O Campus Party, megaevento de
entretenimento eletrônico em rede, reuniu em Valência (Espanha), quase
8 mil participantes, que tiveram acesso à internet de 5 Gbps. Em 2008,
será realizado no Brasil. Lia Ribeiro Dias
Nas enormes bancadas, com computadores que cada um trouxe de casa, os participantes passaram todo o tempo conectados, jogando, desenvolvendo programas e baixando arquivos.
Que tal acampar em um grande salão, com capacidade para 1,5 mil
barracas, e passar uma semana em frente ao computador, com acesso à
internet em altíssima velocidade, participando de competições, jogando,
desenvolvendo programas, assistindo a oficinas sobre temas de seu
interesse, baixando aquele filme que você levaria dias para descarregar
em casa, se tivesse sorte, e, de quebra, fazendo muitos amigos? Esse é
o cenário do Campus Party, o maior evento de entretenimento eletrônico
em rede da Espanha, que se realizou de 23 a 29 de julho, em Valência, e
que os brasileiros vão ter oportunidade de conhecer no próximo ano. Em
fevereiro, de 11 a 17, será realizado em São Paulo, no prédio da
Bienal, no Ibirapuera, o Campus Party Brasil. Preparem-se.
Em sua 11ª edição, o Campus Party reuniu 7.860 participantes,
principalmente jovens entre 19 e 25 anos, um público majoritariamente
masculino (as mulheres eram só 12%), aficcionado pela comunicação em
rede e por jogos. O que leva tantos jovens a gastarem parte das férias
de verão praticamente confinados em um grande centro de convenções,
muitos deles dormindo no próprio local (este ano, eram 2,4 mil
barracas, em dois pavilhões de 12,8 mil metros quadrados cada), comendo
no grande refeitório montado para fornecer 7,5 mil refeições por dia?
Não há dúvida de que a largura da banda larga oferecida — este ano, a
Telefônica, há seis anos patrocinadora do evento, colocou à disposição
de cada um 5 gigabits por segundo de velocidade de saída — é um grande
atrativo. Na avaliação de alguns, é o maior. Muitos participantes
aproveitam a oportunidade única para queimar pilhas de CDs com os
filmes e músicas que há muito queriam ter em seu banco de dados.
O evento é espanhol. Só 2% dos
inscritos vieram de outos países.
Paco Ragageles, um dos criadores da E3 Futura, a entidade que organiza
o evento, não concorda que a largura da banda seja o fator
determinante. Em sua avaliação, a chave do sucesso do Campus Party é
reunir entretenimento e comunicação em rede, criando oportunidade para
pessoas que só se conhecem virtualmente possam se encontrar
pessoalmente e compartilhar a sua paixão. Muitos depoimentos confirmam
que fazer amigos e encontrar amigos faz parte do que motiva os
participantes a comparecerem ao Campus Party, ao lado da paixão pelos
jogos (em quase todas as telas dos 5,5 mil computadores distribuídos
por dois pavilhões no 3º andar da Feria Valencia, exatamente do mesmo
tamanho daqueles onde estão instaladas as barracas, há imagens de
jogos). “Gosto muito de encontrar pessoas que compartilham a mesma
paixão”, diz Francisco Javier, de 23 anos, que conseguiu tirar uma
semana de férias em seu trabalho, onde é eletricista, para viver uma
semana conectado. Como a namorada não gosta de computadores, nem de
jogos, Javier trouxe uma amiga, também aficcionada, que, como ele, vive
em Alicante. Juan Pelechano, 27 anos, dono de uma loja de informática,
mesmo morando em Valência, preferiu acampar junto com os demais campuseros: “É mais divertido e melhor para fazer amigos.”
A tribo dos apaixonados por comunicação em rede tem hábitos próprios.
Parte prefere avançar noite a dentro à frente do computador, quando a
temperatura está mais amena, e dormir pela manhã. Durante a madrugada,
há muitos pelo salão onde estão instalados os computadores — cada
participante traz a sua máquina e a maioria prefere os desktops.
E quando o cansaço é muito, um cochilo nas almofadas da sala de
palestras, montada num canto do imenso espaço, que só volta a ficar com
as bancadas lotadas no final da tarde.
