Lixo solidário

Cooperativas e universidades promovem a economia solidária
com base no aproveitamento de resíduos eletroeletrônicos

ARede nº 81 – junho de 2012

“A serviço da comunidade”. Todos os dias, ao chegar ao trabalho, Walison Borges lê essa frase na entrada da Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Papelão, Aparas e Materiais Reaproveitáveis (Coopamare), no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Quando começa a separação do material da coleta seletiva, de olho no lixo eletrônico, lembra que seu trabalho é fundamental para a preservação do ambiente. E mais: sabe que, ao selecionar componentes eletrônicos e toda a parafernália tecnológica descartada, pode ganhar até cem vezes mais.

Com 27 anos, Borges só teve uma profissão: catador de lixo. Há nove anos trabalha na Coopamare, que funciona debaixo do viaduto Paulo VI, em um tradicional bairro da classe média paulistana. É um dos 80 catadores, entre cooperados e associados, que atuam diretamente na instituição, fundada em 1989 e reconhecida como modelo de reinserção social. Por ali passam toneladas de papeis, vidros, sucata de alumínio e de metal. E, fruto da transformação tecnológica e industrial, o lixo eletrônico.

No mercado de reciclagem, alguns materiais têm maior valor. Borges lembra que, de olho no cobre, “quebrava monitores de computador com marreta” e descartava o resto como lixo comum. Não sabia o risco que corria, até 2011, quando fez um curso de seleção de lixo eletrônico. Aprendeu que antigos monitores do tipo CRT, assim como celulares e televisores, são ricos em mercúrio, cádmio e principalmente em chumbo, material tóxico para quase todas as formas de vida (ver página 21). Segundo o ecólogo e consultor ambiental Felipe Andueza, “apenas algumas bactérias são imunes ao chumbo”, que provoca doenças do sistema nervoso e problemas sanguíneos.

“A gente achava que estava fazendo um bem para a natureza. Antes do curso, eu jamais imaginaria que estava  poluindo o meio ambiente”, recorda Borges, referindo-se ao curso oferecido pelo Laboratório para a Sustentabilidade (Lassu) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Agora é diferente. Ele e seus colegas usam luvas e ferramentas adequadas. E ganham melhor. Componentes bem separados valem mais no mercado. O quilo de peças tecnológicas, que antes saia por R$ 0,30, hoje pode chegar a R$ 5. Todo final de mês, o faturamento da Coopermare é dividido entre os atuais 22 cooperados, proporcionalmente ao número de horas trabalhadas.

Mestrando em Engenharia da Computação, o professor Walter Akio Goya ministra aulas sobre segurança nos cursos do Lassu, realizados em parceria com o Instituto Gea – Ética e Meio Ambiente. “Muitos catadores não tiveram educação formal. Por isso, temos o apoio de uma pedagoga para tornar as aulas mais próximas do universo deles”, explica Goya. Nas palestras, por exemplo, ele costuma comparar as funções do computador com as de uma cooperativa. “A placa mãe é o terreno e o HD, o galpão”, ilustra.

Criado em São Paulo em 1999, o Instituto Gea está voltado ao desenvolvimento social e à educação ambiental. Presta assessoria gratuita à população na implantação de programas de coleta seletiva de lixo e reciclagem. Mas segundo Ana Maria Domingues, presidente do instituto, a ação mais importante atualmente é a capacitação de catadores organizados em cooperativas, garantida por meio de um projeto selecionado em 2010 pela Petrobras. Desde janeiro de 2011, foram repassados R$ 800 mil para cursos ministrados em parceira com o Lassu, da USP, nas áreas de capacitação, aparelhamento e supervisão do trabalho de organizações da cidade de São Paulo.

A união de universidades, organizações ambientais e organizações de trabalhadores é um exemplo dos novos arranjos produtivos, nascidos no cenário da tecnologia e que geram renda e benefícios compartilhados. Nesse palco, a palavra de ordem é solidariedade. É o que acontece na relação entre o Lassu, Instituto Gea e as cooperativas de catadores. “Para fazer o curso não é necessário que a cooperativa esteja legalizada. Nosso único critério de seleção é o trabalho em grupo, em local coberto”, diz Ana Maria. São duas semanas de aulas. Por lá já passaram 135 catadores de 55 cooperativas e, na avaliação da presidente do Gea, Walison Borges foi o melhor aluno que o projeto já teve.

RECONDICIONAMENTO EM SÉRIE
Pesquisa da Organização das Nações Unidas estima que, em 2011, o mundo produziu 50 milhões de toneladas de lixo eletrônico. É o equivalente a todo o detrito gerado por uma cidade como São Paulo ao longo de oito anos. A grande pergunta que fica é: o que fazer com computadores, TVs e celulares usados? No Brasil, a resposta pode estar nos catadores que trabalham coletivamente. Pesquisa da associação Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre) revela que, no país, são reciclados 14% do lixo domiciliar. Mais de 22 milhões de brasileiros têm serviços de coleta seletiva onde vivem. E as cooperativas estão presentes em 74% desses lugares.
Um dos locais em que se pensa a cadeia produtiva da reciclagem do lixo eletrônico é o Centro de Descarte e Reuso de Resíduos de Informática (Cedir), da USP. Está instalado em um galpão de 400 metros quadrados, com acesso para carga e descarga de resíduos, área com depósito para categorização, triagem e destinação de 500 a 1 mil equipamentos por mês. “Já recebemos mais de 220 toneladas de material”, estima Neuci Bicov Frade, especialista em gestão ambiental do espaço urbano e responsável técnica do projeto.

