Direito de autor ou interesse público?
No congresso de direitos autorais, MinC fica prensado entre autoralistas e defensores do compartilhamento.
Patrícia Cornils
ARede nº54 dezembro/2009 – “Consulta Pública Já!” e “Chega da festa nacional do jabá” diziam as duas faixas abertas diante do público, segundo dia do III Congresso de Direito de Autor e Interesse Público, realizado em São Paulo nos dias 9 e 10 de dezembro. Menos de uma dezena dos 800 participantes inscritos, os manifestantes que ergueram as faixas eram do Partido Pirata, do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para Acesso à Informação (GPopai/USP), da Wikimedia Brasil e do movimento Música para Baixar. A platéia, composta principalmente por advogados e acadêmicos especializados em direito autoral, os chamados autoralistas, reagiu com tímidas palmas, seguidas de um constrangido silêncio. Os debatedores passaram a chamar o ato, nas mesas seguintes, de “manifestação silenciosa”. O que se discutia, naqueles dois dias de congresso, era a proposta do Ministério da Cultura (MinC) para revisão da Lei de Direito Autoral.
O evento foi a conclusão de um longo processo de debate sobre a revisão da Lei 9.610, de 1998. Iniciadas em 2007, com a criação do Fórum Nacional de Direito Autoral, as discussões vão resultar na proposta de um novo texto legal. O principal objetivo do MinC é criar um novo equilíbrio entre o direito dos autores de receber pagamento por sua produção e o direito da sociedade de ter acesso a bens culturais. Um equilíbrio nada fácil de encontrar, porque a internet acabou com as barreiras entre criadores e público e gerou uma gigantesca reação da indústria de entretenimento, que luta para garantir seu papel de intermediária. Isso se refletiu, naquele dia, nos campos opostos do congresso: enquanto os portadores das faixas representam a imensa maioria do público, que quer acesso a informações, músicas, livros e filmes, a maioria dos advogados é resistente a mudanças.
Horas antes, Eliane Abrão, autora do livro Direitos de Autor e Direitos Conexos e relatora de um dos 12 painéis em que se avaliaram trechos da proposta de lei do MinC, afirmou que não faz parte das atribuições do ministério liderar um processo de mudança na lei. “Direito autoral não é para amadores”, disse ela. “Envolve interesse imenso e nem sempre praticado em pudor.” A mesa da qual ela fez parte concluiu que é desnecessário mudar a lei. Foi minoritária no congresso, mas seu conservadorismo é comum entre os autoralistas. De acordo com Allan Rocha, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro, isso não é novidade.
A “manifestação silenciosa” é a novidade. “As discussões de direitos autorais sempre foram conduzidas pelos titulares dos direitos – não os autores, mas os empresários –, cujo objetivo principal é manter o controle que eles crêem ser absoluto sobre todos os usos das obras, independentemente de determinados direitos fundamentais”, afirma Rocha. Países mais desenvolvidos têm leis mais generosas para quem consome obras protegidas, explica Marcos Alves de Souza, diretor de Direitos Intelectuais do MinC. “Nos EUA, por exemplo, há instituições que defendem os direitos públicos no campo dos direitos autorais, como associações de bibliotecas”, constata. “No Brasil, isto está apenas começando a surgir na sociedade civil.”
O que o MinC entende por “direitos fundamentais” a serem ampliados com a revisão da lei pode ser resumido em três itens: ampliar os dispositivos de defesa do autor (escritor, músico, diretor de cinema etc.) frente ao investidor (editoras, gravadoras, produtoras de cinema etc.); dar maior acesso dos cidadãos a bens culturais e retomar o papel do Estado no setor. Resguardar o direito do autor a receber remuneração pela sua obra é um dos argumentos usados pelos autoralistas quando defendem a lei atual. O que não explicitam, neste argumento, é que a lei, como está, resguarda o direito dos chamados intermediários, as empresas que levam essas obras ao público e que se tornam, quase sempre, titulares dos direitos autorais.
O interesse público, ou o direito de acesso dos cidadãos, é estabelecido no capítulo de “limitações ao direito de autor”. Nele, são previstas exceções à proteção estabelecida na lei. O MinC propõe, por exemplo, a permissão da reprodução integral de obras literárias, fonogramas (músicas) ou obras audiovisuais (filmes) fora de catálogo; o uso de trechos de obras preexistentes em remixes; a reprodução de obras em formatos que tornem possível seu acesso por deficientes físicos; a reprodução de obras por bibliotecas, arquivos, museus, cinematecas, para serem colocadas à disposição do público, inclusive em redes fechadas de informática, dentro de universidades. A reprodução integral das obras é um dos pontos que incomoda a indústria – hoje, só é permitida a reprodução de “pequenos trechos” e não há uma definição exata do tamanho desses “trechos”. Sônia Maria d`Elboux, da Associação Paulista da Propriedade Intelectual (ASPI), e defende a manutenção dos “pequenos trechos”, sob o argumento de que a proibição da cópia integral estimula a edição de livros.
Para ampliar o papel do Estado, o MinC propõe a recriação do Instituto Brasileiro de Direitos Autorais (IBDA) para substituir a Comissão Nacional de Direitos Autorais. Sua função será arbitrar conflitos na área de direito autoral e supervisionar as atividades de arrecadação de direitos autorais.
