Entrevista

Grupo de professores constata que só o software livre pode contribuir para uma educação inclusiva Patrícia Cornils

ARede nº61, agosto 2010 – Muitos professores acreditam que software livre é sinônimo de “produto barato, de qualidade inferior, sem assistência técnica”. Essa crendice é reforçada pela propaganda dos fabricantes de software educacional proprietário junto às escolas, mas há um antídoto: um dos objetivos do grupo Software Livre Educacional (SLE), criado há três anos por um grupo de educadores interessados em tecnologia, é justamente mostrar que o software livre “é bom, bonito, fácil de usar, funciona e tem tudo a ver com uma discussão mais ampla sobre educação”.

A contra-definição é de Frederico Guimarães, um dos fundadores do SLE e seu atual coordenador. “Somos educadores que trabalham com software livre”, diz ele, lembrando que, antes da criação do grupo, “as discussões eram só técnicas ou só pedagógicas”. Para Guimarães, o
software livre é “mais um movimento do que uma questão técnica”, porque abre um debate sobre a apropriação compartilhada do conhecimento. No ano passado, em entrevista ao Portal do Professor, do Ministério da Educação (MEC), ele já explicara a relação direta entre a escolha das tecnologias educacionais e uma determinada concepção de educação. O software proprietário, disse ele então, é “absolutamente oposto” àquilo que o SLE acredita que deva ocorrer em um ambiente educacional, que é o “local da educação, da experimentação, da descoberta, da manipulação, da discussão”.

Nesta entrevista para ARede, Guimarães vai além e explica também a diferença entre software
aberto e software livre, além de apontar todas as boas razões para defender a tecnologia livre na educação – e para participar dos debates e ações do SLE. Mais: ele elogia o uso do Linux Educacional pelo MEC, mas lamenta a falta de transparência no desenvolvimento da distribuição e seu atrelamento a implementações que utilizam software proprietário. “Por que ainda manter a lógica do ‘nós produzimos e vocês usam’? Isso acaba repetindo a lógica do software proprietário”, adverte.

O que é o SLE?
Frederico Guimarães – É um grupo de pessoas, um projeto que começou no Fórum Internacional sobre Software Livre (FISL) há mais ou menos três anos (ver reportagem sobre o 11º FISL na página 34). Somos educadores que trabalham ou desejam trabalhar) com software livre. Não tinha um lugar para discutir isso, porque as discussões eram só técnicas ou só pedagógicas. Então a gente queria um grupo onde pudesse discutir tecnologias, em particular tecnologias livres, mas com um viés educacional. Além disso, temos também como objetivo traduzir e documentar, pedagogicamente, essas tecnologias.

Qual é o perfil do grupo?
Guimarães – A maioria das pessoas ativas são educadores. Temos professores desde o ensino fundamental até o universitário, tanto da rede pública quanto da particular. Se considerarmos o número de inscritos, é um grupo grande, mas os que participam efetivamente são 20, no máximo 30 pessoas. Discutimos basicamente a questão da tecnologia, da educação e de como juntar essas duas coisas. Com o tempo, o tom das nossas discussões foi se afinando, foi ficando mais claro o que a gente defende. O próprio nível de argumentação do grupo mudou. Algumas pessoas sabiam muito pouco sobre tecnologia em geral e quase nada sobre software livre em particular e evoluíram bastante, chegando ao ponto de compartilhar conhecimentos com os novatos no grupo (e mesmo com os experientes). Estamos construindo um projeto comum e a argumentação do uso educacional do
software livre está hoje muito clara, muito madura para o grupo.

