Avante cidadão instigado


Valneide Souza, do Avante Lençóis, fazendo história na Chapada Diamantina.



Como contar em filme o quanto se aprendeu?*

A Associação Avante Lençóis, dessa cidade da Chapada Diamantina (BA), prepara um filme sobre seus 15 anos

Valneide Souza, 27 anos, está fazendo o roteiro de um documentário. Reuniu em duas páginas manuscritas o nome de quase 30 pessoas que ajudaram a construir, bloco a bloco, ano a ano, a Associação Rádio Comunitária Avante Lençóis. Ele é uma delas. Chegou em 1998, com 16 anos, para um curso. Desde 2000, ele é um dos gestores da associação, que por sua vez nasceu do Movimento Avante Lençóis. O movimento foi criado em 1995 para moralizar a prefeitura da principal cidade da Chapada Diamantina, na Bahia. Cassou o prefeito, ao tempo em que a cidade tinha 1.500 crianças da área rural sem escola, o lixo se acumulava nas ruas, o pagamento de funcionários e fornecedores estava atrasado. E está na origem dos dois órgãos de comunicação mais importantes de Lençóis: o jornal Avante, do qual Valneide foi diagramador, repórter e coordenador, e a rádio comunitária Laúza, também uma iniciativa da Associação Avante.

O primeiro número do jornal, criado para mobilizar e informar a população, foi uma folha de mimeógrafo, impressa em junho de 1995. Publicado durante quase dez anos, o Avante é o melhor registro da história recente de Lençóis. Em suas 51 edições, reportou o fim do garimpo nessa cidade fundada pelos garimpeiros de diamantes, a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, a primeira Conferência Municipal de Saúde da cidade, a ascenção e queda do violento agente de polícia Luiz Calazans, o crescimento do turismo e pelo menos duas grandes trombas d’água que despencaram na cidade. Na coluna Nossa Gente, registrou narrativas de vida de dezenas de pessoas que carregam a memória de Lençóis.

O prefeito cassado em 1996, Otaviano Alves, hoje é vereador – e o Avante já não circula. Os efeitos mais duradouros do Movimento Avante Lençóis, no entanto, permanecem. É isto que Valneide tenta resumir, nas suas duas folhas de papel. O movimento virou a pequena cidade de cabeça para baixo. Literalmente: a sede da Associação Avante Lençóis está encravada, desde o ano 2000, no alto do morro do Tomba Surrão – na periferia da cidade, não em seu belo centro histórico. Em frente à sede, chamada Canto do Povo, há uma amendoeira, local das primeiras reuniões entre a associação e os moradores do bairro. A aliança do movimento com os moradores resultou em várias melhorias no Tomba. Ruas foram calçadas, fossas construídas, o abastecimento de água está melhor.

Do Tomba transmite a rádio comunitária Laúza, o único veículo de comunicação em atividade em Lençóis. No Tomba funcionam a Estação Digital, criada em parceria com a Fundação Banco do Brasil; uma biblioteca; uma gráfica rápida e muitas atividades de capacitação. Com muita história para contar, Valneide decidiu se concentrar em um tema: a contribuição da associação para a formação de dezenas de pessoas, hoje gestores, professores, empreendedores sociais, técnicos de informática. O aprendizado político e profissional dessas pessoas se deu na prática, conforme se preparavam para ser protagonistas na vida da cidade – e nas suas vidas.

Como se conta, com imagens, quanto uma pessoa aprendeu? Ao ouvir Valneide, não se imagina que ele não concluiu o segundo grau. Nem que, como resultado de sua formação na associação, voltou à escola para ensinar os professores a usar programas de software que ele domina.“É muito difícil fazer jornalismo independente”, lamenta, ao rememorar a história do Avante. De fato. O jornal brigou com o poder público desde sua origem. À medida em que o turismo se tornava a principal atividade econômica da cidade, porém, o Avante passou a incomodar seus patrocinadores, porque suas informações desmanchavam a ideia de paraíso vendida aos turistas. Como o jornal dependia dos recursos aportados por empresas locais, que por sua vez dependem do turismo, deixou de existir no início de 2007. “Mas se ninguém fica sabendo de nada, as coisas não mudam”, constata Valneide. É mesmo duro manter jornais independentes. Quantos jornalistas formados em universidades entendem realmente o que isso significa?

Na sede da associação, há duas edificações. Uma é a sede, onde funcionam uma biblioteca com seis mil volumes, a Estação Digital, com oito computadores e conexão à internet, e espaços para leitura e para oficinas. Outra é o estúdio da rádio Laúza, erguido há pouco mais de um ano com contribuições de habitantes da cidade e de apoiadores que vivem em Salvador, para que a rádio pudesse funcionar mesmo quando não há atividades na sede da associação. Todos os dias, das 10h às 14h, 13 programas são transmitidos para Lençóis e para os bairros fora da zona urbana – Tanquinho, Remanso, Pau de Colher, Estiva.

Pega também em Andaraí, outra cidade importante da Chapada.Trabalham na rádio, entre outros, locutores religiosos, um professor do ensino médio apaixonado por música brasileira e dois alunos de dez anos de idade da escola Maria Isabel da Silveira.Há locutores experientes, como João Batista Souza, que começou a trabalhar na Laúza aos 17 anos, três meses depois de ela ir ao ar, em 1999. E há os menos experientes, como Edilson Pereira, que é criticado por sua dificuldade para ler avisos no ar e admirado, na mesma proporção, pela dedicação à sua mãe. Ela sofreu um derrame, e ele convida os ouvintes a visitá-la. “Ele tem disposição para fazer o programa e coragem para se expor. Por que abrir mão de um locutor assim?” – espanta-se Nelma Pereira de Jesus, secretária geral da associação.

A rádio foi fechada pela Anatel em 2000. Saiu do ar – e voltou a transmitir – várias vezes, até finalmente receber, em maio deste ano, a outorga do Ministério das Comunicações para operar legalmente.Cerca de cem locutores passaram pela Laúza. Muito mais gente passou pela associação, em oficinas de metareciclagem, ortografia, instalações elétricas, informática básica, leitura para crianças. Na lista de Valneide há apenas 30 dessas pessoas, as que mais se envolveram com a gestão da associação. Há Neydivaldo Pereira dos Santos, por exemplo, que trabalha meio expediente na associação e meio expediente na Grãos de Luz e Griô – outra organização que nasceu e cresceu no contexto do Movimento Avante. Neydivaldo é um dos responsáveis pela manutenção dos computadores da Estação Digital, mas vai deixar esta função porque encontrou um trabalho melhor remunerado.

O mesmo aconteceu com cerca de oito pessoas formadas nas oficinas de metareciclagem: encontraram trabalho em uma região onde mão-de-obra especializada é rara e saíram do dia-a-dia da associação.Agora, Valneide vai se dedicar a aprender mais sobre roteiro, filmagem, edição, para preparar o documentário a tempo da festa do 15º aniversário do Avante, no dia 1º de maio de 2010. Enquanto há pessoas fazendo a história, ela não acaba. Quanto vale, tanto para elas próprias quanto para a sua cidade, o que aprenderam e o que podem ensinar?

 

* Esta matéria é a segunda de três Informes Institucionais que ARede está produzindo para a Fundação Banco do Brasil sobre o programa Estação Digital. A primeira, sobre a Estação Digital de Teresina e o Movimento pela Paz na Periferia (MP3),  foi publicada na edição número 50 da revista, que circulou em agosto.