Oportunidade para inclusão












Gustavo Gindre defende a criação de uma política pública para garantir a democratização da TV digital no Brasil.

Por enquanto, a tecnologia so é aproveitada para melhorar a imagem. falta interatividade.

Áurea Lopes*

ARede nº52, outubro 2009 – Presente em 28 cidades até outubro deste ano, o que representa cobertura de mais de 50% da população brasileira, a TV digital ainda está restrita à elite: 94,5% dos brasileiros assiste à TV analógica. A nova tecnologia permite não só a transmissão de uma imagem de melhor qualidade mas também abre caminho para a prestação de serviços interativos. As próprias autoridades, contudo, admitem que a adesão dos telespectadores tem sido lenta, principalmente porque os equipamentos receptores ainda custam caro e o sistema de interatividade não está disponível comercialmente. Crítico do modelo adotado pelo Brasil para a TV Digital, o pesquisador Gustavo Gindre diz, nesta entrevista, que a interatividade só existirá de fato se o governo definir políticas públicas que obriguem os radiodifusores a adotá-la. “Eles não estão interessados”, lamenta Gindre. “E a interatividade, que permite a inclusão digital por meio de diferentes programas, como os de governo eletrônico, seria, sem dúvida, o maior ganho da introdução da TV digital num país como o Brasil.”
Para reverter este quadro, o governo promete definir até o final do ano um processo produtivo básico (PPB) para fabricantes de conversores – um aparelho que permite captar o sinal digital e convertê-lo para o sinal analógico da TV da maioria dos brasileiros, melhorando substancialmente a qualidade do sinal e ofertando novos serviços de TV digital. Isso garantiria a oferta da interatividade e preços mais adequados.

De acordo com os técnicos do governo envolvidos nessa negociação, será possível lançar o conversor por US$ 38 FOB (cerca de R$142), segundo oferta de um fabricante indiano. Outros fabricantes – Intel, WXP e Broadcom – também manifestaram interesse em apresentar projetos.

Lançada em 2 de dezembro de 2007, a TV digital gerou muita polêmica, da definição do padrão adotado pelo Brasil ao fato de o país não ter optado pela multiprogramação nos canais comerciais. O Brasil adotou o ISDB, padrão japonês, com duas tecnologias brasileiras embutidas: o Ginga, um software que permite desenvolver os aplicativos de interatividade já dentro do televisor e nos conversores (ver pág. 28), e o MPEG 4, que aumenta a compressão dos sinais, possibilitando um uso melhor da banda de frequência. Já a multiprogramação é uma modalidade que permite transmitir quatro canais nos mesmos 6 MHz usados para a transmissão em alta definição. A polêmica ainda não foi superada, mas algumas medidas posteriores alteraram um pouco o cenário.

A falta de escala do padrão japonês, uma das críticas à opção do governo brasileiro, começa a ser contornada com a adoção do padrão nipobrasileiro por outros países da América Latina (o padrão é chamado de nipobrasileiro por ter incorporado os desenvolvimentos brasileiros). Já aderiram a este padrão a Argentina, o Chile, o Peru e a Venezuela, o que amplia o mercado consumidor dos produtos e tende a baixar os preços, pois há um aumento da escala. Equador e Cuba também analisam a opção.

No caso dos televisores digitais, a queda já foi expressiva. Quando a TV digital foi lançada no país, há quase dois anos, havia poucos modelos e o preço variava entre R$ 7 mil e R$ 8 mil por televisor. Hoje, já é possível comprar um televisor digital por pouco menos de R$ 2 mil e um só fabricante oferece 15 modelos, com preço médio de R$ 2,5 mil.

A queda nos preços influenciou no aumento do número de equipamentos comprados pelos telespectadores. Até agosto de 2009, eram 1,6 milhão de equipamentos (televisores integrados com receptores digitais, conversores, telefones celulares) contra 400 mil comercializados em 2008, de acordo com a Eletros, entidade que reúne os fabricantes de equipamentos eletroeletrônicos.

Mas o número de receptores digitais comercializados, de 120 mil em 2008, não cresceu muito em 2009. Para as classes C e D, que não podem trocar o televisor analógico por um digital, o preço do conversor ainda é alto. O modelo mais barato no momento custa menos de R$ 200 e ainda não é acessível. Pior: não traz benefícios além da melhoria da imagem (o fim dos chuviscos e distorções) e tem qualidade duvidosa. Daí a importância de um novo PPB para os conversores, que inclua a interatividade. Técnicos ligados ao Fórum do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre ponderam que a interatividade ficou de fora porque só agora, neste segundo semestre, o Ginga estará disponível comercialmente.

Mesmo que a promessa governamental venha a ser cumprida e que a interatividade esteja comercialmente disponível nos conversores a partir do início de 2010, ela só vai se tornar realidade se os radiodifusores investirem neste caminho. O que, na opinião de Gindre, é muito pouco provável. Daí a necessidade de ação do Estado.

O que é a TV digital? O que vai mudar para o espectador com a transmissão digital?
Gustavo Gindre – No sistema analógico, as informações transmitidas pela TV têm um vínculo com o real. Representam uma imagem, um som da realidade e não podem ser modificadas. Na TV digital, as informações são convertidas em números, por código binário. Esse sistema torna os dados mais maleáveis, fica mais fácil fazer alterações nos conteúdos e, portanto, promover interatividade com o telespectador. A TV passa a falar a mesma língua que os outros meios de comunicação já digitalizados. Insere-se nesse cenário de convergência tecnológica, onde começa a perder suas características específicas, aquilo que a tornava praticamente única, para ganhar elementos que a colocam no conjunto mais amplo de hipermídia. É possível dizer que, no futuro, a TV como a gente conhece – a transmissão de um para muitos, o receptor passivo, todo o poder de transmissão na mão de um único emissor – vai desaparecer.