Qual é a visão de vocês sobre software livre na educação?
Guimarães — A gente acredita que a educação, em sua essência, só é possível com software livre, por uma série de motivos. Em primeiro lugar, porque essa tecnologia permite um grau de interatividade muito maior do que o software proprietário. Nós podemos, por exemplo, alterar o funcionamento e traduzir os códigos. Além disso, está cada vez mais claro para nós que a discussão sobre software livre vai além do software, além do código. É mais um movimento social do que técnico, porque levanta questões sobre a liberdade e o desenvolvimento compartilhado do conhecimento. Passa pela discussão de que o conhecimento não pode ficar centralizado, mas deve ser dividido entre todos. É curioso que muitos professores defendam uma escola mais descentralizada, aberta ao diálogo, mas acabem usando software proprietário, sem perceber que esse tipo de tecnologia tem uma lógica de consumo. Você só pode usá-lo (com limitações) e mais nada. Já o software livre pode ser usado para qualquer fim, do jeito que você quiser, além de ser compartilhável, distribuível, alterável… Nesse modelo, alunos e professores participam de um processo de construção coletiva do conhecimento. Nós não acreditamos que seja possível estimular o uso de conhecimentos proprietários em uma escola que se proponha a ser participativa, onde o aluno seja sujeito no seu processo de aprendizagem.

Mas isso está longe de ser um consenso entre os professores, não é?
Guimarães – Infelizmente, ainda existem muitos professores que preferem ter algo concreto, pronto nas mãos. Algo do tipo “o que eu tenho que fazer? qual botão aperto?”. O famoso “passo-a-passo”. Por isso, essa discussão do uso de software livre na educação deveria vir acompanhada pela discussão de uma educação em outro sentido. Uma educação que considere todos os envolvidos como participantes ativos e não simplesmente um professor que tem um conhecimento a ser passado ao aluno, em uma via de mão única. Alguns professores têm resistência ao laboratório de informática porque, em sua concepção, é inadmissível que os alunos saibam mais que eles. Acreditam que para ter uma boa aula eles têm que ter o “controle” da turma. Nesses casos, o software proprietário realmente faz mais sentido. Mesmo porque as empresas que vendem vários desses aplicativos fazem campanhas agressivas, vão às escolas, distribuem licenças e apresentam sites em que o conteúdo está pronto para ser trabalhado. É comum, em alguns casos, encontrar planos de aula prontos para serem executados (obviamente utilizando software proprietário) em sites ditos educacionais.

As escolhas de tecnologia, então, refletem uma concepção de educação.
Guimarães – Muitas vezes, sim. Por causa disso, professores que esperam tudo pronto podem se identificar mais com o software proprietário. Nós não pensamos assim. Acreditamos que a educação nunca está acabada, está sempre em construção, sendo modificada por seus atores. E essa “mutabilidade” casa bem com a ideia do software livre. Além dessa concepção pessoal, é curioso perceber também que, de forma geral, o software livre está muito mais disseminado em instituições de ensino públicas do que nas particulares (especialmente se considerarmos o ensino fundamental). Em várias dessas instituições privadas, fica clara a concepção de educação como comércio, como algo que está sendo vendido, e não como processo. Mas acredito que isso pode ser revertido, quando essas instituições perceberem todo o potencial do software livre.

E como as soluções de software livre contribuem para esse processo?
Guimarães – Em primeiro lugar, é importante ir além do software em si. Há muito o que se pensar, por exemplo, quando as pessoas participam de redes sociais que exigem um cadastro para serem acessadas, como o Orkut. O conhecimento produzido nessas redes não pode ser considerado livre, porque, para visualizá-lo, devo me associar à rede. Eu não deveria ser forçado a fazer nada para acessar o conhecimento. Isso se agrava quando lembramos que vários desses sites são proibidos para menores de 13 ou 18 anos. Como se pode, então, usar uma dessas redes para fazer um projeto pedagógico em uma escola de ensino fundamental? Percebe a insanidade de se construir um projeto pedagógico cuja primeira atividade é mentir a própria idade? Mas para isso existe a alternativa livre. É possível, por exemplo, montar em uma escola (e mesmo compartilhar com outras) redes sociais utilizando software livre, que pode ser instalado localmente ou em hospedagens da internet (isso pode ser feito, por exemplo, com o Noosfero, um software livre brasileiro). E esse é somente um exemplo de um tipo de serviço. Existem substitutos livres para praticamente todos os serviços web disponíveis hoje.

