o país em 1964. Uma das notas mais famosas de Ponte Preta foi o relato da prisão do grego Sófocles pelos militares por causa dos pensamentos subversivos de uma de suas peças. Stanislaw escreveu obras memoráveis como Tia Zulmira e Eu, Primo Altamirando e Elas, Rosamundo e os Outros, Garoto Linha Dura, Na Terra do Crioulo Doido, entre outras. Stanislaw era o pseudônimo do genial Sérgio Porto um dos maiores escritores brasileiros do século 20, autor de A Casa Demolida e As Cariocas. Stanislaw possivelmente teria um perfil demolidor e cômico no Twitter, tal como os perfis de O Criador, Nair Belo, Dilma Bolada, Jornalismo Wando, entre outros. O uso de nomes falsos pelos autores nunca foi um caso isolado.

Susana Flag escreveu romances folhetinescos no Última Hora (de Samuel Wainer) e em O Jornal (de Assis Chateaubriand) durante as décadas de 1940 e 1950. A senhora Flag, sem dúvida, seria um enorme sucesso no Facebook e seu blog seria amplamente retuitado. Susana era o pseudônimo de um dos grandes teatrólogos brasileiros, Nélson Rodrigues. Textos memoráveis como “Meu Destino é Pecar”, “Escravas do Amor”, “Núpcias de Fogo”, “O Homem Proibido” foram escritos por Susana. O que levaria Nélson Rodrigues a usar um nome feminino? Intensões criminosas? Pensamentos impublicáveis? O uso de outra identidade é um antigo recurso dos criadores literários. Não somente deles.

Talvez o principal texto da teoria política estadunidense seja “Os Artigos Federalistas”, publicado em 1787. Alexander Hamilton convenceu James Madison e John Jay a tentar persuadir os votantes da convenção do Estado de Nova York a aprovar a nova Constituição dos Estados Unidos, elaborada na Filadélfia, naquele ano. Passaram a publicar no Independent Journal uma série de artigos assinados pelo pseudônimo coletivo Publius. “Os Artigos Federalistas” reuniram 85 textos que Thomas Jefferson chamaria de o melhor comentário jamais escrito sobre princípios de governo. O pseudônimo, mais do que proteger seus autores, permitia que os argumentos federalistas fossem analisados em si a despeito de quaisquer antipatias e simpatias por quem os escrevera.

Hamilton, Madison, Jay, Fernando Pessoa, Sérgio Porto e Nélson Rodrigues por motivos distintos usaram outros nomes para assinar seus textos. Do mesmo modo, milhares de internautas têm diversos perfis fakes no Twitter e até no Facebook, apesar do conservador Zuckerberg tentar proibi-los. Lamentavelmente, os ativistas da rede, em breve, terão que enfrentar a proposta de uma comissão de juristas convocados por José Sarney para atualizar o Código Penal. A ilibada comissão quer proibir e criminalizar o uso de perfis falsos nas redes sociais. Trata-se de um absurdo e um desconhecimento inaceitável da liberdade lúdica, do direito de ter um heterônimo, um pseudônimo ou de criar uma personagem. Parece que a comissão desconhece a história da criação literária e ignora que a internet é uma rede de controle e comunicação. Dificilmente um perfil criminoso em uma rede social não poderia ser identificado. Proibir o uso livre das redes sociais e criminalizar a criatividade é uma medida obscura.

Sergio Amadeu da Silveira é sociólogo e um pioneiro na defesa e divulgação do software livre e da inclusão digital no Brasil. Foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação.


{jcomments on}