É preciso disputar o jovem com o tráfico de drogas. E a tecnologia pode ser a melhor arma. Áurea Lopes
ARede nº56,marçode 2010 – Um forte movimento tomou conta do território da periferia. Consequência do enfraquecimento do Estado, que se retirou de cena com o advento do neoliberalismo, aumentou a hegemonia do tráfico de drogas. Porque, cada vez mais, os jovens, desprovidos de políticas públicas eficazes e exauridos pelas adversidades que assolam as populações pobres, são empurrados para o conflito com a lei. Esse é um panorama que se agrava, na opinião de um especialista no assunto, o psicanalista Jorge Broide, professor do mestrado profissional Adolescentes em Conflito com a Lei, oferecido pela Universidade Bandeirantes (Uniban), que é o primeiro mestrado interdisciplinar na área de Direitos Humanos do país. Desde que começou os estudos em psicologia, em 1976, Broide trabalha com crianças e adolescentes de rua.
De sua experiência, retira o conhecimento profundo dos mecanismos que regem a violência urbana e a fragmentação dos territórios da periferia. Para o pesquisador, a melhor forma de disputar o jovem, cooptado pelas facilidades oferecidas pelo tráfico, é “a criação de canais de comunicação e de circulação da palavra” que possibilitem a construção de alternativas de projetos de vida. E a tecnologia pode ter uma contribuição significativa, como uma ferramenta transformadora no trabalho com a juventude. Nesta entrevista, Broide propõe a construção de redes sociais na periferia “onde a tecnologia gera alternativas de trabalho, cultura e lazer”.
Quem é o jovem que vive na periferia? Em uma realidade com tantas adversidades, ele é capaz de pensar no futuro, de ter sonhos?
Jorge Broide – Estão ocorrendo movimentos muitos fortes na periferia e o jovem está no meio desse furacão. O fenômeno do tráfico de drogas é muito mais grave do que a gente está vendo e oferece ao jovem alternativas aparentemente mais fáceis e rentáveis. A juventude pobre nas periferias faz um grande esforço para sobreviver. É difícil se deslocar na cidade, a escola é problemática, tem poucas perspectivas de trabalho digno, poucas possibilidades culturais e de lazer, o que dificulta a construção de um projeto de vida. O jovem da periferia vive uma corrida de obstáculos. Em casa, ele tem que sobreviver ao conflito familiar; na rua, tem que sobreviver à violência urbana; no caminho para o trabalho – quando tem trabalho – precisa driblar a falta de transporte; se fica doente, não tem vaga no hospital público… enfim, essa corrida é exaustiva, vai exaurindo o sujeito, que vai se fechando em si mesmo e perdendo o contato com o outro. A mãe não tem mais como olhar o filho, não tem mais como dizer que não tem condições de comprar o que ele precisa… O efeito da miséria é muito sério nas relações sociais. Com isso, os laços familiares vão ficando cada vez mais duros e tensos, tendendo à ruptura. Diante de enorme dificuldade de inserção social, muitas vezes o jovem é empurrado para outra forma de sobrevivência. Na verdade, o tráfico vem construindo nas periferias uma hegemonia que abarca também aspectos culturais. Por exemplo, por meio da música, dos bailes, da forma de vestir. E vai criando uma lei própria, regras próprias de convivência, ditando com clareza o que pode e o que não pode ser feito no território sob sua influência.
É como uma adesão compulsória ao crime?
Broide – Existe um território intermediário, em que as pessoas da periferia se situam para sobreviver. Cada vez mais há uma porosidade maior entre o lícito e o ilícito. Esse é um fenômeno captado com muita perspicácia por um grupo de antropólogos da Universidade de São Paulo (Vera Telles, Gabriel Feltran, entre outros). A luta pela sobrevivência faz com que o pessoal que trabalha na rede de serviços da região central da cidade e mora nas periferias também faça “bicos”, por exemplo, os famosos “gatos”, que são instalações elétricas ou de TV a cabo. O mesmo fenômeno ocorre quando uma mulher trabalha na região central, com ou sem carteira assinada, e à noite, ou no final de semana, vende CD pirata. E nem estamos falando aqui no tráfico de drogas, mas de atividades econômicas corriqueiras, de produtos e serviços que não podem ser usufruídos na legalidade devido ao seu preço. Essa senhora não acha que está cometendo crimes, não se sente fazendo nada errado. E isso não tem nada a ver com o aspecto moral. A população fica nessa porosidade entre o lícito e o ilícito simplesmente para sobreviver.
