13/06/2012 – Carta aberta de Richard Stallman,presidente da Free Software Foundation, a José Sarney, presidente do Sebnado, fala sobre a CPI do Ecad e a reforma da lei de direitos autorais.
Caro Senador José Sarney,
Conhecemo-nos em 2003 quando abrimos juntos o seminário “O Software
Livre e o Desenvolvimento do Brasil” no Congresso Brasileiro. Estou
escrevendo a Vossa Excelência porque o debate no Brasil sobre a lei de
direitos autorais criou uma oportunidade única.
A Comissão Parlamentar de inquérito para investigar as associações de
gestão coletiva (“CPI do ECAD”) descobriu a existência de corrupção
nas sociedades de arrecadação de direitos autorais no Brasil. Mais
importante, verificou que o sistema de arrecadação de direitos
autorais no Brasil é disfuncional: carece de transparência, eficiência
e a boa governança.
O Brasil está agora pronto para reformar esse sistema. A CPI do ECAD
elaborou uma proposta legislativa para exigir que as sociedades sejam
transparentes e eficientes e utilizem as possibilidades da era da
Internet para melhorar os serviços oferecidos aos seus membros e à
sociedade em geral.
Como seria possível ao sistema de arrecadação de direitos autorais
beneficiar a sociedade como um todo? Gostaria de aproveitar esta
oportunidade para sugerir ir além: legalizar o compartilhamento de
obras publicadas em troca de uma taxa fixa coletada dos usuários de
Internet ao longo do tempo.
Quando eu digo “compartilhamento”, quero especificamente dizer a
redistribuição não- comercial de cópias exatas de obras publicados –
por exemplo, por meio de redes peer- to-peer. O caso principal é
aquele em que os que estão compartilhando não recebem nenhum
rendimento por fazê-lo; casos limítrofes, como o do Pirate Bay (que
recebe dinheiro de publicidade), não precisam ser incluídos.
Reconhecer a utilidade para a sociedade do compartilhamento entre
cidadãos de arquivos na Internet será um grande avanço, mas esse plano
levanta uma segunda pergunta: como usar os fundos recolhidos? Se
usados corretamente, os recursos podem fornecer um segundo grande
avanço – de apoio às artes.
Editoras (num sentido geral, de livros ou outros meios) normalmente
propõem usar o dinheiro para “compensar” os “titulares de direitos” –
duas más ideias juntas. “Titulares de direitos” é uma forma
dissimulada de direcionar o dinheiro principalmente a empresas
intermediárias, com apenas poucos resíduos chegando aos
artistas. Quanto a “compensar”, o conceito é inadequado, pois
significa pagar alguém para realizar um trabalho ou compensá-lo por
ter lhe “tomado” algo. Nenhuma dessas descrições aplica-se à prática
do compartilhamento de arquivos, uma vez que ouvintes e espectadores
não contratam editores ou artistas para realizar um trabalho e o
compartilhamento de mais cópias não toma qualquer coisa deles.
(Quando eles afirmam ter “perdido” dinheiro, é em comparação aos seus
sonhos sobre quanto poderiam ter conseguido.) Editoras usam o termo
“compensação” para desviar a discussão a seu favor.
Não há nenhuma razão ética para “compensar” o compartilhamento de
arquivo pelos cidadãos, mas apoiar artistas é útil para as artes e
para a sociedade. Assim, a melhor maneira de implementar um sistema
de taxação por licenças de compartilhamento é projetar a distribuição
do dinheiro arrecadado de modo a apoiar as artes com eficiência. Com
esse sistema, artistas se beneficiarão ainda mais quando as pessoas
compartilharem seu trabalho e favorecerão o compartilhamento.
Qual é a maneira mais eficiente de apoiar as artes com esses recursos?
Em primeiro lugar, se o objetivo é apoiar artistas, não dê os recursos
para editoras. Apoiar as editoras faz pouco pelos artistas. Por
exemplo, as gravadoras pagam à maioria dos músicos pouco ou nada do
dinheiro que vem da venda de discos: contratos de venda de álbuns são
escritos ardilosamente de modo que os músicos não comecem a receber a
“sua” parte até que um álbum venda um número enorme de cópias. Se
fundos de compartilhamento de arquivos fossem distribuídos para as
gravadoras, não atingiriam os músicos. Contratos editoriais literários
não são tão ultrajantes, mas até mesmo autores de best-sellers podem
receber pouco. O que a sociedade deve fazer é apoiar melhor os
artistas e autores, não as editoras.
Proponho, por conseguinte, distribuir os recursos exclusivamente aos
participantes criativos e garantir em lei que os editores não possam
tomá-los nem deduzi-los do dinheiro devido aos autores ou artistas.
O imposto serai cobrado inicialmente pelo provedor de serviços de
Internet do usuário. Como ele seria transferido para o artista? Ele
pode passar pelas mãos de uma Agência de Estado; pode até mesmo passar
por uma sociedade de gestão coletiva, desde que as sociedades
arrecadadoras sejam reformadas e que qualquer grupo de artistas possa
começar a sua própria.
Artistas não devem ser compelidos a trabalhar por meio das sociedades
de gestão coletiva existentes, porque elas podem ter regras
antissociais. Por exemplo, as sociedades de gestão coletiva de alguns
países europeus proíbem seus membros de publicar qualquer coisa sob
licenças que permitam o compartilhamento (proíbem, por exemplo, o uso
de qualquer uma das licenças Creative Commons). Se o fundo do Brasil
para apoiar artistas incluir artistas estrangeiros, eles não deveriam
ser obrigados a juntar-se às sociedades de gestão a fim de receber
suas parcelas dos fundos brasileiros.