Com isso, a discussão sobre software livre passa a ser uma discussão sobre o tipo de liberdade que se tem também na internet e não apenas em sua máquina. Por exemplo, se você ler a cláusula 11 dos Termos de Serviços do Google, verá que, ao usar qualquer serviço oferecido por essa empresa, você dá à empresa o direito de, literalmente, fazer o que quiser com qualquer conteúdo que você criar. O problema é que, normalmente, ninguém lê esses acordos, assim como ninguém lê os contratos de software. Dessa forma, as pessoas concordam com cláusulas absurdas na hora de criar um blog ou uma conta de e-mail ou rede social, por pura ignorância do teor dos contratos de serviço.

Há muitas alternativas de software educacional livre?
Guimarães – Software livre não é somente Linux, há uma série de aplicações livres que funcionam em sistemas proprietários, como o Windows ou o Mac OS. Assim, mesmo que a escola tenha algum tipo de acordo para usar sistemas proprietários, é possível trabalhar com software livre. E existem muitas opções de software livre educacional de qualidade. O mais legal deles, na minha opinião é o GCompris, um software francês que contém mais de cem atividades voltadas, principalmente, para crianças de 2 a 12 anos (mas que diverte muita gente grande também!). Ele é utilizado até para trabalhar habilidades de uso da máquina (como teclado e mouse) nas mais diversas idades, em telecentros e escolas.

Outro exemplo bem conhecido é o Tux Paint, um software de desenho voltado para crianças, cheio de recursos bacanas, como sons, “carimbos” com figuras já prontas e filtros de efeitos para imagens. A professora Liduina, de Fortaleza, no Ceará, subverteu o uso do Tux Paint e produziu uma série de atividades que são resolvidas pelas crianças dentro do software. Por exemplo, carimbar o nome do bicho do lado da sua figura, escrever letras que estão faltando ou contar objetos e escrever o seu valor. Um uso inusitado, em um programa que deveria ser utilizado para se fazer desenhos, e um excelente exemplo da flexibilidade do uso do software livre. A Liduina é um dos membros do SLE e tudo o que ela produz está liberado sob uma licença livre.

Existe também uma série de outros programas disponíveis, como tabelas periódicas, planetários virtuais, geradores de modelos de Física e gráficos de Matemática, aprendizado de idiomas e muito mais. Além disso, o GNU/Linux tem uma característica interessante. Ao instalar esse sistema operacional, você define um idioma principal a ser utilizado, mas pode mudar o idioma do sistema operacional a qualquer momento. Com isso, todas as aplicações também mudam. Assim, alunos de espanhol podem mudar o seu sistema inteiro para esse idioma, alterando somente uma configuração simples. Depois, voltam para o português. Esse recurso abre uma série de possibilidades pedagógicas.

Qual é a diferença entre recursos educacionais livres e recursos educacionais abertos?
Guimarães – Existe uma diferença sutil (e muito debatida em vários grupos). Quando falamos em recursos educacionais abertos, especialmente por causa da palavra “abertos”, não quer dizer que sejam necessariamente livres. Por exemplo, uma apresentação que você produz pode ser um recurso educacional e lhe oferecer vários graus de liberdade. Você pode abri-la e exibi-la, mas não alterá-la e/ou compartilhá-la. Nesse caso, essa apresentação pode ser considerada aberta, mas não é livre. Além disso, existem também outras discussões que estão longe de consenso. Como por exemplo a questão da origem do recurso. Se um recurso foi produzido por um software proprietário, ele pode ser considerado livre?

Nós, do SLE, defendemos a criação de recursos educacionais livres. Assim, o que você produzir deve ser divulgado e as outras pessoas devem poder usá-lo, alterá-lo e compartilhá-lo à vontade, para que o conhecimento possa fluir e não ficar estagnado.