Não é responsabilidade do Estado promover o resgate dessas pessoas?
Broide – Sem dúvida. É preciso a presença efetiva do Estado, que deve fornecer a esses jovens educação, saúde, condições para que eles tenham uma vida digna em seus territórios. Só que o Estado está fora da periferia. Antigamente, antes do neoliberalismo, o Estado era precário nessas regiões. Mas, agora, o Estado nem existe! E essa ausência tem consequências gravíssimas porque abre espaço para o controle do tráfico. A relação mais comum entre o Estado e o território das periferias, mais ainda com os jovens, é pela polícia. Agora é que se está conseguindo começar a articular os grandes programas para os jovens, como Pronasci, Projovem e outros.
Como oferecer uma opção a esses jovens? O que é mais urgente? Educação? Segurança? Saúde?
Broide – Nossa ação deve se dar na contribuição que podemos trazer com nosso conhecimento específico – falo aqui de cada ramo profissional – para a articulação desse território que está fragmentado. Aí me remeto ao que o geógrafo Milton Santos fala sobre a fragmentação do território, a partir da globalização. Existe uma ordem global, que é o neoliberalismo, a concentração financeira, a dominação por uma verticalidade que se origina de pontos em rede, ligados às regiões centrais da economia do planeta e que desterritorializa o cotidiano. Essa ordem global prima pela informação, pela velocidade, pela fluidez com que penetra e transforma a ordem local, gerando uma imensa massa de excluídos. Sua principal característica é a fragmentação do território. Em contraposição à ordem global, há a ordem local, que se caracteriza pela horizontalidade, pela territorialidade, pela contiguidade. É o espaço banal, cotidiano. É onde se dá a intimidade, a solidariedade, a cooperação, a emoção, a afetividade, a comunicação. Para Milton Santos, cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente. É como a dona Maria cuida da vizinha, que toma conta dos netos para a filha ir trabalhar e por aí vai. Então, precisamos urgentemente trabalhar para reterritorializar a periferia.
A dificuldade da constituição de um projeto de país, em um momento em que o tecido social está mais deteriorado e fragmentado em função da pobreza, da miséria e dos processos de globalização, faz os jovens ficarem expostos a toda sorte de riscos, da morte à adesão ao tráfico de drogas como única alternativa de vida. É nessa dinâmica que entra a necessidade das redes, na construção da reterritorialização.
De que forma se faz isso?
Broide – Eu diria que construindo canais de comunicação e de circulação da palavra. Para que um jovem se desenvolva, para que uma comunidade se desenvolva, é importante que a palavra circule. A palavra tem de circular a partir de situações que permitam que um encontre o outro. É assim que se constitui o sujeito. O bebê vai se humanizando na medida em que a mãe fala com ele, vai nomeando o que ele sente. É isso que permite com que ele fale e entenda algo de si mesmo. A palavra permite o pensamento e o simbólico, inclui o sujeito na cultura, na relação com o outro e com o todo social. Nossa experiência diz que, quando a palavra não é possível, o que surge é o ato. Dizendo de outra maneira, no conflito, quando a palavra não é possível, surge, por exemplo, a agressão física. Podemos dizer que a função do Estado é a construção de um tecido social que sustente e gere cada vez mais circuitos para a circulação da palavra. Se o jovem não consegue se expressar em palavras, ele parte para a atuação – que pode ser a violência ou a drogadição. E não é culpa do jovem. Com esse tipo de atuação, ele é porta-voz do que está acontecendo na família dele, na comunidade dele onde as situações estão fragmentadas e não podem ser elaboradas pela conversa, pela arte, pelo trabalho etc.
