Máquinas que servem para formar leitores
Programa desenvolvido para pessoas com necessidades especiais evolui e vira ferramenta para ajudar a alfabetização JANE SOARES
ARede nº64 novembro de 2010 – Dos 192 milhões de habitantes do Brasil, apenas 26 milhões são leitores ativos. Assim, não é de estranhar o resultado da pesquisa da Câmara Brasileira do Livro. O trabalho indica que cada brasileiro lê, em média, 1,8 livro por ano – nos Estados Unidos são cinco percapita e na Europa, de cinco a oito anualmente. O brasileiro lê pouco porque lê mal. E lê mal por ter pouco acesso a livros, revistas, jornais. A falta de domínio da leitura, por sua vez,dificulta a mobilidade social por impedir a apropriação da linguagem escrita no momento em que ela ganha maior importância, com o fortalecimento da cultura digital. Agora, esse perverso círculo vicioso pode ser quebrado com a ajuda da Solução Alfa, desenvolvida pela Fundação CPqD, de Campinas (SP). A ferramenta melhora a capacidade de leitura por meio da inclusão digital.
“Os computadores foram desenvolvidos por pessoas letradas para pessoas letradas. Como a cultura digital valorizou a linguagem escrita, enormes parcelas da população ficaram à margem da sociedade”, comenta Ismael Ávila, engenheiro pesquisador da Fundação CPqD. A realidade é realmente assustadora. Segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), aproximadamente 30% dos brasileiros entre 15 e 64 anos – ou seja, 60 milhões de pessoas – têm baixos índices de alfabetização. O contingente dos totalmente analfabetos caiu nos últimos anos em função dos programas de educação de jovens e adultos. Mas grande parte desse esforço de alfabetização se perde por uma conjunção de fatores adversos: fora da escola, os estudantes retornam para a linguagem oral usada no meio em que vivem e não têm acesso a livros, revistas e jornais por questões financeiras e pelo baixo número de bibliotecas públicas. Em pouco tempo, simplesmente esquecem boa parte do que aprenderam. Já o problema do analfabetismo funcional – quando a pessoa consegue ler pequenos trechos, mas não entende o significado deles – desafia a sociedade.
Pensando nesse desafio, os pesquisadores da Fundação CPqD desenvolveram a Solução Alfa de Apoio à Leitura e Fixação do Alfabeto. O projeto foi parcialmente custeado por recursos do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel), com apoio do Ministério das Comunicações.
O princípio da Alfa é criar uma ponte entre as linguagens escrita e falada para auxiliar pessoas com pouca escolaridade e sem experiência prévia com computadores a ler e compreender textos e conteúdos digitais. O ponto de partida foi uma ferramenta criada para deficientes visuais e adaptada às novas necessidades. Com ela, textos selecionados com o mouse são lidos no volume e velocidade escolhidos pelo usuário e repetidos quantas vezes forem necessárias para seu entendimento. A pessoa acompanha a leitura olhando o texto frase por frase. Outro recurso, a consulta a dicionários de sinônimos, ajuda a “decifrar” termos desconhecidos.
Cidadãos invisíveis
O recrutamento dos candidatos para testar a Solução Alfa foi feito com a ajuda de diversas entidades de dois municípios rurais de São Paulo, Santo Antônio da Posse e Bastos. Professores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) orientaram os pesquisadores sobre a melhor forma de abordar os usuários e de determinar o grau de letramento no início e após o uso do aplicativo. Assim, foi possível detectar os ganhos obtidos com o uso da ferramenta. “Esses cuidados são necessários porque dificilmente as pessoas admitem que não sabem ler. O analfabeto é socialmente invisível”, diz Ávila.
Com a Solução Alfa, as pessoas conseguiram entrar nos portais, escolher notícias de seu interesse e entender partes consideráveis das informações. Sem a ferramenta, elas conseguiam ler frases curtas, mas não entendiam o significado dos textos. “Percebemos que usuários com apenas rudimentos de leitura se desenvolveram com o acesso à linguagem escrita em condições mais favoráveis”, comenta Ávila. Para os pesquisadores da CPqD, os recursos da Tecnologia da Informação e Comunicação (TICs) podem contribuir, e muito, para melhorar o letramento da população brasileira, principalmente quando usados em programas de educação de jovens e adultos e de inclusão digital, como nos telecentros.
Nas escolas e nas clínicas
A Solução Alfa se mostrou útil também para pessoas com limitações de leitura em função de deficiências visuais e intelectuais ou lesões cerebrais incapacitantes. O aplicativo foi testado e aprovado em clínicas de reabilitação, como o Centro de Prevenção à Cegueira em Americana (SP), onde se tornou um facilitador para as atividades realizadas com crianças portadoras de dislexia, afasia, dispraxia da fala e dispraxia globalizada, contribuindo para a alfabetização desses pacientes. A ferramenta está sendo usada para ler os enunciados das provas antes de as crianças disléxicas respondê-las, ajudando-as a superar as dificuldades de entendimento enfrentadas quando usam apenas a leitura.
Em função dos resultados, a Solução Alfa foi premiada pelo Centro em agosto deste ano, durante o III Simpósio de Dislexia e Distúrbiosde Aprendizagem de Santa Bárbara do Oeste (SP). E, agora, recebe o Prêmio ARede, na categoria Acessibilidade da modalidade Setor Privado. “Este prêmio dará grande visibilidade à ferramenta e será nosso cartão de visita quando começarmos a contatar grupos privados e entidades governamentais para mostrar as vantagens de agregar políticas de inclusão digital aos programas de alfabetização”, comemora Ávila.
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