A memória cultural brasileira, em bits e bytes.
O enorme e diverso patrimônio cultural brasileiro ainda é invisível para a maioria, mas a digitalização dos acervos promete mudar essa realidade. Patrícia Cornils
ARede nº60, junho 2010 –Muita gente acredita que o Brasil é um país sem memória. É verdade que, às vezes, cuidamos mal de nosso patrimônio – neste momento, por exemplo, documentos do século XVII estão expostos à maresia e ao perigo de incêndio no Arquivo Municipal de Salvador. Mas o patrimônio existe e é tão grande quanto desconhecido. Quem sabe o que é o Arquivo Nirez? É uma coleção privada cearense de 22 mil discos de 78 rotações (os chamados discos de cera), uma das mais completas coleções de música brasileira do início do século XX. E quem sabe que a Biblioteca Nacional Brasileira, com um acervo de 9 milhões de itens, é considerada pela Unesco a oitava maior biblioteca nacional do mundo? E que está na Cinemateca Brasileira o maior acervo de imagens em movimento da América Latina, com 30 mil títulos?
Agora mesmo, em todo o país, pessoas fazem música e filmes, realizam e registram suas festas tradicionais e jovens gravam velhos contando até histórias de antes da criação do mundo. Tudo isso faz parte da nossa enorme e diversificada memória cultural. Que é invisível para a maioria dos brasileiros. Este patrimônio é desconhecido porque está disperso e porque, nos casos em que se encontra organizado e catalogado, é de difícil acesso. Dados do IBGE, divulgados em 2008, mostram que 92% dos brasileiros nunca frequentaram museus e que 93,4% dos brasileiros jamais frequentaram alguma exposição de arte. A mesma pesquisa mostra que somente 21,9% dos municípios brasileiros têm um museu e que, dos 2,5 mil museus cadastrados, 964 estão na região Sudeste. A Biblioteca Nacional fica no Rio de Janeiro. A Cinemateca Brasileira fica em São Paulo. Como tornar isso tudo acessível a todos os brasileiros?
No caso da Biblioteca Nacional e da Cinemateca Brasileira, suas obras podem ser vistas fora do eixo Rio-São Paulo só porque foram digitalizadas e colocadas na internet. A resposta é essa: transformar a memória brasileira em bits e colocá-la na rede, único caminho para que ela seja apropriada por todos os brasileiros. “A digitalização aparece como uma tecnologia capaz de conciliar um dilema dos preservadores das coleções, dos acervos públicos, das bibliotecas”, diz Pedro Puntoni, coordenador do projeto Brasiliana USP. Esse dilema é a “obrigação de conservar e preservar os acervos para as futuras gerações e, ao mesmo tempo, o imperativo de garantir o acesso às presentes gerações”. De acordo com Puntoni, a tendência de digitalizar os acervos ganha força, hoje, com a redução do custo da tecnologia necessária e o aparecimento de novas soluções para digitalizar e conservar obras raras. Assim, o que pode parecer uma questão meramente técnica – quais tecnologias usar para digitalizar os acervos e como publicá-los na rede – torna-se, na verdade, um dos mais importantes desdobramentos da conexão entre as palavras “cultura” e “digital”, feita por Gilberto Gil quando ele assumiu, em 2003, o Ministério da Cultura (MinC). “Essa apropriação, pelo MinC, de um assunto que antes fazia parte dos domínios da ciência, da tecnologia e das comunicações traz novas e enormes possibilidades de produção e acesso à cultura”, afirma Eliane Costa, gerente de patrocínios do Programa Petrobras Cultural.
No caso do patrimônio cultural, para que essas novas possibilidades se tornem realidade, é preciso elaborar uma política pública para digitalizar milhões de livros, filmes, jornais, música, partituras, manuscritos e muitos mais objetos da produção cultural brasileira – e colocar tudo isso na internet. Por que é preciso ter uma política pública para isso? Primeiro, porque cabe ao Estado garantir à sociedade os meios de acesso a sua própria produção cultural. Segundo, porque os investimentos públicos na digitalização de acervos precisam garantir que eles fiquem, realmente, ao alcance do público.
