Entrevista

O Brasil tem recursos para uma revolução

ARede nº41 Outubro de 2008 – Está tudo aqui, na mão. Basta saber (e querer) fazer. Esta é a avaliação da economista Tânia Bacelar de Araújo, professora da Universidade Federal de Pernambuco, sobre o que seria preciso para tornar o Brasil um país mais justo. Ela olha com simpatia os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada em setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontando o aumento do emprego formal, pois isso “significa que as pessoas empregadas terão o amparo da legislação trabalhista e social”. Mas alerta: é preciso estar atento à qualidade dos empregos que estão sendo criados.

Sua preocupação maior é a redução das desigualdades: “Não se cresce primeiro, para distribuir depois. Se distribui enquanto se cresce”. Para isso, adverte, temos de fazer boas escolhas: usar as tecnologias, não as mais modernas, mas as mais adequadas; investir mais e melhor em educação, aumentando o tempo das crianças e dos adolescentes na escola.

Nesta entrevista à revista ARede, Tânia lembra, ainda, que, além do governo, todos os atores sociais devem dar sua contribuição: “As empresas são agentes do desenvolvimento social. A sociedade civil organizada e os movimentos populares são fundamentais”.
ARede •
A última PNAD constatou o aumento da ocupação e do emprego formal. Isso indica que o Brasil está na rota certa para o crescimento?
Tânia • Em parte, sim. Crescimento econômico estimula a geração de novos empregos e se eles são formais, significa que as pessoas empregadas terão o amparo da legislação trabalhista e social do país. Mas é preciso estar atento à qualidade do emprego criado: seu nível de remuneração, as condições de trabalho oferecidas aos trabalhadores etc. Os empregos formais novos que vêm sendo criados não têm sido com salários elevados. Isso é um problema.  

ARede • Segundo a mesma pesquisa, a região Centro-Oeste teve a maior renda média, possivelmente devido à expansão do agronegócio. É a região onde também apareceu a maior concentração de renda. A senhora pode comentar essa relação entre crescimento econômico e redução das desigualdades sociais?
Tânia •
Cabem duas observações. Primeiro: as análises no Centro-Oeste têm que ser feitas considerando o impacto do Distrito Federal nas médias da região. Brasília distorce a média regional, puxando-a para cima. Se a concentração de renda na região é calculada com Brasília, o valor elevado encontrado estará impactado pelos salários altos pagos a importantes segmentos dos empregados naquela cidade. Segunda observação: o agronegócio praticado na região tende a ser pouco empregador, pelo uso mais intensivo de terras e de capital que de trabalho. O resultado é que a renda gerada termina apropriada por poucos. Ser uma região dinâmica é importante. Mais importante é abrigar atividades que difundam seus efeitos positivos na sociedade regional, que distribuam a renda gerada. O importante não é a taxa de crescimento: é a distribuição dos frutos do crescimento. Não se cresce primeiro, para distribuir depois: distribui-se enquanto se cresce.

ARede • A senhora é uma estudiosa da diversidade regional brasileira. Quais são as vocações regionais brasileiras e como elas estão sendo tratadas no âmbito das políticas de desenvolvimento econômico?
Tânia •
Sempre insisto que a diversidade regional do Brasil é um de nossos grandes patrimônios. Somos um país continental, abrigando uma fantástica diversidade ambiental (seis biomas) sócio-econômica e cultural. Cada sub-região do país tem suas potencialidades. No século 20, a enorme concentração no Sudeste e, dentro dele, em São Paulo (da indústria, da infra-estrutura econômica, do comando econômico, da base de ciência e tecnologia avançada etc.) domou  a diversidade. De repente, todo lugar queria ser São Paulo… E isso é impossível. Cada região pode contribuir a seu modo para o desenvolvimento do país. É preciso desconcentrar os investimentos e alcançar os mais diversos lugares desse imenso território. Vocações precisam de apoio para se desenvolver. Vocações são criadas, também. A “vocação” de São José dos Campos para produzir aviões, por exemplo, não nasceu por acaso: resultou de investimentos vultosos do governo ao longo de vários anos. Investimentos na formação de massa crítica, por exemplo. Como desde os anos 1970 há uma modesta tendência a desconcentrar, voltamos pouco a pouco a enxergar nossa diversidade. As políticas públicas têm, pouco a pouco, refletido essa valorização das vantagens de sermos um país heterogêneo.

ARede • Em que regiões o país está mais avançado, em termos de desenvolvimento social, e devido a quais fatores? Existe desenvolvimento sem infra-estrutura? Pela Pnad, no Norte, apenas 9,8% das residências têm rede de esgoto. E, mesmo no Sul, apenas 32,7% têm coleta de lixo.
Tânia •
Os indicadores sociais do Sudeste e do Sul são os mais elevados do país. Os do Norte e Nordeste, os mais baixos. O Centro-Oeste tende para o padrão Sul-Sudeste. A concentração dos investimentos ao longo de muitos anos naquelas regiões é uma das explicações. Mas há outros determinantes, como a menor presença da herança escravagista no Sul, concentração fundiária mais crítica no Nordeste, entre outros. Investimentos em infra-estrutura social: educação, saúde, habitação e saneamento são estratégicos para melhorar os níveis de vida de uma região. Mesmo nas regiões mais ricas, tais investimentos ainda merecem prioridade. Mas um esforço maior deve ser feito no Norte e no Nordeste, pois a defasagem ainda é enorme, em qualquer indicador social que se tome.