A escolha do padrão japonês ISDB foi uma boa decisão para o Brasil?
Gindre – Para começar, a questão do padrão tecnológico era importante por outras razões, não necessariamente pelas características técnicas. Em termos de uso da TV digital, o ISDB produz os mesmos resultados que o padrão europeu, por exemplo. O que estava em jogo não era tanto a forma como a TV seria usada, mas sim uma questão ligada a política industrial e a desenvolvimento de ciência e tecnologia nacionais. Adotar exclusivamente o padrão brasileiro teria sido um voo muito mais radical, que nos custaria desenvolver do zero. Mas poderíamos ter feito uma negociação com algum sistema. Era possível dizer “olha, nós temos algumas tecnologias e queremos colaborar”.

Mas não estamos aportando o Ginga, software que permite a interatividade?
Gindre – O Ginga é importante. Mas há uma série de outras tecnologias das quais o Brasil é apenas comprador. Perdemos a chance de desenvolver tecnologia, formar mão-de-obra qualificada.

Com o sistema digital, aumenta o espaço no espectro de transmissão. Como esse benefício pode ser aproveitado?
Gindre – No Brasil, o ganho é apenas a alta definição da imagem. Vai servir para um público de elite, que pode ter uma TV com 1.080 linhas para assistir o Pânico na TV em alta definição. Era preciso ter montado um arcabouço regulatório que garantisse a possibilidade do uso desse espectro para aumentar o número de emissoras de radiodifusão. Mas isso não aconteceu. Cada emissora já existente ganhou mais uma outorga, para continuar transmitindo em analógico e passar a transmitir em digital aquilo que quiser, do jeito que quiser – até 2016, quando os canais analógicos serão desligados. Se você tem um código de compressão mais potente na tecnologia digital, como nós temos o MPEG 4, o mais avançado, não tem cabimento entregar um canal inteiro para uma emissora, porque isso é desperdício de espectro.

As emissoras públicas vão ter multiprogramação. A TV Cultura já foi autorizada pelo Minicom a fazer multiprogramação, em caráter experimental e a TV Bandeirantes entrou com ação reivindicando a multiprogramação. Você acha que o quadro de canal único pode se reverter em algumas operadoras comerciais?

Gindre – Permitir que as atuais emissoras façam multiprogramação não apenas é ilegal – suas concessões não permitem que transmitam várias programações simultaneamente –, como aprofunda a concentração da propriedade dos meios de comunicação. O correto seria usar esse espaço excedente para permitir operações de novos players, privados, públicos e estatais, como manda a Constituição Federal.

Outro ganho da digitalização dos sinais é a interatividade. O governo estima que o Ginga deve estar disponível comercialmente em 2010. Como vai ser a TV interativa?
Gindre – Se depender da vontade dos radiodifusores, o máximo que teremos é a interatividade associada à programação. Ou seja, o sujeito se mantém naquele programa de TV (o que não gera evasão de audiência para a emissora) e são abertos alguns frames com informações adicionais, especialmente aquelas que possam gerar receita para a emissora. Isso significa subutilizar as potencialidades do Ginga, que poderiam chegar a áreas como educação a distância, telemedicina, e-mail, e-gov etc. Se essas possibilidades não forem fruto de políticas públicas, nada vai acontecer, porque não creio que os radiodifusores venham a propor este tipo de serviço. Portanto, se não houver uma política pública para a interatividade, creio que a TV digital continuará com a cara e o jeitão da TV analógica, com uma imagem melhor.

Ao adquirir funções de computador, a TV pode contribuir para ampliar a inclusão digital no país?
Gindre – A TV está hoje em 94,5% dos domicílios brasileiros. Utilizar essa base instalada para conseguir, com uma caixinha muito mais barata do que um computador, prover serviços de interatividade, seria uma forma de garantir, a uma parte da população que hoje está excluída do acesso, um primeiro contato com a interatividade. Na primeira fase da implantação da TV digital, o governo financiou pesquisas nessa área em universidades. Essas universidades desenvolveram coisas como e-mail pela TV, telebanco… Poderia haver serviços como informes sobre linhas de crédito rural, alterações em legislação bancária, uma infinidade de informações de interesse público.

A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABTN) aprovou a implantação de um dispositivo que impede a cópia dos programas na TV digital. Isso não fere os direitos do consumidor?
Gindre – Sim, isso é ilegal. Esse dispositivo se chama Digital Rights Management (DRM, na sigla em inglês para gerenciamento de direitos digitais). Temos uma legislação de direito autoral muito ruim, mas que permite copiar pequenos trechos de obras. Não pode haver um dispositivo que bloqueie todas as gravações. Há uma polêmica sobre se a gravação será simplesmente proibida ou se será permitida, mas bloqueada, ou seja, só poderá ser reproduzida no próprio aparelho de televisão onde foi gravada. Imagine uma professora que grava um programa e quer usar na escola… esse é um uso que tem sido admitido em vários países do mundo. Se impedir esse uso, o Brasil vai estar na contramão. Fora o fato de que é inútil. Qualquer garoto de 15 anos vai levar dez minutos para publicar na internet um código para desbloquear essa trava.

Ginga: a interatividade que o país espera.

* Colaborou Lia Ribeiro Dias.

Gustavo Gindre é jornalista, pesquisador e militante na área de políticas públicas de comunicação.
Integra o Intervozes, Coletivo Brasil de Comunicação Social.