Uma vida nova na palma da mão
AUXILIA NA ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
ARede nº 80 – maio de 2012
A CLASSE está em silêncio. Os alunos, fones nos ouvidos e celulares nas mãos, olham fixamente para seus aparelhos. De vez em quando, apertam algumas teclas. Ao contrário do que possa parecer, não são crianças e adolescentes dispersos, jogando ou mandando torpedos com seus smartphones de última geração. São jovens e adultos da EMEI Professor Jorge Leme, da Vila Padre Anchieta, em Campinas (SP), aprendendo a ler e escrever. E com a ajuda da telefonia móvel, dentro do Palma, o Programa de Alfabetização na Língua Materna, criado pelo matemático José Luis Poli, como um método complementar aos projetos de alfabetização tradicionais. O foco é a leitura e a escrita digitais.Mais do que apropriado para os tempos atuais.
A ideia veio à mente do professor Poli há cerca de cinco anos. Um dos fundadores e proprietários da rede de ensino superior Anhanguera, ele costumava viajar pelo Brasil para fazer palestras a alunos do ensino médio. Nas viagens, aproveitava para visitar cursos de alfabetização de jovens e adultos. E percebeu que a grande maioria dos frequentadores dessas aulas tinha telefones celulares. “Vi que eles sabiam usar os números de 0 a 9, que são fáceis de memorizar. Se fosse feito um aplicativo que combinasse número, letra, som e imagem, aprenderiam a ler e a escrever. Vivemos no mundo da televisão. A sala de aula tem que refletir a realidade do dia a dia”, diz.
O projeto foi colocado em prática em 2010, quando Poli já estava à frente de seu novo empreendimento – a iES2, empresa de consultoria especializada no uso da tecnologia em projetos educacionais e sociais. Ele reuniu colegas doutores em ciências da computação e em psicologia da aprendizagem para criar um métodopedagógico com base no que havia imaginado.
No mesmo ano, foi desenvolvido um software, em tecnologia livre. A solução completa inclui um modelo de alfabetização que alia som e imagem, e um sistema de controle da aprendizagem a ser utilizado pelos professores para acompanhar a evolução dos alunos. “No começo, o aplicativo rodava em celulares comuns, com visor e tecla pequenos. Depois, foi adaptado para smartphones Nokia, que têm teclado expandido e letras com saliências. Um dedo grosso se acomoda facilmente ao aparelho, que tem ainda um visor grande, som e imagens perfeitos”, explica Poli. O método é simples. O aluno segue comandos básicos do celular. Uma voz dá as orientações sobre os passos a serem seguidos. As formas de se escrever letras e palavras são apresentadas simultaneamente com figuras e sons. As letras recém-aprendidas aparecem em destaque nas palavras apresentadas, para ajudar a fixação. Já os exercícios são, na realidade, jogos educativos, como o caça-letras e a forca. Todos os desafios são criados pelos desenvolvedores do Palma. Com o uso do fone de ouvido, o aluno evita constrangimentos em caso de erro.
O Palma não visa substituir os métodos de alfabetização tradicionais. A proposta é que, a cada aula de aproximadamente três horas, 40 a 50 minutos sejam usados para o aprendizado com o auxílio do celular. O programa tem previsão de duração de dois anos. O primeiro é dedicado ao português, com conteúdos
de alfabetização, ampliação do vocabulário e compreensão de texto. No segundo, é a vez de os alunos aprenderem matemática e ciências – esta, com ênfase em meio ambiente, saúde e qualidade de vida.
APRENDIZAGEM AMIGÁVEL
O universo atendido pelo Palma não foge do padrão dos cursos de alfabetização tradicionais: 67% são mulheres – donas de casa, faxineiras, domésticas, costureiras etc. Entre os homens, há serventes de pedreiro, pintores, eletricistas e até motoristas, que trabalham mesmo sem ter carteira de habilitação, documento não concedido a analfabetos.
Poli chama atenção para o fato de que o uso da tecnologia em sala de aula não encarece os cursos de alfabetização: “Um smartphone custa R$ 200. Tem capacidade de 2 GB de memória e de 50 MB para o processamento de um aplicativo, suficientes para o Palma”. A dificuldade está em fazer com que os alunos se familiarizem com aparelhos mais avançados. Mas, de acordo com o observado nas experiências já implantadas, isso não chega a ser um problema.
PROFESSORES TREINADOS
Também foi prioridade dos desenvolvedores do programa garantir uma boa receptividade por parte dos professores. Eles passam por oito horas de treinamento, período em que aprendem a utilizar o aparelho, o software de alfabetização digital e o sistema de gestão da aprendizagem. Por esse sistema, que pode ser aberto em qualquer computador, é possível acompanhar individualmente cada aluno e saber quantas vezes e em que momento um ou outro acertou ou errou determinado exercício. Toda vez que o estudante termina uma atividade, uma voz pede a ele que envie um torpedo. Esse torpedo é encaminhado diretamente ao sistema de gestão. Dessa forma, o professor pode acelerar ou retardar o processo de aprendizagem – baixando aplicativos mais avançados para ser instalados nos smartphones ou repetindo as lições.