ARede • Qual a contribuição da tecnologia? O acesso a telefones, segundo a Pnad, chega a 77% dos domicílios — enquanto mais de 50% estão ligados a rede de esgoto.
Tânia • Os avanços tecnológicos, em geral, contribuem para melhorar os padrões de vida.  Mas tecnologias adequadas nem sempre são as mais avançadas. Podemos e devemos combinar, com sabedoria, padrões de ponta com padrões intermediários, dependendo da realidade de cada lugar. O que para alguns lugares está superado, em outros impulsiona as forças produtivas ou melhora a vida das pessoas. Outros povos fazem isso com maestria. Outra questão é a da escolha de prioridades. Nós escolhemos priorizar investimentos nas telecomunicações e não no saneamento básico. Temos celular para muitos, podemos fazer ligações DDI de lugares os mais pobres do país e não temos esgoto nas nossas cidades. Falamos com o mundo em tempo real e nossas crianças continuam morrendo de diarréia… Resultado de nossas escolhas!

ARede • No caso dos jovens, que continuam os mais afetados pelo desemprego, as últimas políticas públicas (Plano de Desenvolvimento da Educação, investimento em formação técnica etc.) estão com o foco certo? A escola é atraente para o jovem?
Tânia •
Esse é o maior problema do Brasil. Nunca priorizamos a educação. Investimos pouco e mal. Estamos longe do mínimo necessário. Temos condições materiais de colocar todos os nossos jovens e crianças em escolas de qualidade, em dois turnos. A pequenina Coréia do Sul está fazendo isso. Outros o fizeram há tempos! Nós continuamos preferindo investir em outras prioridades. Quase universalizamos o acesso ao ensino fundamental, mas a qualidade é lamentável, na maioria dos casos. A escola afasta os jovens… Lamento dizer que o problema não é só dos governos. As famílias também priorizam pouco a educação dos filhos. Já melhorou, mas estamos muito longe do mínimo necessário.

ARede • As linhas de formação, os cursos, atendem às necessidades e vocações regionais?
Tânia •
A formação tem que ser universal. Temos que preparar cidadãos para entender o mundo, um mundo cada vez mais complexo. Mas considerar as vocações regionais também é importante. Cursos profissionais, por exemplo, devem considerar as demandas do mercado de trabalho de cada região.

ARede • Os dados da PNAD indicam 4,8 milhões de crianças e adolescentes trabalhando, no Brasil — um terço deles trabalhando 40 horas semanais, 60% em atividade agrícola. A senhora pode comentar esse cenário — a que se deve, como combater efetivamente esse crime?
Tânia •
Se o Brasil colocar suas crianças e adolescentes numa escola decente, em dois turnos, resolveremos esse problema. E o Brasil tem recursos para fazer essa revolução. Não fez a revolução nas telecomunicações, com políticas públicas, na era militar?

ARede • Qual a parte que cabe aos demais atores da sociedade, além do governo (iniciativa privada, sociedade civil organizada, movimentos populares), na promoção do desenvolvimento social?
Tânia •
Os governos são supervalorizados no Brasil. A sociedade abriga outros agentes igualmente relevantes. As empresas, por exemplo, são agentes do desenvolvimento social. Se elas se negam a praticar trabalho escravo, contribuem para o desenvolvimento social. Se elas baseiam sua competitividade na exploração exagerada dos seus trabalhadores, contribuem para ampliar o drama social. A sociedade civil organizada e os movimentos populares são fundamentais. Quantas de nossas conquistas sociais não devemos a essas instituições? Pena que o corporativismo também seja muito forte no tecido social brasileiro… Avanços seletivos têm essa origem: o peso de algumas corporações.


Tânia Bacelar foi secretária de Políticas de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração, onde chefiou o grupo de trabalho para recriação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 2003. Bacharel em Ciências Sociais e em Ciências Econômicas, é doutora em Economia Pública, Planejamento e Organização do Espaço pela Universidade de Paris I/Panthéon-Sorbonne. Foi diretora de Planejamento Global da Sudene, secretária de Planejamento e secretária da Fazenda do estado de Pernambuco. Dirigiu o departamento de Economia da Fundação Joaquim Nabuco. Sócia da Consultoria Econômica e Planejamento (Ceplan), foi consultora de organismos internacionais como Instituto Interamericano para Cooperação em Agricultura, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Agência Alemã para Cooperação Técnica. Foi secretária de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente da Prefeitura de Recife e membro da Comissão de Transição criada pelo governo federal em 2002.