Tropicalização
Os jogos são os líderes na
preferência dos participantes
A edição brasileira do Campus Party vai ter formato semelhante. “A
estrutura será a mesma, com alguma tropicalização”, informa Paco
Ragageles, explicando que escolheu o Brasil como a porta de
internacionalização de seu projeto porque a cultura do país tem muita
proximidade com o conceito do evento. “Os brasileiros têm muita
facilidade em incorporar as novas tecnologias, desenvolveram grandes
redes sociais na internet e têm uma das maiores comunidades de software
livre do mundo”, enumera. Ragageles admite que a E3 Futura examina a
possibilidade de levar o evento para outros países, tanto da Europa
como da América Latina. Mas só depois da experiência no Brasil.
Acampamento com 3,5 mil barracas,
na edição 2007.
A tropicalização de que fala Ragageles ainda está sendo avaliada pela
equipe de Marcelo d’Elia Branco, um dos estimuladores do
desenvolvimento do software
livre no Brasil e presidente da Campus Party Brasil (veja a página 36).
Já está definido que o evento terá uma área aberta ao público, de
acesso gratuito, para treinamento básico no acesso e navegação pela
rede. A Prefeitura de São Paulo, um dos patrocinadores do encontro,
estuda montar atividades para professores da rede municipal. E é
possível que a organização contemple a participação, por meio de
bolsas, de jovens de telecentros, infocentros e unidades de comunicação
comunitária de diferentes pontos do país. “A nossa realidade é muito
diferente daquela da Espanha. E o evento tem que contemplar o lado
social”, diz Marcelo. Esse também é o objetivo da Telefónica, segundo
Eduardo Navarro, diretor de estratégia de negócios da unidade fixa da
operadora espanhola. “Queremos que jovens de diferentes estratos
sociais possam conviver no Campus Party e compartilhar conhecimento.”
Ainda não se sabe como isso será feito, já que o evento, que este ano
custou 6,8 milhões de euros — o custo do Campus Party Brasil será da
ordem de R$ 10 milhões — é em parte financiado pelos participantes.
Este ano, a taxa de inscrição foi de 92 euros (R$ 237,00), com
impostos, sem alimentação, e quase o dobro com refeição incluída. No
Brasil, cada participante pagará R$ 100,00, com alimentação.
A trinca de brasileiros, desenvolvedores
em software livre: da esq. para a direita,
Valessio, Alexandre e Humberto.
Mas o desafio que se coloca para os organizadores não é só esse. Outra
questão que vai exigir a definição de um estratégia particular é a dos
computadores. Na Espanha, cada um leva de casa sua máquina, viaja
carregando gabinete e monitor no trem, no ônibus. No Brasil, não existe
essa prática e, além do inusitado, a questão da segurança preocupa.
Segundo a organização do evento, em 11 anos foram poucos os casos de
roubo de computadores (cada máquina portátil recebe um número de
identificação correspondente ao do documento de seu proprietário, e é
feita a checagem na entrada e saída dos pavilhões e na saída do
evento). No Brasil, mesmo em eventos fechados, com um número muito
menor de pessoas, os roubos ocorrem, sem falar da falta de segurança
nas ruas. “Essa é uma questão delicada e vamos buscar o caminho mais
seguro”, diz Marcelo.
A tropicalização pode passar também, admitem integrantes do comitê de
conteúdo, que será coordenado pelo sociólogo Sergio Amadeu, por um
aumento da grade de atividades, sejam elas oficinas ou palestras.
Embora o evento espanhol ofereça essas atividades, são em número muito
reduzido. E, mesmo assim, não é grande o número de participantes. “Há
uma diferença cultural que tem de ser avaliada. Aqui, os jovens passam
quase todo o tempo em frente ao monitor, jogando em rede, participando
das competições. E isso basta. Pelo comportamento dos brasileiros,
mesmo levando em conta a grande atração dos jogos, certamente vão
precisar de mais movimento”, imagina Sergio.
Albert Kubo, um dos robôs
humanóides mais desenvolvidos
do mundo, foi uma das atrações
do Campus Party 2007.
Essa diferença entre os jovens europeus e os brasileiros, na avaliação
de Claudio Prado, especialista em mídias digitais e assessor do
Ministério da Cultura, que integrou a delegação de convidados e
jornalistas, vai determinar, em última instância, os contornos do
Campus Party no Brasil. “O que vemos aqui é importante porque é uma
expressão da cultura em rede, e de como os jovens europeus se comportam
frente a isso. Mas é muito diferente do que estamos fazendo no Brasil.
