Encontro Cultural de Milho Verde, realizado pelo Instituto Milho Verde, que é um Ponto de Cultura
ARede nº42 novembro 2008 – O Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania — Cultura Viva, do Ministério da Cultura (MinC), iniciado em 2004, apóia, com recursos em dinheiro, 850 Pontos de Cultura em todo o país. São iniciativas que envolvem a comunidade em atividades de arte, cultura, cidadania e economia solidária. Organizações selecionadas por meio de editais públicos tornam-se Pontos de Cultura, que são parceiros do MinC, recebendo três parcelas anuais de R$ 60 mil, em um total de R$ 180 mil. Os pontos não são necessariamente criados pelo governo. O Maracatu Leão Coroado, de Igaraçú (PE), por exemplo, existe há 150 anos. Por isso o “Viva” incorporado ao nome do programa não é uma palavra solta. Reflete um conceito.
O projeto abriga as mais variadas linguagens, representações e expressões da cultura brasileira: teatro popular, teatro experimental, circo; música popular, choro, samba, jongo, erudita, uma mistura de tudo isso; dança, dança de rua, coco, afoxé; maracatu, boi, cinema, cinema de animação; contação de estórias, registro de memórias, rádio, cultura digital, hip hop, repente… “Precisamos descobrir o Brasil!”, o primeiro verso do Hino Nacional de Carlos Drummond, é sempre citado por Célio Turino, Secretário de Programas e Projetos Especiais do Ministério da Cultura, responsável pelo programa. O Cultura Viva é o vencedor do Prêmio ARede 2008 na categoria de Setor Público Federal, por sua contribuição para “desesconder o Brasil, mostrá-lo para nós mesmos e para o mundo”.
As propostas do Cultura Viva são a interligação dos Pontos de Cultura em rede, o trabalho compartilhado e o desenvolvimento de atividades culturais respeitando a autonomia e o protagonismo das comunidades. Não há precedente, no Brasil, de um projeto público de cultura que tenha reconhecido dessa maneira os responsáveis pela diversidade e pelo vigor cultural do país. Uma das principais contribuições do Cultura Viva é entender a cultura como um processo, uma ação de continuidade.
O programa do Minc mapeou as contribuições anônimas à cultura em todo o país. E, para desenvolver a base do programa, sustentada pelo tripé autonomia, protagonismo e empoderamento social, também contribuíram variadas fontes. Uma delas foi a experiência de Turino com as Casas Comunitárias de Cultura, na prefeitura de Campinas, entre 1990 e 1992. Foram criadas 13 Casas de Cultura, todas na periferia. Cada uma recebeu uma biblioteca com 500 volumes, treinamento para orientadoras de leitura, além de oficinas artísticas e apoio para eventos. Com a mudança de governo, foram cortadas as oficinas, começaram atrasos nos pagamentos das orientadoras de leitura e surgiram críticas à gestão das casas. A programação foi burocratizada, o público minguou e a maior parte das casas fechou.
Uma das exceções foi a Casa de Cultura Tainã, fundada por Antonio Carlos Santos da Silva, TC. No início dos anos 1990, TC procurou a secretaria de cultura de Campinas em busca de apoio para transformar em Casa de Cultura uma parte de um armazém desativado da Cobal. Foi ele quem deu o impulso inicial do programa da prefeitura. Anos mais tarde, Célio Turino, já no Minc, entendeu por quê a Casa da Cultura Tainã sobreviveu ao fim do governo: protagonismo da comunidade, articulação em rede com outros mocambos e quilombos, zêlo pela autonomia que fudamenta a atuação da Tainã. Não era o apoio do governo que mantinha o lugar vivo. “O Ponto de Cultura Tainã é, nas palavras de TC, militante do movimento negro, ‘um quilombo urbano dos excluídos’, autônomo, como foi a república de Palmares”, conta Turino. “Habituado com a escassez, TC seguiu com seu povo e a Casa continuou aberta, com programação vibrante. Até orquestra de tambores em metal existe por lá e os moradores da Vila de Cohab, Padre Manoel de Nóbrega, continuam `tainando em pândega`. Desde 2005, a Casa de Cultura Tainã tornou-se um Ponto de Cultura, com apoio do governo federal”.
A Ação Griô estimula o aprendizado por meio de mestres da tradição oral São três as ações principais do Cultura Viva. A Cultura Digital, por meio da qual os pontos recebem recursos para comprar o kit multimídia, com computadores que funcionam como ilhas de edição, tudo em software livre. “A Cultura Digital é um instrumento de aproximação entre os pontos, e desencadeia um novo modo de pensar a tecnologia, envolvendo generosidade intelectual e trabalho colaborativo; por isso, o software livre como opção tecnológica e filosófica”, escreve Turino. A Ação Griô é a segunda ação. Consiste em estimular o aprendizado com mestres da tradição oral das comunidades, pessoas que adquiriram conhecimentos de antepassados e os repassam contando histórias. Os mestres griôs recebem um salários mínimo, por tempo indeterminado. A terceira ação é a Escola Viva, que integra os Pontos de Cultura às escolas, para colaborar com a construção de um conhecimento reflexivo e sensível por meio da cultura. Transforma experiências escolares inovadoras em Pontos de Cultura ou transforma os pontos em escolas.