A atuação de instituições como o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), responsável pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais das obras musicais, não é fiscalizada. “Quando alguém decide criar uma sociedade de gestão coletiva, como o ECAD, abre a porta e sai cobrando direitos, sem controle social nenhum”, explica Marcos Alves de Souza, do MinC. O ministério pretende estimular as sociedades de gestão coletiva – vai lançar, em janeiro, um edital de apoio a associações existentes e à criação de novas – mas também exercer um controle sobre sua atividade. Entre outros motivos, porque o direito autoral fazia parte do âmbito privado até a criação do TRIPS (sigla em inglês para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), que levou o direito autoral para o âmbito do direito internacional público. “As associações coletivas de gestão arrecadam direitos autorais de obras estrangeiras e os repassam para as associações de outros países”, explica Souza. “Se isso não for feito ou for feito de maneira incorreta, pode-se abrir um painel de sanções contra o país na OMC. Não há como o Estado ficar alheio a isso.”
A proposta de criação do IBDA inspirou entidades como a Associação Brasileira de Direito Autoral (ABDA) a acusar o MinC de tentar estatizar o direito autoral. E, em reportagem da Folha de S.Paulo, no dia 9, Juca Novaes, o presidente da Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus), uma das que compõem o Ecad, afirmou, além disso, que a revisão da lei é um “pacote de cima para baixo” – apesar do longo processo de debates e do fato de que a proposta ainda vai passar por consulta pública.
A reação do MinC à tentativa de desqualificar o debate foi desistir de apresentar, no III Congresso de Direito de Autor e Interesse Público, o texto integral do anteprojeto. A primeira intenção do encontro, organizado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pela escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, era finalizar o processo de elaboração, por meio da análise da proposta do ponto de vista jurídico, explica Marcos Wachowicz, da UFSC. Wachowicz é favorável à revisão da lei. “É preciso que ela incorpore os direitos dos usuários e criadores digitais e tenha como princípio a ampliação do acesso à cultura por meio da rede mundial de computadores – um instrumento importante de democracia”, diz.
As novas tecnologias mudaram a forma de as pessoas se expressarem e essas novas expressões geram novos processos de criação, não contemplados na legislação. “A Wikipedia não tem autor e o direito autoral clássico liga autor e obra”, pondera Wachowicz. “O remix não é plágio, é criação. Não se pode aplicar hoje uma legislação do século XIX. Como vamos falar de direitos de autores em mercados que só existem se o Google existir?” Também atento às mudanças que a internet e a cultura do compartilhamento impõem à questão dos direitos autorais, Alexandre Abdo, da Wikimedia Brasil, se decepcionou com o evento: “Não havia um único painel para discutir formas alternativas de direito autoral, como as licenças Creative Commons. Conversando com pessoas no evento, era evidente que havia muitos interessados no tema”.
O debate sobre o texto legal foi intenso. Mas os advogados receberam apenas os trechos do anteprojeto relacionados ao tema do painel de que participaram. Todos reclamaram. Este foi um dos poucos pontos de identificação entre os autoralistas e os ativistas presentes ao evento. Não se pode comentar uma lei sem conhecer como as diferentes partes interagem, afirmaram. O MinC, por sua vez, justificou a decisão como uma maneira de “não cristalizar posições em torno de uma proposta que não está acabada”, conforme Samuel Barichello Conceição, coordenador geral de Regulação de Direitos Autorais. De qualquer maneira, foi um recuo.
Ao final do encontro, duas posições políticas estavam claras. De um lado, a dos participantes do Partido Pirata, do MPB, do GPopai e da Wikimedia, que querem que a consulta pública do anteprojeto comece imediatamente, para que a sociedade conheça as propostas de mudança. De outro, os autoralistas querem debater mais. O presidente da ABDA, José Carlos Costa Netto, propôs a formação de uma comissão de especialistas para “consolidar as contribuições deste congresso e gerar um texto equilibrado, voltado ao aprimoramento da defesa do direito autoral”. O MinC sabe que isso pode se tornar um dispositivo para impedir os avanços que pretende na lei. Não deixa claro, no entanto, quando ela será colocada em consulta pública. No Twitter @direitodeautor, os organizadores do congresso publicaram, dia 22, que o MinC pretendia fazer isso “em 30 dias”.
DISCUSSÃO EM 2010
Depois da consulta, o ministério vai encaminhar um projeto de lei para o Congresso. Quando um projeto trata de temas relacionados a mais de cinco comissões da Câmara ou do Senado, cria-se uma comissão especial para debatê-lo. A Lei de Direitos Autorais poderia passar em seis ou sete, por conta da amplitude do tema. “Hoje, existem 136 projetos de lei tramitando nas duas casas, com propostas de modificação da lei atual”, conta Marcos de Souza, do MinC. Quando o projeto do governo for apresentado, essas propostas serão anexadas e a criação de uma comissão especial pode agilizar seu trâmite.
A expectativa é de que a discussão, assim como a aprovação da lei, ocorram em 2010, a despeito de ser ano eleitoral. A reação política, decorrente do imenso interesse econômico envolvido, não deve facilitar os planos do MinC. Um exemplo disso: a audiência pública convocada por comissões do Senado Federal para debater outra iniciativa do ministério, o projeto de lei que cria o Vale-Cultura, transformou-se em polêmica acerca da publicação Vota Cultura, um folheto em que o MinC busca sensibilizar os parlamentares e a sociedade para a importância de um conjunto de leis estratégicas para a cultura. O folheto foi classificado, durante a audiência, de “campanha eleitoral antecipada”, embora não cite nomes de candidatos nem recomende votos em nenhum.