Qualquer que seja o caminho que o dinheiro siga, nenhuma das
instituições na cadeia (provedores de internet, Agência de Estado ou
entidade de gestão) pode ter qualquer autoridade para alterar a
parcela que vai para cada artista. Isto deve ser firmemente definido
pelas regras do sistema.
Mas quais devem ser estas regras? Qual é a melhor maneira para
repartir o dinheiro entre todos os artistas?
O método mais óbvio é calcular a quota de cada artista em proporção
direta à popularidade da sua obra (popularidade pode ser medida
convidando 100.000 pessoas escolhidas aleatoriamente para fornecer
listas de obras que têm escutado, ou por medição da partilha de
arquivos peer-to-peer). Isso é o que normalmente fazem as propostas de
“compensação dos detentores de direitos”.
Entretanto, esse método de distribuição não é muito eficaz para
promover o desenvolvimento das artes, pois uma grande parte dos fundos
iria para alguns poucos artistas muito famosos, que já são ricos ou
pelo menos têm uma situação confortável, deixando pouco dinheiro para
dar suporte a todos os artistas que realmente precisam de mais.
Em vez disso, proponho pagar cada artista de acordo com a raiz cúbica
de sua popularidade. Mais precisamente, o sistema poderia medir a
popularidade de cada obra, dividir essa medida entre os artistas
envolvidos na obra para obter uma medida para cada artista e, em
seguida, calcular a raiz cúbica dessa medida e fixar a parte do
artista em proporção ao valor resultante.
O efeito da fase de extração da raiz cúbica seria aumentar as
participações dos artistas moderadamente populares, reduzindo as
participações dos grandes astros. Cada superstar individual ainda
iria obter mais do que um artista comum, até mesmo várias vezes mais,
mas não centenas ou milhares de vezes mais. Transferir fundos para
artistas moderadamente populares significa que uma determinada soma
total oferecerá suporte adequadamente a um número maior de
artistas. Além disso, o dinheiro beneficiará mais as artes porque vai
para os artistas que realmente precisam dele.
Promover a arte e a autoria apoiando os artistas e autores é uma meta
adequada para uma taxa de licença de compartilhamento, pois é a
própria finalidade dos direitos autorais.
Uma última pergunta é se o sistema deveria apoiar artistas e autores
estrangeiros. Parece justo que o Brasil demande reciprocidade de
outros países como uma condição para dar suporte a seus autores e
artistas, porém acredito que seria um erro estratégico. A melhor
maneira de convencer outros países a adotarem um plano como esse não é
pressioná-los através de seus artistas – que não vão sentir a falta
desses pagamentos, por que não estão acostumados a receber qualquer
pagamento —, mas sim educar seus artistas sobre os méritos deste
sistema. Incluí-los no sistema é a maneira de educá-los.
Outra opção é incluir autores e artistas estrangeiros, mas reduzir seu
pagamento para 1/10 do valor original se seus países não praticarem a
cooperação recíproca. Imagine dizer a um autor que “você recebeu
US$50 de taxa de licença de compartilhamento do Brasil. Se seu país
tivesse uma taxa de licença de compartilhamento semelhante e fizesse
um acordo de reciprocidade com o Brasil, você teria recebido US$500,
mais o montante arrecadado em seu próprio país”. Esses autores e
artistas começariam a defender o sistema brasileiro em seu próprio
país, além da reciprocidade com o Brasil.
Eu sei de um impedimento possível à adoção deste sistema: Tratados de
Livre Exploração, como aquele que estabeleceu a Organização Mundial do
Comércio. Estes são projetados para fazer os governos agirem em
benefício dos negócios, e não das pessoas; eles são os inimigos da
democracia e do bem-estar da maioria (agradecemos a Lula por salvar a
América do Sul da ALCA). Alguns deles exigem “compensação para
titulares de direitos” como parte de sua política geral de favoritismo
dos negócios.
Felizmente este impedimento não é intransponível. Se o Brasil
encontrar-se compelido a pagar pela meta equivocada de “compensar os
titulares de direitos”, pode mesmo assim adotar o sistema apresentado
acima *adicionalmente*.
O primeiro passo em direção ao fim de um domínio injusto é negar sua
legitimidade. Se o Brasil for compelido a “compensar os titulares de
direitos”, deve denunciar essa instituição como falha e render-se a
ela somente até que possa ser abolida. A denúncia poderia ser disposta
no preâmbulo da própria lei, da seguinte maneira:
Considerando que o Brasil pretende incentivar a prática útil e
benéfica do compartilhamento de obras publicadas na Internet.
Considerando que o Brasil é compelido pela Organização Mundial do
Comércio a pagar aos titulares de direitos pelo resgate dessa
liberdade, mesmo que ao fazer isto promova principalmente o
enriquecimento de editores, ao invés de apoiar artistas e autores.
Considerando que o Brasil ainda não está pronto para romper com a
Organização Mundial do Comércio e não está no momento em condições de
substituí-la por um sistema justo.
Considerando que o Brasil deseja, paralelamente ao requisito imposto,
apoiar artistas e autores de forma mais eficiente do que o atual
sistema de direitos autorais é capaz de fazer.
O plano ineficiente e mal direcionado da “compensação” não precisa
excluir o objetivo útil e eficiente de apoiar as artes. Assim, que se
implemente o plano sugerido acima para apoiar diretamente os artistas,
pelo bem da sociedade; e que se implemente paralelamente a
“compensação” exigida pela OMC, porém somente enquanto a OMC detiver o
poder de impô-la. A lei poderia até dizer que o sistema de
“compensação” será descontinuado logo que nenhum tratado o exija.
Isso vai começar a transição para um novo sistema de direitos autorais
adaptado à era da Internet.
Obrigado por considerar estas sugestões.
Dr Richard Stallman
President, Free Software Foundation
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