O Cedir surgiu em 2009, para atender a uma demanda da própria universidade. Neuci lembra que, até então, a USP carecia de processos que impedissem o descarte de materiais tecnológicos na natureza, impossibilitando “seu aproveitamento na cadeia produtiva”. Hoje o recondicionamento das máquinas é prioridade, em quantidades consideráveis: 720 máquinas em 2012. Com apenas quatro técnicos, o centro consegue prolongar a vida útil de equipamentos antigos, cedidos em empréstimo a projetos sociais da universidade. Apenas quando eles voltam ao Cedir ocorre o descarte adequado de seus materiais.

Mas computadores, celulares e outros equipamentos não são apenas uma combinação de componentes químicos e físicos, conforme o pesquisador Felipe Fonseca. “São também conhecimento aplicado”, afirma. É com esse objetivo, de ampliar a visão sobre lixo eletrônico, que atua a Rede Metareciclagem, criada com o ambicioso objetivo de transformar a sociedade por meio da desconstrução da tecnologia.

O foco da Rede Metareciclagem não está no recondicionamento ou reciclagem de materiais tecnológicos. “Atuamos em projetos assim, mas não é isso o que nos mantém juntos. Nosso trabalho tem mais a ver com reciclar pessoas do que computadores”, diz Fonseca, que propõe a reflexão sobre a cultura digital por meio de troca de informações. Cerca de 500 pessoas, de todo o país, participam da iniciativa, baseada em um princípio: “Nossa ideia não é opor a tecnologia à natureza, mas integrá-la à vida das pessoas”.

Essa integração entre tecnologia e natureza acontece, de forma natural, na cooperativa Viva Bem. Formada em 2004, a cooperativa agrega 74 associados que têm uma retirada mensal em torno de R$ 1.200. É uma das poucas da cidade de São Paulo que trabalha com reciclagem de isopor. E agora começa a se especializar em lixo eletrônico, depois que dois catadores fizeram um curso de especialização na USP. Antes disso, o lixo eletrônico era tratado como reciclável comum, conta a presidente, Elma de Oliveira Miranda, que está no seu segundo mandato.
Depois da formação, os catadores da Viva Bem aprenderam a desmontar computadores e a retirar as peças que têm material contaminante. “Esses materiais dão um rendimento muito maior, mas não se acha comprador para poucas quantidades. Por isso, vamos nos juntar com outras cooperativas para vender em lotes maiores”, diz Elma.

A cooperativa, uma das mais bem estruturadas da capital paulista, será a primeira beneficiada do projeto Gira Brasil, que tem como proposta uma ação de conscientização para a coleta seletiva na cidade. “Com o projeto, esperamos que melhore a qualidade dos descartes recebidos”, avalia a presidente. Hoje, das cerca de 270 toneladas de lixo recebidas, 20% a 30% são materiais inaproveitáveis, como corpos de animais ou material hospitalar.

Ao dispor de material com maior grau de aproveitamento, Elma acredita que a cooperativa vai ter capacidade para empregar mais gente. A expectativa é chegar a cem associados até o final do ano. O que ela ainda não sabe é como acomodar essa demanda crescente na nova sede da Viva Bem, que será obrigada a se mudar, já neste mês de junho, para um terreno que tem um terço do tamanho do atual. O terreno onde está a cooperativa há oito anos, suspeito de estar contaminado pela antiga usina de compostagem que funcionava ali, será transformado em um parque público. “Por que não um parque público com uma central de triagem dentro?”, pergunta Elma. Porque o maior problema, hoje, das cooperativas, é a falta de apoio do poder público, responde Marcos Felix, consultor da SP Ambiental, empresa que atua na consultoria e na formação de cooperativas de reciclagem. “A prefeitura cede um espaço à cooperativa e larga. Não faz um acompanhamento para que se melhore a estrutura, o rendimento, para a gestão do negócio”. (L.Q. e Áurea Lopes)

VENENO TECNOLÓGICO

O desmonte de eletroeletrônicos requer cuidados específicos porque muitos componentes são perigosos para a saúde. Conheça os principais:

Chumbo

Associado a doenças do sistema nervoso e a problemas sanguíneos. Presente em computadores, celulares e televisores.
Mercúrio
Pode causar danos cerebrais e hepáticos. Presente em computadores e TVs de tela plana.
Cádmio
Além de envenenamento, pode causar doenças ósseas, renais e pulmonares. Presente em computadores e baterias de laptops.
Arsênico
Causa doenças de pele, prejudica o sistema nervoso e pode causar câncer de pulmão. Presente em celulares.
Berílio
Associado ao câncer no pulmão. Presente em computadores e celulares.
Retardantes de chamas (BRT)
Causam desordens hormonais, nervosas e reprodutivas. Presentes em componentes eletrônicos, para prevenir incêndios.
PVC
Se queimado e inalado, pode causar problemas respiratórios. Presente em fios, como revestimento isolante.

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