Os jovens que estão aqui são mais passivos. Vemos pouca gente falando,
produzindo, disponibilizando na rede sua produção. O movimento é muito
mais de baixar arquivos do que subir conteúdo para a rede, muito mais
jogar do que desenvolver. No Brasil, pela própria criatividade do
brasileiro, pela facilidade com que os jovens transitam pela internet e
pelo que temos visto nos Pontos de Cultura, em termos de produção,
haverá muito mais troca.”
Esse comportamento surpreendeu Valessio Brito, estudante de 22 anos, da Cooperativa de Software
Livre da Bahia, um dos que foram escolhidos em concurso para participar
do evento. Valessio e seus companheiros de viagem — Humberto Galiza, 20
anos, da Faculdade de Ciências da Computação da UFBa, e Alexandre
Amoedo, 23 anos, do grupo de pesquisa de desenvolvimento de jogos da
mesma faculdade — buscaram, entre os participantes da área de software
livre, desenvolvedores para trocar experiência. “Foi decepcionante.
Encontramos poucas duplas de desenvolvedores. A maioria estava só
jogando”, disse o falante baiano. “Mas é a cultura deles”, arrematou,
preocupado em animar Amoedo a prosseguir na programação do jogo “Robot
Wars”, para que conseguissem acabar no tempo previsto — 72 horas. Eles
participavam de uma das muitas competições do evento.
Do ponto de vista visual, a área mais atraente dos pavilhões do Campus Party era a dedicada aos amantes do modding,
ou seja, da personalização de suas máquinas. Era possível ver desde um
castelo medieval, réplica de um de Validolid, a uma nave em acrílico,
passando por um carro fazendo as vezes de gabinete do micro. Sem falar
no navio inspirado no filme “Piratas do Caribe”. A motivação dos
autores varia. Em muitos casos é puramente estética, como a de
Francisco Javier, de 23 anos, que trocou a caixa do gabinete por outra
com lateral de acrílico. A troca, além de permitir substituir o disco
rígido por outro mais potente, expôs suas habilidades de eletricista.
Luzes de neon foram colocadas dentro do novo gabinete, que ganhou um
piso de espelho.
Como também não é especialista em informática, Jesus Lopes Porta, 45
anos, que participou do Campus Party acompanhado do filho adolescente,
dedica-se basicamente a criar novos gabinetes, sem mexer nos
componentes eletrônicos. Sua experiência como construtor já lhe
garantiu um prêmio no ano passado, que esperava conquistar de novo com
sua nave espacial de acrílico, refrigerada a água. Muitos combinam um design
personalizado com a turbinação da máquina, em boa parte feita não só
por processadores mais potentes mas com outro tipo refrigeração: água,
azeite de oliva, hidrogênio.
O clã PLP, que foi constituído a partir de um encontro em Campus Party
e já registra mais de 30 integrantes de várias partes da Espanha,
apresentou este ano um castelo medieval, em cuja estrutura estão oito
computadores interligados por uma rede interna, refrigerados por um
depósito de água de 250 litros. “Esse tipo de refrigeração permite
aumentar o rendimento da máquina, porque o computador esquenta menos”,
relata Alejandro Espeso, 22 anos, de Múrcia, estudante de engenharia
agrícola e um dos seis integrantes do projeto presentes ao Campus
Party. Cada um dos computadores da rede tem cerca de 1 Terabyte de
capacidade. Construir o castelo, projeto que contou com o apoio da
Intel, consumiu quatro meses. O grupo já é veterano no evento e na
competição de modding
e, logo mais, vai começar a discutir o que apresentar em 2008. Por que
ir ao Campus Party? “Porque é a maior Lan Party da Espanha”, responde
Alejandro.
O modding é uma das seções em que está dividido o evento, ao lado das de jogos, robótica, astronomia, software
livre e simulação, que também deverão estar presentes no Campus Party
Brasil. E, em cada área, além de atividades específicas como oficinas e
competições, uma grande atração internacional. Neste ano, os
participantes puderam conhecer o robô Albert Kubo e assistir à
apresentação de seu criador, o coreano Jun Ho Oh, diretor do Centro de
Investigação de Robótica Humanóide do Instituto de Ciências e
Tecnologia da Coréia. Na lista de atrações, ganhou espaço o software
livre: além de John “Maddog” Hall, presidente da Linux International,
Mark Shuttleworth, fundador do projeto Ubuntu, e o brasileiro Marcelo
Tossatti, conhecido por ter sido responsável pela manutenção do núcleo
2.4 do Linux com apenas 17 anos. Hoje, Tossatti trabalha na Red Hat e
participa do desenvolvimento de interfaces do projeto OLPC – One Laptop
per Child.