Centros modulares
O orçamento do Cultura Viva, desde sua criação, soma R$ 361 milhões. Começou com R$ 5 milhões em 2004, saltou para R$ 56 milhões em 2005; R$ 49 milhões em 2006; R$ 110 milhões em 2007 e R$ 141 milhões em 2008. A Cidade da Música, megateatro em construção na Barra da Tijuca, consumiu, até agora, R$ 461 milhões dos cofres da Prefeitura do Rio de Janeiro. Foi pensada, inicialmente, quando ainda custaria R$ 80 milhões, para abrigar a Orquestra Sinfônica Brasileira. Os candidatos à prefeitura do Rio ainda não sabem se será esse mesmo seu destino. Quando o Cultura Viva nasceu, em meados de 2004, o propósito do Minc era reformular o programa nacional de acesso à cultura. A solução proposta foi a construção de centros culturais modulares, cada um ao custo de R$ 1,5 milhão, que formariam “bases culturais”. Essa idéia foi aposentada porque, sem a vitalidade dos movimentos de cultura, os centros seriam inaugurados e, com o tempo, abandonados. Desde o primeiro edital, somente podem se tornar pontos iniciativas que já existem, e é isso que define a diferença entre pontos de cultura e casas de cultura. “Esse conceito sempre existiu, mas sempre foi retórico. Não havia um meio de efetivá-lo”, explica Turino.
Cada ponto define como aplicar os recursos: em equipamentos, em instalações físicas, ou, como faz a maioria, em oficinas e atividades continuadas de registro, recuperação e invenção da cultura. Todos têm um estúdio multimídia de gravação de áudio e vídeo e interligação por internet em banda larga, para que cada ponto registre suas expressões e possa trocar informações com soberania e sem hierarquias. “Sem hierarquias” quer dizer que a tecnologia é usada para formar a rede, e não para enviar relatórios a instâncias superiores. “Um ponto só se realiza, no programa, quando articulado em rede. O contato com outros pontos desencadeia um processo de desenvolvimento acelerado”, explica Turino.
Um Ponto de Cultura se realiza quando articulado em redeEste ano, o programa começou a firmar parcerias com os estados. Com a descentralização, R$ 9,5 milhões deverão sair de cofres estaduais, além dos R$ 141 milhões do governo federal. A perspectiva é de ter 1.507 novos pontos até o final do ano. Os editais passam pelo Minc e as comissões julgadoras são tripartites, com representantes do ministério, dos governos estaduais e da sociedade. Essa será uma prova de fogo para o projeto — ao final do processo de parcerias, poderá se constatar se a seleção vai continuar contemplando os pontos vivos de cultura e não as conveniências políticas. A trajetória do projeto não ocorre sem percalços. Os repasses aos pontos atrasam, há dificuldades na formalização dos convênios, a idéia inicial de realizar compras centralizadas de equipamentos atrasou a entrega dos estúdios multimídia. “O êxito do programa não se deve à competência da gestão, mas à disseminação dos nossos conceitos. Essa foi uma política pública que deu certo pela força da idéia mais do que pela técnica”, constata Turino.
A rede Yawalapiti, na cidade de Canarana (MT), é um Pontão de Cultura. Os pontões foram criados em 2007 para articular vários pontos de uma região. Os Yawalapiti, povo indígena de língua Aruak, contam que no princípio as mulheres tocavam jacuí (flauta sagrada) e cantavam para toda a aldeia. Certo dia, os homens não queriam mais as mulheres no centro da aldeia e tomaram-lhes as flautas sagradas. Criaram a Casa da Música, construída na uikúka (praça, centro) e proibiram as mulheres de tocar a jacuí ou mesmo entrar na Casa da Música. Em 1948, havia apenas 28 Yawalapiti. Eram um povo em extinção. A solução encontrada pelos irmãos Villas-Boas e pelo cacique Kenato foi de realizar casamentos com outros povos do Xingu. Em 2002 já eram 208 Yawalapiti, mas muito poucos, apenas 5, dominam plenamente o idioma e as histórias de seu povo.
Em 2005, no processo de discussão do Ponto de Cultura, uma equipe de pesquisa acompanhou o repertório de dança e música da aldeia. Jovens, adultos e crianças esforçavam-se para que sua língua fosse registrada plenamente. Mas, apesar do esforço, nem todos a dominavam. De repente, para surpresa de todos, um canto vem do fundo escuro da casa de palha. Ali morava Wantsu, a mais velha Yawalapiti da aldeia, uma das cinco a ter o pleno domínio do idioma. Wantsu cantou músicas que nem os homens mais velhos se lembravam. A voz da índia, novamente, ocupou o centro da aldeia.