“O foco de nossa política precisa ser o acesso”, repete, sempre que fala no assunto, José Murilo Jr., responsável pela área de Cultura Digital no MinC. Acesso, neste caso, não se refere apenas à publicação na internet. Falar de acervos públicos sob a óptica da cultura digital significa falar em “possibilidades tecnológicas apropriadas e transformadas em ‘cultura de uso’”, explica Murilo. Para isso, é necessário pensar, sempre, no que ele chama de “uso qualificado” dos conteúdos, ou seja, na possibilidade de colocá-los novamente em circulação na nossa produção cultural, por meio de reprocessamento, republicação, reindexação, uso em novos contextos, remix. “Precisamos promover a inovação e o diálogo aberto sobre todo o patrimônio simbólico nacional, fazendo uso intensivo de ferramentas digitais interativas”, acredita Murilo. Trata-se de aplicar à área da cultura o modelo de dados abertos – em que os dados de governos ficam à disposição da sociedade, em formatos não proprietários, para serem usados das mais variadas formas.
As decisões que levam esses acervos até o usuário envolvem uma enorme cadeia de processos, que vai de seleção, recuperação, catalogação (ou indexação), digitalização e armazenamento até oferta de acervos. Sem falar no gerenciamento dos direitos autorais envolvidos. A biblioteca Brasiliana Digital, formada pelas obras do acervo doado por Guita e José Mindlin à Universidade de São Paulo, trabalha com seis princípios, enumerados no site da biblioteca, que vão desde ser um instrumento de uma política nacional de produção de conteúdos para a rede mundial de computadores até o compromisso de democratizar sua experiência, aderindo aos princípios do software livre. E passa também pelo compromisso de ser um instrumento da educação, produzindo materiais didáticos e formando quadros em todos os níveis, desde o ensino fundamental até a pesquisa avançada.
O debate sobre como lidar com nossos acervos digitalizados foi iniciado pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br) em 2007, com a promoção do Seminário sobre Conteúdos Digitais na Internet. Na época, a preocupação do CGI.br era valorizar a produção brasileira na internet. O memorando de 15 pontos que resultou do seminário foi a base dos princípios adotados pela Brasiliana. Depois, a partir de outubro de 2008, o MinC e a Rede Nacional de Pesquisas (RNP) começaram a desenvolver um projeto-piloto para consolidar a entrada do MinC no Programa Interministerial da RNP, do qual o Ministério da Educação e o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) fazem parte.
A RNP opera, desde 1991, uma infraestrutura que provê a comunicação e a colaboração entre instituições federais de ensino e pesquisa e é mantida com recursos dos ministérios da Educação e da Saúde. Ao aderir ao programa, o MinC vai contribuir, também, para a ampliação e manutenção dessa rede. Na parte de infraestrutura, o objetivo central do projeto é conectar à rede, com banda de 1 Giga, um conjunto de instituições do sistema MinC. E as 11 instituições escolhidas para isso são justamente as mantenedoras de acervos da cultura brasileira. “A parceria com a RNP foi fundamental para nos provocar”, explica Murilo, porque a coordenação de cultura digital do MinC surgiu a partir dessa parceria. E uma das principais missões dessa coordenação, hoje, é a elaboração da política pública de digitalização de acervos.
Em abril, o MinC realizou, em São Paulo, o Simpósio Internacional de Políticas Públicas de Acervos Digitais, onde reuniu especialistas e profissionais para debater experiências, conceitos e soluções. Duas preocupações dominaram esse encontro, explica Murilo: de um lado, há uma grande demanda pela integração de projetos que hoje estão em curso em diversas instituições; de outro, é preciso sintonizar o debate técnico (quais soluções tecnológicas adotar) e o debate político (a necessidade de universalizar e qualificar o acesso) neste setor. “É realmente importante a integração de esforços”, acrescenta Ângela Bittencourt, coordenadora da Biblioteca Nacional Digital, enumerando duas prioridades: “evitar a digitalização de documentos iguais por várias instituições, privilegiando, em vez disso, a especificidade de cada uma delas; e garantir a interoperabilidade das iniciativas”.
A digitalização de acervos públicos começou há menos de uma década no Brasil e ainda é feita de maneira isolada, sem diálogo entre as diversas instituições. Na Biblioteca Nacional, os primeiros projetos foram realizados em 2001, com o patrocínio de instituições estrangeiras (Unesco, Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos e Fundação Getty) e brasileiras, como a Financiadora de Estudos e Projetos do Estado de São Paulo (Fapesp). A Biblioteca Nacional ainda não tinha uma política de digitalização e as primeiras iniciativas privilegiaram acervos temáticos, como o de mapas raros e as fotografias da coleção Dona Tereza Cristina Maria, doada à biblioteca em 1891, pelo imperador Dom Pedro II.
