entrevista


A tecnologia para a colaboração

Longe da crise europeia, a América Latina torna-se terreno privilegiado para abrigar ações em rede,
onde a cultura de compartilhamento tece suas teias.

Bernardete Toneto

ARede nº 81 – junho de 2012
Na Venezuela, quando os indígenas precisam construir suas casas, caçar ou pescar, fazem uma cayapa – o equivalente ao mutirão brasileiro. A tradição vem da época em que não usavam dinheiro. Depois do trabalho, se encontram para conversar sobre os erros e acertos e fazem uma festa com comida, bebida e dança. Esse modelo de compartilhamento de conhecimento e de trabalho é a proposta da Cultura Senda – www.culturasenda.com –, organização criada em 2004 e dedicada a promover cultura e tecnologia em rede. A Cultura Senda tem bases na Venezuela e na Argentina, mas atua em toda a América Latina. Presta consultoria, faz desenvolvimento de projetos, realiza formações presenciais e a distância para redes e instituições públicas e privadas.

Na usina de ideias e projetos coletivos, acontecem oficinas, cursos e seminários, virtuais e presenciais, voltados à formação para a colaboração. O objetivo é ambicioso, reconhece a engenheira e socióloga venezuelana María Claudia Rossell: levar organizações a visualizar, desenhar e gestionar projetos, serviços e cenários de trabalho de forma colaborativa. E ganha ainda mais amplitude ao ampliar seu raio quando ajuda prefeituras e governos no desenho, planejamento e implementação de políticas culturais e sociais que contemplem o trabalho em rede.
Um exemplo do trabalho desenvolvido pela Cultura Senda será apresentado no 2º Encontro Internacional Red en Movimiento (REM), que acontece em Brasília, de 23 a 26 de julho, um ano depois do primeiro encontro, realizado em Quito, no Equador. Além da organização, o evento é cogestionado pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), Ministério da Cultura (Minc) do Brasil, coletivo Fora do Eixo e a Rede Sul-americana de Dança.

Nos encontros REM nacionais, regionais e locais, acontece o Open Minga, uma releitura da ancestral fórmula de trabalho em colaboração na era da conectividade, combinada com a metodologia de forum aberto. Entre os temas que mais geram interesse está a utilização das tecnologias para a gestão de processos colaborativos.

É possível trabalhar em redes de cultura colaborativas em âmbito continental?
María Claudia Rossell
– Na América Latina estão se organizando diversos processos de rede, plataformas ponte, pontos de cultura, que se tornam referência de cultura colaborativa em âmbito mundial. O mundo capitalista vive uma crise e nesse momento a América Latina é um canteiro de conhecimento e de fórmulas inovadoras de articulação social. E, neste momento de crise, é missão das organizações da sociedade civil se unirem à iniciativa privada, aos atores públicos e gerar alternativas de trabalho colaborativo.

Como vocês definem trabalho colaborativo?
María Claudia
– O fundamento do nosso trabalho está no próprio nome: senda, caminho. Para nós, colaborar implica fazer com outros, valorizando o saber dos comuns, o vínculo entre os pares, a construção coletiva desses saberes, sob o formato de rede ou processos coletivos. Envolve a colaboração como sistema de trabalho, como modalidade para favorecer a inovação em projetos, processos e organizações, o surgimento de organizações mais inteligentes. Nossa ação está baseada na especificidade da organização ou do projeto e para onde querem ir. É necessária uma pesquisa e uma leitura diferenciada das necessidades e fatores críticos dessa organização. A partir daí, juntos, desenhamos todos os possíveis passos e ferramentas que os ajudarão, avaliando possíveis situações e alternativas, problemas e necessidades, que determinarão as estratégias. Em maio, realizamos encontros REM 2.0 na Venezuela. Em dois, três dias, criamos espaços de formação para colaboração. Fazemos palestras, mesas de discussão, exercícios junto a 15 projetos de organizações culturais e comunitárias e de instituições públicas de Maracaibo, desde rádios comunitárias e grupos de teatro até prefeituras. A ideia é pensar formas de trabalhar de forma integrada e disseminando informações. Depois, em espaços de consultoria individualizados, discutimos alternativas para cada uma dessas organizações. Isso só é possível se pensarmos a colaboração.

