Conexão Social – Uma rave tecnológica


Diversidade na Campus Party 2009, a festa de criação, desenvolvimento e compartilhamento.
Patrícia Cornils

A comparação entre uma feira de informática tradicional e a Campus Party ajudar a enxergar o efeito da internet e das redes colaborativas no uso da tecnologia. Durante a edição 2009 do encontro, realizada entre 19 e 25 de janeiro, no Centro de Exposições Imigrantes, em São Paulo, havia estandes de produtos, como em um evento convencional. Mas, na arena principal, milhares de pessoas produziram e trocaram informações, criaram inovações, em vez de apenas consumir. A diversidade de cenários foi imensa.Na área de computação distribuída (grid computing, ou computação em grade), por exemplo, campuseiros usaram a capacidade de processamento de 320 máquinas para ajudar descobrir a conformação geométrica das proteínas do RNA, ácido que faz a intermediação entre o DNA e as proteínas. Entender como as proteínas formam estruturas tridimensionais pode conduzir a aplicações importantes, como a composição de remédios mais efetivos. Com o uso em paralelo de centenas de computadores, os campuseiros obtiveram, em 52 horas, dados que demorariam 702 dias em processamento sequencial, ou seja, quando uma informação só é processada em uma sequência pré-determinada, explicou Wagner Meira, doutor em Ciência da Computação e professor da Universidade Federal de Minas Gerais ao site PSL Brasil.


CP 01, o primeiro robô
feito com ferramentas
livres.
A festa dos campuseiros teve 11 áreas de conteúdo: Desenvolvimento, Simulação, CampusBlog, Modding, Design, Software Livre, Astronomia, Fotografia, Games, Robótica, Vídeo e da Música. Em cada setor, havia bancadas para computadores, conexão veloz à internet, som e telão para palestras e oficinas. Cerca de 6,8 mil pessoas se inscreveram no encontro e 118 mil passaram pela área de exposições. Para Marcelo Branco, diretor geral da Campus Party, o espírito do evento é o de conhecimento compartilhado. Uma pesquisa do Ibope Inteligência, realizada com 600 participantes, mostrou que mais de 90% dos entrevistados são pessoas envolvidas com tecnologias colaborativas. A pesquisa mostrou que a web 2.0 é uma realidade: 91% dos entrevistados têm interesse em blogs e 31% são autores. Cerca de 21% contribuem diariamente para fóruns de discussão e 57% visitam fóruns pelo menos uma vez por semana.

Um dos critérios usados pelos organizadores para medir o compartilhamento é a comparação da quantidade de informação baixada, pela internet, com a quantidade de informação que sai dos computadores do evento para a rede (uploads). Este ano, assim como em 2008, a Campus Party “compartilhou mais conteúdos pela internet do que baixou. A taxa de upload foi de 62,7%, enquanto a de download foi de 37,3%”, conta Branco. Parte desse conteúdo pode ter saído de computadores instalados na Campus Party para compartilhar arquivos já existentes de música ou vídeo. Mas houve, também, informação produzida ali. Um exemplo disso foi a construção do primeiro robô feito com ferramentas livres, o CP 01.

O CP 01 é um projeto de colaboração que pretende contar com a contribuição de programadores, designers e engenheiros mecânicos e elétricos de todo o mundo. A ideia é desenvolver conhecimento e colocá-lo na rede. “É muito difícil encontrar material para estudos de robótica”, explica Alexandre Simões, professor de robótica e inteligência artificial da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Não se descobre como é o circuito do robô Asimo porque o projeto pertence a uma corporação, a Honda”, compara. O CP 01, que por enquanto tem apenas cabeça, troncos e braços, acendeu os olhos na última noite do evento, sábado, dia 24, leu (por reconhecimento de letras), moveu a cabeça e identificou rostos.

Na mesma área de conhecimento, Robótica, houve uma corrida de robôs patrocinada pela Lego. A empresa estava promovendo sua nova linha de produtos, a Lego Líder, “para desenvolver o empreendedorismo junto a crianças e jovens”, explicou Arnaldo Ortiz, diretor técnico da Lego. Ponto de encontro de muitas redes sociais, desde jogadores de games até representantes de povos indígenas, a Campus Party foi, também, um lugar repleto de propagandas, poluição visual, poluição sonora, indução ao consumo de tecnologia.



