Produtora de vídeo comunitária registra a luta pela terra em Conceição
das Crioulas, um dos primeiros territórios de remanescentes de
quilombos reconhecidos no Brasil.
Patrícia Cornils
Palmeira bem comum no
sertão, o catulé fornece
uma amêndoa de onde
se extrai óleo. A sua
palha é aproveitada no
artesanato,
transformando-se em
chapéus, cestas,
bolsas, etc.
Conceição das Crioulas é uma comunidade do sertão de Pernambuco. A 550
quilômetros de Recife e 52 de Salgueiro, esse povoado, de cerca de 4
mil pessoas, majoritariamente negras, é conhecido no Brasil e no
exterior por sua luta pelo reconhecimento étnico e pelo direito à
terra. São três léguas, arrendadas por seis negras livres que fundaram
o povoado, no início do século XIX, e pagas com a produção e fiação de
algodão. Em 1802, as crioulas receberam a escritura com o carimbo da
Torre, feita por José Delgado, escrivão do cartório de Flores. Ao longo
dos anos, no entanto, essas léguas foram ocupadas por fazendeiros e
posseiros. Uma das primeiras áreas a serem reconhecidas como
remanescente de quilombos no Brasil, a comunidade é formada por 16
povoados. Os descendentes dos quilombolas se organizam em torno da
Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC).
A associação foi criada no ano 2000 para receber os títulos das terras
de Conceição das Crioulas, mas, até hoje, não foi feito o censo das
áreas que devem ser reintegradas e nem a “desintrusão” — retirada dos
ocupantes ilegais de cerca de dois terços de seu território. Grande
parte da visibilidade que a história de Conceição da Crioulas tem fora
da comunidade deve-se às iniciativas da AQCC. Um exemplo é a Crioulas
Vídeo, produtora formada na associação, a partir de oficina realizada
com um grupo da Universidade de Belas Artes de Portugal, em 2005. Seis
jovens da comunidade participaram e, depois de acabado o trabalho, os
equipamentos — um computador Macintosh, uma filmadora e uma placa de
vídeo — ficaram lá. “Foi uma peleja para começar a usar de verdade o
programa de edição, um Final Cut Pro, porque era todo em inglês”, diz
Martinho Maciel, um dos participantes do Crioulas Vídeo.
Em Conceição, as mulheres
que trabalham com o barro
são conhecidas como
“louceiras”
Hoje, o acervo da Crioulas Vídeo tem 26 filmes, entre registros
cotidianos (aniversários, casamentos) e seis documentários. Entre eles,
há um video de 11 minutos sobre o açude da cidade, um filme sobre a
Serra das Princesas e um vídeo de 30 minutos que acompanha a construção
de uma adutora no município. Esse foi feito profissionalmente, para o
governo do Estado, em parceria com TV Viva, de Recife. Com os R$ 4 mil
que recebeu pelo registro da construção da adutora, a equipe comprou
uma nova câmera, a quarta que passa por Crioulas desde 2005. Uma VCR
720, “semiprofissional, a melhorzinha que já tivemos”.
Nove pessoas, entre 17 e 27 anos, trabalham voluntariamente no Crioulas
Vídeo. Agora, essa equipe está promovendo oficinas de audiovisual em
outros quilombos. Além de ter se tornado um projeto de vida e
profissional para esses jovens, diz Martinho, a produtora tem papel
fundamental no movimento pela terra. Em 2006, os quilombolas decidiram
ocupar a Fazenda Velha, para pressionar as autoridades pela
regularização de seu território. A ocupação foi filmada pela Crioulas
Vídeo e esse material, sem qualquer edição, serviu de documento para a
comunidade se defender das acusações do fazendeiro de que tinham
arrombado imóveis e espancado pessoas. “Os policiais viram como foi, de
verdade, e voltaram com a cara limpa”, conta Martinho.
O caroá (no alto)
é uma bromélia
que fornece
uma fibra para
tecelagem.
A mais famosa produção da Crioulas Vídeo, no entanto, é o “Açude de
Conceição”, documentário de 11 minutos sobre o açude que abastece a
comunidade — não é um assunto qualquer, porque trata-se de uma pequena
cidade no sertão, onde a água é rara e preciosa. “Açude de Conceição”
foi resultado de um processo de oficinas de roteiro e direção,
realizadas em janeiro deste ano, por estudantes de cinema da PUC-RJ, em
parceria com a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas — AQCC e
o Centro de Cultura Luiz Freire. E foi um dos 38 filmes selecionados
para o Festival Audiovisual Visões Periféricas 2007, na Mostra
Competitiva. O festival recebeu mais de 185 inscrições de produções
audiovisuais da periferia brasileira, e aconteceu entre os dias 6 a 17
de junho, no Rio de Janeiro.
“O vídeo mostra a importância do açude para seus habitantes, com
relatos dos moradores sobre as diversas possibilidades do uso da água.
Discute a questão do banho no açude, que aparece na visão dos jovens
como única forma de lazer e de espantar o calor do sertão e, na dos
mais velhos, como algo negativo por atrapalhar o tratamento da água que
é retirada do açude para o uso da comunidade. Por trás dessa discussão
pontual, aparecem os aspectos ambientais, culturais, sociais e
políticos do açude para a comunidade étnica”, diz o roteiro do festival.
O principal objetivo da AQCC é conquistar definitivamente a terra para
a comunidade. Mas não é o único. A entidade se propõe, também, a
promover o desenvolvimento sustentado. Uma de suas iniciativas é a
organização dos artesãos de Crioulas e a formação de uma rede de
parceiros para escoar sua produção. O artesanato está, como tudo o que
a AQCC faz, relacionado com a preservação da memória e da identidade
histórica — faz centenas de anos que o povo de Conceição produz
utensílios com matérias-primas como o barro vermelho, o caroá (fibra
parecida com o sisal), algodão e a palha do catolé.