Esse trabalho demanda muito tempo?
María Claudia – Os encontros REM 2.0 em geral são espaços intensivos de trabalho, mas já assumimos processos mais longos, como a assessoria para criação de uma incubadora de projetos cênicos na Argentina e de desenvolvimento metodológico para a Rede Sul-americana de Dança, que demoraram meses. Sempre trabalhamos inseridos nas realidades. Um de nossos princípios de trabalho é gerar multiplicação de conhecimento, e não dependência. Atualmente impulsionamos a REM 2.0 junto à Rede Sul-americana de Dança, em um projeto de formação para a colaboração com a participação de mais de 20 cidades da América Latina. Também impulsionamos a plataforma Cultura de Rede, um espaço de articulação de redes, coletivos e organizações, tanto da sociedade civil quanto de governos ibero-americanos. Isso só é possível porque nos juntamos. E já chegamos ao segundo encontro, entre 23 a 26 de julho, em Brasília. O espaço é cogestionado pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), o Ministério da Cultura (Minc) do Brasil, a Cultura Senda, o coletivo Fora do Eixo e a Rede Sul-americana de Dança.

Mas a ideia da formação para a colaboração é relativamente antiga.
María Claudia – Justamente. A colaboração é uma ideia e uma prática antigas, que desaprendemos com o tempo. As práticas colaborativas fazem parte do DNA da América Latina. Só que em algum momento isso se perdeu. A novidade é que pensamos a rede sob a lógica P2P, descentralizada, e como um espaço de articulação que dá visibilidade aos que estão vinculados à cultura do continente. Da mesma forma, a relação com o Estado não é nova, muitos processos de redes estão em constante vinculação com o Estado. Temos de pensar como ajudar as organizações e coletivos que estão distantes dos atores públicos e não sabem se relacionar com o Estado. É por isso que estamos organizando um mapa de multiplicadores, que nos permitirá contatar diretamente, em cada país, aqueles que podem apoiar o desenvolvimento de projetos conjuntos.

Qual é o papel das tecnologias no universo da cultura em rede?
María Claudia
– Potencializa a maneira de fazer coisas juntos, em escalas e modos que antes não eram possíveis. No livro Smart Mobs: a nova revolução social, o escritor estadunidense Howard Rheingold diz que quanto mais fácil é para as pessoas formar novas associações, mais cresce o capital social dessas associações, gerando maior prosperidade para todos. É importante entender em que medida as tecnologias possibilitaram a evolução do tamanho máximo do grupo social operativo, desde as tribos até os países e as coalizões globais. Esse salto histórico e social tem uma característica comum: amplificou o modo como nós pensamos e como nos comunicamos, expandido nossa capacidade de compartilhar o que sabemos.

É por meio da ação coordenada de grupos e distintos formatos de comunicação que os processos de colaboração são possíveis. Essa coordenação permite, ao menos em forma potencial, um trabalho em múltipla escala, com impactos local, regional e global de forma simultânea. A difusão e implementação das tecnologias digitais, assim como o surgimento de coletivos inteligentes que trabalham articuladamente por todo mundo, favorecem projetos, pessoas e organizações. Essa situação gera como resultado novos mapas territoriais e mentais, novos territórios simbólicos, políticos, de ação e de cooperação.

