Com diretores e equipe técnica oriundos das favelas do Rio de Janeiro, o filme 5 Vezes Favela, Agora Por Nós Mesmos supera os clichês sobre a vida na pobreza e desfila no tapete vermelho de Cannes. Mariana Lacerda
ARede nº59, junho 2010 – O filme 5 vezes favela, agora por nós mesmos passou em sessão especial no último Festival de Cinema de Cannes, em maio. Embora fora de competição, foi o único filme brasileiro exibido este ano num dos mais importantes eventos do mundo dedicado à imagem em movimento. O filme foi aplaudido por uma platéia de convidados exigente e especializada de mais de 600 pessoas. Trata-se de um sinal bem claro de que o fazer cinema está chegando, enfim, às classes menos favorecidas do país. O longa-metragem é uma criação coletiva de um grupo de moradores de favelas cariocas.
Originalmente, o projeto é uma idéia da produtora Renata de Almeida Magalhães e do cineasta Carlos Diegues, o Cacá Diegues. Há 48 anos, Diegues, Leon Hirszman, Miguel Borges, Joaquim Pedro de Andrade e Marcos Farias juntaram-se e fizeram o 5 vezes favela, peça de destaque do então Cinema Novo e que conta cinco histórias curtas apresentadas em um só filme.
5 vezes favela, agora por nós mesmos é então uma nova versão do antigo projeto de Diegues e seus amigos, “burgueses engajados”, declarou Diegues durante entrevista em Cannes. A nova versão do filme também tem cinco episódios: Fonte de renda, de Manaíra Carneiro e Wagner Novais; Arroz com feijão, de Rodrigo Felha e Cacau Amaral Wesley; Concerto para violino, de Luciano Vidigal; Deixa voar, de Cadu Barcelos; e Acende a luz, de Luciana Bezerra.
Em comum, os filmes têm o convívio humano e social em cada comunidade em que se inserem. No fim, os curtas dentro do longa são permeados por temas como ética e educação, amizade e amor, solidariedade e tolerância, família e comunidade. A violência está presente, e talvez nem pudesse ser diferente, mas sua presença constante é sutil – como acontece na vida cotidiana dos moradores de favela.
Na opinião do cineasta e crítico de cinema Kleber Mendonça Filho, que acompanhou a exibição em Cannes do 5 vezes favela, agora por nós mesmos, “o filme tem um resultado dos mais felizes”. Ele destaca a honestidade em todas as cinco histórias, assim como a competência em contá-las. Histórias pequenas, mas que espelham a idéia do que pode ser viver em uma classe social menos favorecida – ou, em outras palavras, estar à margem do Brasil.
MARMITA E PIPA
Em Fonte de renda, por exemplo, o primeiro episódio do filme, um estudante entra no curso de Direito e começa a perceber os conflitos que surgem quando se ingressa numa esfera de convívio que originalmente não é a sua. O episódio Arroz com feijão traz uma trama familiar: um garoto ouve do pai que ele não aguenta mais levar todos os dias a mesma marmita para o trabalho e resolve arranjar uma galinha para incrementar o cardápio doméstico. No final, mais do que falar de comida e marmita, tem-se um filme poético sobre infância e memória.
Em Deixa voar, vemos amigos empinando uma pipa, que cai na área vizinha à favela, dominada por outro grupo. Os meninos vão buscar a pipa e no lugar de tiros o que se tem são trocas de cordialidade, apertos de mão e um clima romântico despretensioso entre os meninos de cá e as meninas de lá.
Deixa voar acena para um final delicado da nova versão de 5 vezes favela, que é alcançado com o último episódio, Acende a luz, dirigido pela cineasta mais conhecida do grupo, oriunda do Nós do Morro e responsável pelo premiado curta Mina de fé. Agora, Luciana Bezerra filma um natal de calor e sem luz no Vidigal.
Processo
O reconhecimento de Cannes faz sentido não somente pela natureza dos cinco filmes, que tratam de pequenas tramas sociais (no lugar já conhecido de grandes tramas entre bandidos e policiais), mas também pela qualidade técnica e narrativa do trabalho. O resultado vem de um longo processo, iniciado há quatro anos pela produtora de Cacá Digues, a Luz Mágica, situada no Rio de Janeiro.