Em abril de 2011, o primeiro teste com o Palma foi iniciado em três cidades do interior paulista, em parceria com as prefeituras: Itatiba, Campinas e Pirassununga. Por ser experimental, o programa foi implementado em apenas uma classe de cada município, totalizando 60 alunos. Segundo Poli, os resultados não demoraram a aparecer. “A frequência aumentou e a taxa de evasão diminuiu. A cada fim de semestre, é preciso fazer uma nova matrícula. Normalmente, a taxa de evasão é de 20%. Com os smartphones, ficou em menos de 5%”, garante. A retenção da aprendizagem também melhorou, primeiro por causa do som das palavras
associado à imagem; segundo, pelo fato de os alunos poderem levar os celulares para casa, o que lhes permite fazer exercícios quando e quantas vezes desejarem.A segunda fase do programa, ainda em 2011, chegou a mais duas cidades paulistas: Araras e Franca, nesta última, atendendo crianças e jovens autistas e com Síndrome de Down. Também foram incluídas mais cinco classes em Campinas. Foi o caso da EMEI Professor Jorge Leme, do bairro Vila Padre Anchieta, onde trabalha a professora Raquel Pilon, de 34 anos. Assim como a maioria dos alunos, Raquel tinha um celular comum. “Participei de reuniões para aprender a mexer no smartphone. Foi fácil, porque já estava acostumada a usar a internet e baixar arquivos.”
O dia a dia com os alunos, no entanto, foi muito trabalhoso no início. A professora conta que teve de explicar “minuciosamente” como mexer no equipamento. Além disso, os alunos tinham dificuldade para entender as atividades propostas. “Pensei: se for até o fim desse jeito, não vou aguentar’. Às vezes, eles apertavam algum botão errado e eu não sabia resolver”, lembra, rindo. Mais de seis meses depois, a realidade é bem diferente. “Agora, alguns deles sabem mexer mais do que eu”, diz Raquel.
O uso dos smartphones diminuiu os índices de evasão e o aumento da frequência em sala de aula. “Eles tentam faltar menos, se preocupam em não deixar de fazer a atividade. Tornaram-se mais responsáveis”, avalia a professora. Mas o principal diferencial em relação às aulas tradicionais, segundo ela, é que os alunos estudam por mais tempo.
É exatamente isso que acontece com Nilma Maria Gonçalves de Sousa, uma das alunas de Raquel. A dona de casa de 42 anos tinha medo até de pegar ônibus. Não conseguia ler o letreiro do coletivo. Nem o número podia decifrar. Moradora da Vila Padre Anchieta, nunca ia ao centro de Campinas sem um dos dois filhos
para ajudá-la. Tinha medo de se perder. Hoje, Nilma não precisa mais de auxílio. Quando está com dúvida do caminho, lê as placas das ruas.
No supermercado ou na feira, tampouco precisa da ajuda. Consegue entender os preços dos produtos. Não se sente mais envergonhada. “Aprendi a ler muito mais com o celular do que com a lousa. Antes não conseguia reter o que era passado nas aulas. O telefone ajuda a memorizar, pois eu levo para casa. É como se um
professor estivesse do nosso lado, falando que tem que fazer de novo”, conta. Como o método Palma foca na leitura e na escrita digital, a dona de casa aprendeu bem a letra de forma. Ainda não consegue entender direito a letra cursiva, mas espera superar esse obstáculo em breve: “Meu sonho é ler sem embaraço.”
Antônio Sabino de Sousa, colega de Nilma, quase chegou lá. Aos 62 anos, trabalha no departamento de reposição de uma loja de material de construção. Sai de casa às cinco da manhã. No ônibus que o leva para o serviço, liga seu smartphone, põe um fone de ouvido e faz os exercícios. Às quatro da tarde, quando
volta para casa, repete o ritual.
“O celular facilitou bem. Conheci, aprendi as letras, consoantes, maiúsculas, me agrada muito”. Antes de aprender a ler, Antônio “era cego”, como ele se refere ao antigo analfabetismo. É que uma das tarefas diárias do seu trabalho é trocar as etiquetas dos produtos em estoque na loja. Há alguns meses, olhava aquele monte de letras e nada entendia. “Tinha que pedir ajuda. Hoje, troco 100, 150 etiquetas por dia, e sei identificar qual é o produto”, explica.
Um grande progresso para quem já quis desistir de aprender a ler por acreditar que nunca conseguiria. Com o celular, a motivação aumentou tanto que a professora chegou a pedir que ele diminuísse o ritmo, pois estava bastante adiantado em relação à turma.
O sucesso do Palma estimulou o professor Poli a procurar a Vivo, a Fundação Telefônica e a Nokia. Todas gostaram do projeto e toparam patrociná-lo. A Nokia doou 150 smartphones e o programa foi implementado em mais duas escolas de Santos, mais uma em Itatiba e outras três em Franca. Hoje, o programa atende 260
alunos. Mas Poli ainda não está satisfeito. Propôs ao governo federal a aplicação do Palma no atendimento a mais cem mil alunos. Ao mesmo tempo, busca patrocínio de mais empresas.
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