A tecnologia pode ser um canal eficaz para dar vazão a essa palavra? As redes sociais seriam uma solução?
Broide – Certamente. A tecnologia tem muito a contribuir no que estamos chamando de circulação da palavra, na construção das redes. Uma rede social gera um encontro de outra ordem entre as pessoas. Quando o encontro é permeado pelos ganhos da cultura, proporciona o simbólico. O que se coloca é: como estabelecer espaços na situação geográfica e social vivida pelos jovens, permitindo que a palavra adquira seu potencial de elaboração e transformação? Pois é fundamental que a tecnologia ajude a transformar o mundo para uma coisa melhor, que permita ao sujeito construir alguma coisa, se realizar.
Hoje, um trabalho com jovens na periferia sem inclusão digital não faz sentido. A tecnologia pode possibilitar o encontro entre os jovens, a realização de projetos comuns, a construção de uma vida compartilhada. A tecnologia gera inclusão, conhecimento. Quem não navega na internet está fora de grande parte das relações que existem hoje no mundo. O celular altera enormemente o laço social, as formas de contratação de serviços, a compra e venda de produtos. Se os jovens se apropriassem da tecnologia, poderiam ter uma alternativa de renda, oferecer serviços. A pesquisa que eu faço na Uniban é sobre como a economia solidária pode ser uma alternativa de sobrevivência para o adolescente na periferia. Do ponto de vista da economia solidária, a quantidade de coisas que eles poderiam fazer com tecnologia é imensa.
A escola oferece esse espaço de agrupamento?
Broide – As escolas também são territórios de violência, os professores estão apavorados. Antes eles falavam em nome de uma ordem simbólica que se dá na transmissão da cultura. Hoje o professor fala em nome próprio, sem a sustentação dessa ordem simbólica. Ele é um entre aqueles que estão na sala de aula. Não se diferencia mais o espaço da rua e o da escola. Antigamente, havia um território escolar que tinha suas regras. Agora, vigoram as regras da rua dentro da escola. É preciso fortalecer a escola.
Com a miséria, a falta de acesso à tecnologia não tem o efeito contrário, de exclusão?
Broide – A tecnologia fica entre duas possibilidades – ou se tornar mais um objeto de consumo, ou servir para tecer uma rede de fortalecimento social, de reconstituição do território. Principalmente em se tratando de jovens. Porque a tecnologia tem uma característica espetacular para essa população. Tem uma questão de adrenalina que o tráfico também tem. Então, é um caso de disputa. Temos de disputar esse jovem com o tráfico. O jovem que está no tráfico se sente despossuído de conhecimento para viver fora daquele mundo. A tecnologia pode dar esse conhecimento. E a tecnologia também pode dar voz ao jovem, de fato.
Elevador de vidro
A vida na rua é um universo desconhecido para muitos de nós. Abaixo, um trecho da tese de doutorado de Jorge Broide, “A psicanálise nas situações sociais críticas: uma abordagem grupal à violência que abate a juventude das periferias”, de 2006, em que o psicanalista descreve sua sensação ao conviver com o mundo dos excluídos.
“Ao penetrar nesse mundo, muitas vezes temos a sensação de entrarmos em um elevador de vidro, que nos leva a outro nível, mais abaixo da superfície com certeza. A importância do vidro é porque podemos ver claramente como são planos diferentes. Quando as portas se abrem, e saímos, estamos em um outro mundo, que é o do implícito, do latente. Nesse outro nível, desenvolvem-se as verdadeiras relações da rua. O andar de cima é a aparência transformada, o manifesto. Os sujeitos que nos falam são, então, os porta-vozes da cidade, ou, pelo menos, de uma parte significativa dela”.
Jorge Broide é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), professor do mestrado profissional Adolescentes em Conflito com a Lei, oferecido pela Universidade Bandeirantes (Uniban).Também é presidente do conselho consultivo da Fundação Abrinq.