Primeiro, explica Diegues, houve uma ação no sentido de mobilizar comunidades para aprender a fazer cinema. Assim, a Central Única das Favelas (CUFA) em Cidade de Deus, o Nós do Morro, no Vidigal, o Observatório de Favelas (no Complexo da Maré), o AfroReggae (em Parada de Lucas) e o Cidadela/Cinemaneiro (com sede na Lapa, reunindo moradores de várias comunidades da Linha Amarela), entraram como parceiros do projeto.
A Luz Mágica organizou oficinas de roteiro, direção, produção, fotografia, arte, edição, finalização e interpretação, com os melhores técnicos e artistas de cada área. No total, 6.603 jovens moradores de favelas se inscreveram para essas oficinas, escolhendo as áreas de atividade de sua preferência. Destes, 229 foram selecionados. Dos alunos das oficinas, 84 foram escolhidos, por seu aproveitamento e currículo, para fazer parte da equipe técnica do filme, constituída por moradores das diversas comunidades participantes do projeto. Os temas das histórias foram escolhidos durante as oficinas de roteiro, assim como o grupo de diretores.
Em um comunicado à imprensa, os produtores de 5 vezes favela, agora por nós mesmos mostram-se contentes não apenas com o resultado do filme em Cannes, mas também com o seu processo de execução. Não basta liberdade para que exista democracia, é preciso também que haja oportunidade para que essa liberdade possa ser usada”.
diretores responsáveis pelos cinco curtas
Arroz com feijão
• Cacau Amaral, 36 anos, rapper e escritor ligado à Central Única das Favelas (CUFA), participou de curta-metragens e videoclipes realizados pela entidade. É um dos diretores do documentário Um ano e um dia, sobre ocupação de terra, que ganhou prêmios em vários festivais, como o Jovens Realizadores do Mercosul e a Mostra do Filme Livre, em 2005.
• Rodrigo Felha, 30 anos, é morador da Cidade de Deus e um dos coordenadores do Curso de Audiovisual da CUFA. Foi câmera e trabalhou na produção do documentário Falcão, meninos do tráfico. Trabalha com Cacau Amaral desde 2003, quando realizaram juntos o clipe Ataque verbal, da banda Baixada Brothers, liderada por seu parceiro.
Deixa voar
• Cadu Barcellos, 22 anos, integra o grupo Observatório de Favelas, do Complexo da Maré, onde também mora. Fez o curso de audiovisual da Escola de Cinema Darcy Ribeiro e dirigiu um curta para o Canal Futura.
Concerto para violino
• Luciano Vidigal, 29 anos, faz cinema e teatro há 19 no grupo Nós do Morro, no Vidigal, onde nasceu e mora. Escritor, diretor e ator, dirigiu o curta-metragem Neguinho e Kika, que ganhou vários prêmios, inclusive o de melhor filme nesta categoria no Festival de Marselha, na França.
Fonte de renda
• Manaíra Carneiro, 21 anos, a mais jovem do grupo, mora no bairro carioca de Higienópolis, na Zona Norte, e teve sua primeira experiência com cinema em curso do Cinemaneiro realizado em sua comunidade, em 2002. Terminou a Escola Técnica de Audiovisual e dirigiu o curta Café sem chantilly, com o grupo Cinemaneiro. Cursa a Faculdade de Estudos Culturais e Mídia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e é integrante da OSCIP Cidadela – Arte, Cultura e Cidadania.
• Wavá Novais, 25 anos, morador da Taquara, estuda Cinema na Univesidade Estácio de Sá. Já dirigiu três curtas em vídeo. Participou também de algumas produções em sua universidade e no grupo Cinemaneiro, atuando em várias funções, de assistência de direção a produção. A última experiência nesse grupo foi em parceria com Manaíra Carneiro.
Acende a luz
• Luciana Bezerra, 34 anos, mora no Vidigal e é uma das coordenadoras do grupo Nós do Morro. Já atuou em diversas áreas do cinema, como produção, figurino e direção de arte. Como diretora, realizou alguns curtas, entre os quais Mina de fé, premiado com menção honrosa no Festival do Rio e como melhor curta do Festival de Brasília, ambos em 2004.