Os programas oficiais de informatização da escola pública são abertos, livres ou ambos?
Guimarães – Essa discussão, aqui no Brasil, é cheia de altos e baixos. No caso, por exemplo, do MEC, que pelo seu papel governamental, deveria coordenar a discussão oficial sobre o assunto, a questão ainda é um tanto confusa. Eles desenvolveram uma distribuição chamada Linux Educacional. Esse é um bom exemplo de estímulo ao uso do GNU/Linux. Entretanto, o processo de desenvolvimento é pouco transparente, cabendo especialmente à comunidade de participantes, em seu espaço no site do Software Público, a tarefa de resolver problemas (e mesmo isso é bem pouco estimulado). Se é um software livre voltado para a educação, por que não organizar fóruns junto aos professores e dirigentes de instituições de ensino para que eles decidam quais os melhores aplicativos a incluir e os rumos que o projeto deve tomar? Por que ainda manter a lógica do “nós produzimos e vocês usam”? Isso acaba repetindo a lógica do software proprietário.

Em sua última versão, eles até trabalham com um conceito de multiterminal, onde um único gabinete está conectado a dois (ou mais) monitores, teclados e mouses. Uma solução econômica e interessante, que utiliza o recurso de multiusuário do GNU/Linux. Entretanto, eles fizeram essa implementação utilizando um software proprietário, o que é um contrassenso. Especialmente se considerarmos que existe uma solução livre e brasileira que executa a mesma função! O mais curioso disso tudo é que o mesmo MEC mantém um espaço online fantástico, que é o Portal do Professor, bem mais participativo. Por que então o Linux Educacional não tem uma seção própria nesse portal, ao invés de ficar restrito ao Software Público? Dá a impressão de serem projetos separados.

Há demanda para software livre na educação?
Guimarães – A demanda é limitada porque muita gente ainda não percebeu o potencial do software
livre, especialmente na educação. E, pior, ainda existem muitas pessoas que acreditam que o que é gratuito não presta ou que o governo adota software livre para economizar dinheiro, como se fosse um demérito. Há um conceito de que quanto mais caro o produto, melhor é. Além disso, muita gente tem visão equivocada do suporte oferecido pelas empresas de software proprietário, imaginando que irá resolver qualquer problema que a pessoa tiver. Essas pessoas nunca leram as licenças de usuário, que falam justamente o contrário, ou seja, que a empresa não tem nenhuma responsabilidade sobre o uso do software e seus eventuais problemas. Por fim, muita gente ainda pensa que o software livre é complicado e que, para usá-lo é necessário “digitar um monte de comandos em uma tela de texto”. Por isso, um dos objetivos do nosso grupo é justamente mostrar para as pessoas que o software livre é bom, bonito, fácil de usar, funciona e tem tudo a ver com uma discussão mais ampla sobre educação. Esse processo, como um todo, também é intrinsecamente educativo. Ou seja, a educação ocorre não só na utilização do software, mas também no seu entendimento, no planejamento do seu uso.

Qual vai ser o primeiro resultado desse trabalho?
Guimarães – Já temos alguma coisa planejada. Em primeiro lugar, um material online de orientações gerais para o uso do software livre, além de fundamentar esse uso baseado na filosofia do movimento e não somente no caráter técnico. A ideia é criarmos algo online e bem dinâmico, provavelmente na forma de um wiki. Com isso, pretendemos não só construir o material a várias mãos, como possibilitar a rápida atualização (e correção) de suas informações. Uma espécie de “cartilha viva”. Pretendemos também focar esforços no GCompris. Especialmente em reescrever seu manual online, dando-lhe um caráter mais pedagógico. Além disso, pretendemos também trabalhar no wiki do software, acrescentando mais documentação de uso.

Como os professores podem participar?
Guimarães – O grupo mantém hoje um site principal (http://sleducacional.org), listas de discussão (http://listas.sleducacional.org) e alguns projetos derivados, como um site de favoritos públicos da área de educação e software livre (http://bussola.sleducacional.org) e um wiki de trabalho (estamos estudando também a possibilidade de criar um microblog voltado para educação). Recomendo assinar inicialmente a lista Geral, que é onde fazemos todas as discussões do grupo. Aqueles que quiserem colaborar produzindo material também podem se cadastrar e informar na lista sua intenção, para que os direitos de publicação sejam liberados. A participação é aberta a qualquer pessoa interessada.