A Campus Party
compartilhoumais
conteúdos pela
internet do que
baixou.
Filosofia e prática se alternaram na bancada do MetaReciclagem, rede auto-organizada que propõe “a desconstrução da tecnologia para a transformação social”. Os integrantes do grupo, que mantêm uma lista de discussão (http://rede.metareciclagem.org), realizaram na Campus Party o Primeiro Encontro Intergalático de Metareciclagem. Aproveitaram o encontro físico para estreitar relacionamentos, definir conceitos e trabalhar em oficinas para o público. Na quarta-feira, a oficina foi de construção de uma tela sensível ao toque. “A idéia é mostrar que sistemas caríssimos que se transformaram em máquina de vendas de diversas corporações funcionam a partir de princípios básicos”, publicou Luiz Carlos Pinto em seu blog, o www.locoporti.blog.br.  “E que tais sistemas podem ser construídos com produtos prosaicos, que muitos de nós temos em casa”, completou.

Presença marcante em 2007, na primeira edição do Campus Party, como ministro da Cultura, Gilberto Gil voltou, este ano, para uma “conversa cantada” com os campuseiros. Dedilhando no violão um sucesso e outro, o autor de Cibernética (1974) e Banda Larga (2008) falou sobre as perspectivas das novas tecnologias: “Achamos que o povo, a sociedade, esses devem ter papel importante na produção e nos usos dessas tecnologias”. Revelando-se temeroso de que “os governos mais incisivos e as corporações detenham os instrumentos de designação do que sejam essas tecnologias”, Gil comentou o projeto de lei de crimes da internet. O ex-ministro acredita que “os defensores das visões imperiais, inflexíveis, rígidas, veem sempre ameaça em tudo”. Qualquer coisa nova pode ser uma ameaça à ordem, como se a ordem não fosse mera flutuação do caos, disse. Gil acha que há um medo em relação à internet, porque a internet veio “bagunçar as coisas, fazer a problematização permanente das coisas, trazer a caotização necessária”. No dia seguinte à abertura, lá estava ele de novo, em uma reunião do Grupo Técnico de Cultura Digital do Fórum Nacional dos Pontos de Cultura.

Para Sérgio Amadeu, diretor de conteúdos da Campus Party Brasil, Os educadores deveriam prestar atenção ao que acontece no evento. “Não existe mais divisão entre divertimento e aprendizado, eu vi um garoto de 13 anos discutindo sobre processadores, às oito da manhã, na bancada de Modding”, conta. O principal patrocinador do encontro, que teve um orçamento de R$ 7,6 milhões, é o grupo Telefônica. Outras 77 empresas participaram como patrocinadores, parceiros ou apoiadores.

Batismo digital

F-l-a-m-e-n-g-o. Enter. Fascinado, Rafael Siqueira da Silva admirou o resultado de uma operação inédita nos seus 34 anos de vida: apertar, com a ponta do indicador direito, as letrinhas de um teclado. Abrir o site do seu querido Mengão foi a primeira conquista cibernética desse motorista de ônibus goiano, residente em Brasília, que nunca tinha posto a mão em um computador. “Quando voltar pra casa, a primeira coisa que vou fazer é comprar um desses”, anunciou, em primeira mão. Motorista de uma turma de campuseiros, ele também esteve acampado e, depois de “pegar o gostinho”, fez planos de passar todos os dias do evento na área de batismo Digital, onde pretendia aprender a navegar, mandar e-mail, fazer buscas na web e tudo mais a que tivesse direito. Silva tem certeza de que sua vida vai melhorar bastante com o novo conhecimento: “Vai ser bom para minha filha de 9 anos e para mim. Como trabalho em turismo, vou usar o computador para procurar rotas, mapas, informações sobre os lugares. Agora eu vejo como estava atrasado no tempo. Mas vou correr atrás!”

Pela primeira vez no Campus Party, o Batismo Digital teve exatamente o propósito de promover a iniciação à informática. Raul Luiz, um dos 37 monitores que auxiliaram o público nesse setor, contou que foram atendidos dois tipos de usuários: os que receberam noções de navegação e comunicação via web; e os que queriam conhecer as novidades da web 2.0. Ao contrário do previsto pelos criadores do batismo digital, a maioria das quase 7 mil pessoas que passaram pelos 147 computadores instalados já conhecia, ao contrário de Rafael Siqueira, as ferramentas de internet. Assim, o espaço se transformou em uma grande área de oficinas, usada por várias redes sociais.