Obras abertas. Na internet

O Brasil tem um imenso patrimônio cultural que começa a ser colocado à disposição em arquivos digitais, de acesso gratuito. Patrícia Cornils

ARede nº56 , março de 2010 –
“O livro ensinava o segredo do Brasil aos brasileiros, mostrando toda a sua possança, justificando todas as suas pretensões, esclarecendo toda a sua grandeza”. Essa frase é do livro Capítulos de História Colonial, escrito em 1907 pelo historiador João Capistrano de Abreu. E faz referência a outro livro, ainda mais antigo: Cultura e Opulência do Brasil, escrito por um padre jesuíta sob o pseudônimo de André João Antonil. Impresso em Lisboa, no ano de 1711, Cultura e Opulência descrevia as técnicas produtivas vigentes por aqui e comentava as condições sociais e políticas do Brasil. Foi considerado indesejado pela Coroa portuguesa, que mandou destruir todos os exemplares. Sobraram somente sete. Não se sabe ao certo por que a Coroa interditou o livro. A justificativa oficial foi a necessidade de manter segredo sobre as riquezas do Brasil, para protegê-las dos estrangeiros. Capistrano de Abreu, no entanto, argumentou que Portugal, temendo o desejo de independência do Brasil, queria esconder a riqueza do país dos próprios brasileiros.

Hoje, esses dois livros são de domínio público e estão na internet. Fazem parte dos acervos digitais da Biblioteca Brasiliana, da Universidade de São Paulo, e do Portal Domínio Público. Podem ser lidos e baixados, republicados, distribuídos. Trechos podem ser usados em outras obras, inseridos em contextos diferentes daqueles em que foram escritos. Essas amplas possibilidades de apropriação da cultura, propiciadas pelas novas tecnologias, são exemplos do que será discutido no Simpósio Internacional de Políticas Públicas para Acervos Digitais, que vai acontecer de 26 a 29 de abril, em São Paulo, sob organização do Ministério da Cultura (MinC) e da Biblioteca Brasiliana.

José Murilo Jr., responsável pela área de cultura digital do MinC, conta que o objetivo do encontro é construir colaborativamente um Plano Nacional de Digitalização de Acervos. O debate, complexo, envolve temas que vão desde seleção, recuperação, catalogação, digitalização, armazenamento e publicação dos acervos até direitos autorais. Mas por que a área de cultura digital do MinC está se ocupando desse setor? Primeiro, porque uma política pública voltada à cultura digital não se esgota em programas de inclusão digital. Diz respeito também, entre outras coisas, à oferta de conhecimentos de domínio público por meio das plataformas digitais, explica Rogério Santana Lourenço, mediador do eixo de debates sobre Memória Digital do Fórum da Cultura Digital. “Uma política de digitalização de acervos é indispensável para permitir uma circulação inédita de registros de nossa memória cultural, de imagens, gráfica e textual”, avalia ele.

No Brasil, boa parte desse patrimônio cultural é conhecida apenas por acadêmicos ou especialistas. “Temos uma riqueza grande de documentos, bibliotecas e produção cultural. Mas o grande público desconhece”, explica Carlos Augusto Silva Ditadi, especialista em gestão e preservação de documentos digitais da Coordenação-Geral de Gestão de Documentos do Arquivo Nacional. É nesse ponto que os arquivos históricos se encontram com a cultura digital.

O Arquivo Nacional, por exemplo, participa de diversas iniciativas para colocar seu acervo ao alcance da população, pela internet. Uma é o programa Memórias Reveladas, formado por uma rede de instituições que guarda acervos sobre as lutas políticas no Brasil. Outro é o portal Zappiens, onde o Arquivo Nacional colocou cerca de 300, dos 900 cinejornais produzidos pela Agência Nacional, órgão de propaganda do governo federal, entre os anos 1930 e 1970. A Cinemateca Brasileira tem o maior acervo de imagens em movimento da América Latina, cerca de 200 mil rolos de filmes, que correspondem a 30 mil títulos. Esse acervo está sendo digitalizado e o projeto é colocar tudo na internet. Recentemente, a Biblioteca Brasiliana postou na web todos as obras de José de Alencar.

Mas não basta permitir a visualização desses conteúdos. “Se estamos falando de acervos públicos, sob a ótica da cultura digital, estamos falando de possibilidades tecnológicas apropriadas e transformadas em cultura de uso”, explica Murilo. Para que essa apropriação aconteça, o acesso é só o começo. “A ideia é promover o uso qualificado desses conteúdos, facilitando e fomentando processos como reprocessamento, republicação, reindexação, recontextualização, remix”, diz ele. Ou seja, promover a inovação e o diálogo aberto sobre todo o patrimônio simbólico nacional por meio de ferramentas digitais interativas.

No caso da digitalização de acervos, o Brasil ainda precisa de definições complicadas, relativas a toda a cadeia de produção, guarda e circulação desses objetos. O pesquisador Carlos Seabra listou, no Fórum da Cultura Digital, alguns aspectos que precisam ser considerados: interoperabilidade de acesso aos acervos, compartilhamento, federação de conteúdos, integração de ações; plataformas colaborativas, hospedagem de acervos livres, servidores de streaming, pontos de troca de tráfego, integração internacional (principalmente com países de língua portuguesa); incentivo, político e financeiro, à digitalização de conteúdos, à abertura de acervos, e fomento à disponibilização e liberação de direitos autorais; incorporação de acervos da cultura oral, folclore, histórias de vida, com integração contextual de acervos de arte e cultura reconhecidos com a cultura popular; criação de mecanismos e processos permanentes e estrututados que assegurem a continuidade e a permanência dos investimentos e ações.

Diante de um longo caminho a ser percorrido, o debate a ser realizado no simpósio é o primeiro passo. Deve ampliar o diálogo entre as instituições públicas detentoras de acervos e começar a devassar esse cipoal de questões, para colocar à disposição do público um patrimônio enorme, uma riqueza já preservada pelo país e que precisa ser conhecida pelos brasileiros.

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