Hoje, a instituição conta com um sofisticado laboratório de digitalização e um portal chamado Biblioteca Nacional Digital (BN Digital). Criada em 2006, a BN Digital reuniu todos os projetos anteriores em um só banco de dados e, há dois anos, adotou padrões de catalogação e digitalização, para permitir a interoperabilidade com outras bibliotecas. Graças à possibilidade de outras instituições “lerem” seus metadados e a acordos de parceria realizados pela BN Digital, documentos do acervo brasileiro estão no catálogo da Biblioteca Digital da Unesco e da Gallica, a biblioteca digital da Biblioteca Nacional da França. “Duas de nossas obras, um mapa da Espanha e uma fotografia da Coleção Teresa Cristina, estão entre os cinco documentos mais acessados da biblioteca da Unesco”, comemora Bittencourt.
Desde 2002, quando financiou seus primeiros projetos no segmento de digitalização de acervos (o Arquivo Nirez, do Ceará, foi um deles), a Petrobras patrocinou mais de 200 projetos, inclusive acervos imateriais, como os acalantos de mulheres indígenas do Rio Negro. Onde estão essas obras? A empresa não tem como garantir que continuem na internet depois de encerrado seu contrato com as instituições que realizaram a digitalização. Outro dos temas a serem debatidos na política pública é a possibilidade de criação de uma infraestrutura de hospedagem desses dados. “Onde antes existia o técnico de informática, hoje temos uma equipe de tecnologia da informação e um centro de dados apropriado para guardar o acervo e suportar a demanda por acesso dos usuários”, explica Patrícia de Filippi, coordenadora do laboratório de restauro da Cinemateca Brasileira.
A Cinemateca foi a primeira instituição a receber a conexão de 1 Giga da RNP. Em seus servidores, há 54 Terabytes de material digitalizado. A digitalização de seu acervo faz parte de um processo que começa na restauração e conservação de filmes, geração de novas matrizes e a colocação desse acervo, em baixa resolução, na internet. O Banco de Conteúdos Audiovisuais Brasileiros (BCA), criado dentro de um acordo de cooperação técnica entre o MinC e o MCT (o mesmo que vai resultar na participação do MinC na RNP) — Esta informação está errada, veja correção no final da matéria), vai receber o conteúdo de várias iniciativas em andamento na Cinemateca, em conjunto com outras instituições. Um exemplo são os filmes do Instituto Nacional de Cinema (Ince) realizados entre 1930 e 1950. Equipes da Cinemateca e do Centro Técnico Audiovisual (CTAv), no Rio de Janeiro, vão digitalizar o acervo do Ince. Além disso, a Cinemateca está digitalizando o arquivo da extinta TV Tupi; os acervos que o MinC adquiriu das companhias produtoras de cinema Vera Cruz e Atlântida; e 130 mil fotografias de seu acervo.
É preciso formar uma rede de instituições para outras iniciativas conjuntas e para criar, com todo este conteúdo, um portal da cultura brasileira. Esta é a ideia do MinC, que começa agora a desenvolver um protocolo que permita a pesquisa nesse universo digital. Hoje, não há padrões que permitam a visualização desses acervos por uma só ferramenta de busca. Seria um “Google” da cultura brasileira. Com seu Google Books, o Google pretende criar um grande catálogo da produção mundial impressa. O resultado de uma busca neste acervo será organizado de acordo com os interesses comerciais do Google. Um grande catálogo da produção cultural brasileira – não somente de acervos públicos, mas também da produção cultural independente – poderia organizar resultados de acordo com sua relevância para a construção da identidade do país. Ou de acordo com quaisquer outros critérios relevantes para essa identidade – o que constitui um outro grande debate, embutido em todas as questões exploradas nesta reportagem. E desse debate, todos os brasileiros deveriam participar.
As instituições que a RNP vai conectar
Erramos — O texto acima afirma que “o Banco de Conteúdos Audiovisuais (BCA) [foi] criado dentro de um acordo de cooperação técnica entre o MinC e o MCT (o mesmo que vai resultar na participação do MinC na RNP)”. Na verdade, a entrada do Ministério da Cultura (MinC) no Programa Interministerial da Rede Nacional de Pesquisa (RNP) é uma coisa e o Termo de Cooperação Técnica para o Banco de Conteúdos Audiovisuais (BCA) é outra. O Termo de Cooperação foi firmado em junho de 2009 e a iniciativa anunciada, mas o BCA ainda não foi criado. Já as ações do MinC com a RNP se iniciaram em outubro de 2008. Veja os links abaixo:
Cooperação Técnica Ministérios da Cultura e da Ciência e Tecnologia firmam parceria na área digital.