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Regras para uma rede democrática
O grande debate do momento, no mundo, é sobre a regulação da internet — solução para garantir a neutralidade da rede e evitar o gerenciamento discriminatório do tráfego.
Lia Ribeiro Dias
ARede nº62 setembro de 2010 – A internet deve ser regulada, para garantir a neutralidade da rede? Ou seja, garantir que as operadoras e os provedores de acesso tratem todos os usuários da mesma forma, sem discriminar a transmissão de dados de um cliente em benefício de outro? Essa é, atualmente, a questão central do debate em vários países do mundo. Nos Estados Unidos, o órgão regulador do mercado de telecomunicações, a Federal Communications Comission (FCC), lançou uma consulta pública para saber se a internet, até hoje considerada como um serviço que não é de telecomunicações, deve ser regulada e fiscalizada como um serviço de telecomunicações. Também a União Europeia (UE) abriu a consulta pública. Até o final de setembro, os países membros devem entregar suas posições sobre a regulação, definindo critérios mínimos de qualidade na rede.
O Chile se tornou, no final de agosto, o primeiro país do mundo a garantir, por lei, o princípio da neutralidade na internet. Aprovada pelo Congresso em julho, a lei foi sancionada pelo presidente Sebastián Piñera. No Brasil, esse princípio faz parte do Decálogo para a Governança da Internet, do Comitê Gestor BR, e está previsto no Marco Civil da Internet, que foi resultado de uma ampla consulta pública, e ainda deve ser encaminhado ao Congresso.
A consulta da UE aos países membros tem como propósito definir se a neutralidade, um dos princípios básicos da internet, e a disponibilidade da rede a qualquer cidadão, podem ser afetadas pela priorização do tráfego. Hoje, operadoras e provedores, para evitar congestionamento na rede, priorizam o tráfego de dados essenciais, como os de segurança pública, de serviços de emergência, de saúde etc. Alguns priorizam tráfego, o que violaria o princípio da neutralidade, para atender a determinados clientes e outros discriminam tráfego de aplicações que consomem muita banda, como as aplicações peer-to-peer (P2P).
Gerenciamento
Em relação ao gerenciamento de tráfego, a grande preocupação da consulta da UE é delimitar o que é um gerenciamento de tráfego técnico, para fazer a rede fluir, e o que é priorização de tráfego anti-competitiva. De acordo com o documento, o gerenciamento de tráfego é comumente aceito quando as regras são acordadas entre todas as partes envolvidas na rede.
Outra questão destacada se refere aos chamados serviços gerenciados – como IPTV, computação em nuvem e aplicações de saúde a distância, entre outros. Esses serviços podem interferir negativamente, a longo prazo, nos melhores esforços de gerenciamento para manter o modelo da internet aberto e livre? É bom lembrar que a oferta de serviços gerenciados, pelos quais operadoras e provedores cobram de acordo com a prioridade de tráfego, é um dos pontos importantes da proposta apresentada recentemente pelo Google e pelo Verizon nos Estados Unidos, como contrapartida à defesa da neutralidade na rede.
A UE também quer saber se os princípios de gerenciamento de tráfego devem ser os mesmos para as redes fixas e móveis. Antes de levantar essa questão, o documento observa que o bloqueio do tráfego de VoIP não é notado na rede fixa, mas é comum nas redes móveis, que também proíbem o uso de aplicações P2P. A questão das redes móveis é a mais delicada. Tanto que na proposta para garantia da neutralidade da rede apresentada pelo Google e pelo Verizon, em agosto, as redes móveis não foram incluídas, embora cada vez mais o acesso à internet seja feito a partir de terminais móveis (celulares, notebooks, tablets etc.).
Regulação
Ainda é cedo para saber em que direção os ventos vão soprar na Europa. Ao contrário do regulador estadunidense, a Ofcom, do Reino Unido, em documento divulgado para atender à consulta pública da UE, diz que não há evidências de que o gerenciamento de tráfego pelas operadoras e provedores venha gerando desequilíbrios no mercado. Por isso, diz não ser necessário regular a qualidade de serviço na internet, estabelecendo requisitos mínimos.
Em princípio, de acordo com o documento da Ofcom, essa regulação será feita pela competição e pelo próprio usuário. Para isso, defende que os contratos de internet têm de trazer informações muito claras para o usuário do que está contratado, do que será entregue e de quais são as políticas de gerenciamento de tráfego do contratante. Se isso não for adotado como bandeira pela indústria de telecom, diz o documento, não restará ao regulador outra alternativa a não ser regular a internet, com o estabelecimento de qualidade mínima de serviço.
O debate não é novo. O tema da neutralidade da rede é recorrente, pois as operadoras defendem a priorização do tráfego para garantir rentabilidade a seu modelo de negócios. Algumas praticam o tráfego discriminado, prática que rendeu uma ação contra a Comcast, nos Estados Unidos. Em abril, a Corte de Apelações de Washington decidiu que a FCC não tem autoridade para regular a forma como os provedores de serviços de internet oferecem seus sistemas.
Com a proposta, Google e Verizon reforçam a autoridade da FCC, que pretende reclassificar o serviço de internet como um serviço sob o guarda-chuva do Communications Act, o que permitirá à agência regular o serviço e estender a cobertura do atual fundo de telecomunicações para levar a banda larga a zonas rurais. Mas, para apoiar a FCC, cujos diretores vêm se pronunciando contra qualquer iniciativa que ameacem a liberdade na internet, sugerem a criação de serviços diferenciados – serviços que podem colocar em risco essa liberdade.
Os próximos meses serão decisivos quanto ao futuro da internet. Ou os reguladores vão manter a rede livre, democrática e aberta, ou vão, com ou sem subterfúgios, criar duas categorias de usuários, os que pagam por tráfego prioritário e a massa de internautas – e são bilhões – que vão sofrer a consequência da discriminação. As entidades de defesa da liberdade na rede e dos direitos dos consumidores e cidadãos já começaram a se movimentar. Só a pressão dos internautas pode fazer com que os reguladores não cedam às demandas das operadoras e provedores de acesso.
IPTV
Sistema de transmissão de sinas televisivos por meio de protocolos IP, ou seja, pela internet.