Você acredita que, sem as tecnologias digitais, não há trabalho em rede?
María Claudia
– Os processos de rede existem na medida em que existem processos de articulação e associação entre pessoas. E isso vai além das tecnologias digitais. Mas, em um continente com as dimensões da América Latina, é difícil projetar cultura em rede sem as tecnologias. A cultura digital é uma aliada fundamental. Temos de pensar o seguinte: existem fatores como a distancia geográfica, o custo econômico que supõe estabelecer vínculos regionais, a comunicação em cenários de diversidade cultural, os requerimentos locais e regionais, o equilíbrio necessário entre autonomia local e consensos regionais que exigem o cara a cara. Só que as tecnologias digitais otimizam tempo e recursos, aproximam pessoas, geram diálogo, ampliar os alcances de intercâmbio e os processos de colaboração de forma exponencial. O ganho é evidente, claramente maior.

As organizações também reconhecem que existe esse ganho?
María Claudia
– Com certeza. Isso é evidente. Quer um exemplo? Uma companheira do curso virtual REM 2.0 comentou que temos uma debilidade: estamos muito acostumados às estruturas hierárquicas. Para ela, é necessário reconhecer que, assim como as novas tecnologias chegaram quando já eramos adultos e nos obrigam diariamente a quebrar resistências, o trabalho em rede também implica uma mudança de lógica muito grande. E dizia: tomara que as novas gerações nasçam com o chip da colaboração, que é o único necessário de verdade.

Há abertura do Estado nesse diálogo?
María Claudia – A América Latina é um grande celeiro para a ação em rede. Isso se verifica desde Simón Bolívar, com sua ideia da Grã-Colômbia, até os atuais processos de articulação regional, a Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), a União das Nações Sul-americanas (Unasul), o Mercado Comum do Sul (Mercosul), todas tentativas de trabalhar com a lógica de rede. Falta muito a percorrer? Com certeza.
Mas estamos buscando convergência para gerar incidência, ou seja, estamos juntos para disputar um lugar na sociedade. Esse é o desafio: como mudar as regras do jogo, marcado por interesses mercadológicos, e criar uma cultura participativa. O encontro Cultura de Rede, por exemplo, está sendo feito em cogestão. E apesar de o principal financiamento vir do MinC, todos tomamos as decisões conjuntamente. Ministérios e governos de outros países não operam dessa forma, impõem condições, não se abrem ao diálogo. Atuar dessa forma permite que no futuro outras organizações tenham condições de participar de trabalhos mistos, e que, por outro lado, os atores públicos se acostumem a se relacionar de outra forma com as associações da sociedade civil. Por isso dizemos que nossa ação é antecipatória, porque cria condições para ações futuras, facilita o caminho.

Você citou o apoio do MinC, no Brasil. E como é nos outros países?
María Claudia
– Essa concepção de cultura em rede foi amplamente desenvolvida pela área de planejamento participativo e gestão associada da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais na Argentina. Na Venezuela, nos últimos anos surgiram vários espaços de diálogo com o Estado. O presidente Hugo Chávez, em particular, tem sido um grande promotor da organização em rede dos movimentos sociais, movimentos de cultura, defensor da cultura digital, não apenas dentro do espaço nacional venezuelano mas no hemisfério, inclusive pensando os marcos legais. Existem muitos exemplos concretos disso: o estímulo às redes de trocas solidárias, que não apenas permitem a relação igualitária entre os atores dessa rede como rompem a lógica do mercado tradicional. Ou o trabalho da Misión Cultura, fundação ligada ao Ministério do Poder Popular para a Cultura, que inova com uma estratégia de descentralização e socialização da cultura nacional e incentiva a participação comunitária.

Cultura Senda é autosustentável?
María Claudia
– Recebemos apoio de instituições venezuelanas e da Europa, fazemos assessoria e cursos de formação, trabalhamos para governos, redes, coletivos e empresas de diversos países da América Latina. Dizem que a necessidade é a mãe das inovações e comprovamos isso na prática.

María Claudia Rossel é integrante da Cultura Senda. Engenheira e mestre em Gestão de Instituições Culturais pela Universidade de Barcelona, pesquisa gestão cultural sócio-urbana e participação cidadã nas políticas públicas.

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