Cultura


Cinema ao alcance de todos

Ponto de Cultura oferece cursos gratuitos para crianças e adultos de Nova Iguaçu

Alexandre Facciolla

ARede agosto de 2011 – Cursos que ensinam técnicas cinematográficas – fotografia, edição de vídeos, produção – para população de baixa renda não chegam a ser incomuns nos centros e nas periferias de grandes cidades. Porém, projetos que ampliem o universo cultural dessa população e estimulem a pensar a linguagem cinematográfica dentro da própria condição regional já são menos prováveis. Uma iniciativa que junte tudo isso, não com o propósito de capacitar os jovens com vocação para as artes audiovisuais, mas de levar esse conhecimento àqueles que aparentemente não têm talento nessa área, é coisa ainda mais rara.
Essa foi a proposta da Escola Livre de Cinema (ELC), em Nova Iguaçu (RJ), por onde, desde 2006, já passaram mais de cinco mil alunos. Os cursos são gratuitos. Para crianças e adultos da comunidade. Os professores atuam em duplas: um é ex-aluno, contratado com carteira assinada, e o outro é aluno de cinema da Universidade Federal Fluminense, contratado em regime de estágio remunerado. Os cursos para crianças têm uma metodologia diferenciada. No ano passado, por exemplo, o tema foi “autoretrato”. Cada aluno produziu um vídeo de um minuto sobre si mesmo. Neste ano, o tema é ficção científica. As aulas acontecem duas vezes por semana, de manhã ou à tarde, no contraturno escolar. Todas as crianças são de escolas públicas, estaduais ou municipais. Para os adultos, que têm aulas à noite e aos sábados, os cursos deste ano são Blog Novela, Dublagem, Videoclipe para Youtube e Audiovisual para Educadores.

A ELC surgiu como um desdobramento do projeto Reperiferia, cujo objetivo principal era “ativar as percepções dos habitantes da periferia para seus próprios territórios”. O Reperiferia foi fundado pelo cineasta Marcus Faustini e é coordenado pelo professor de teatro e ator Anderson Barnabé. Até o ano passado, a escola mantinha uma parceria com a Secretaria de Educação da cidade. Mas, com a substituição do prefeito anterior – senador Luiz Lindbergh Farias Filho – por sua vice, Sheila Gama, as verbas para o projeto foram cortadas. Mas nem tudo estava perdido. Nesse mesmo ano, a escola se tornou um Ponto de Cultura. Esse convênio, com o programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, prevê recursos de R$ 180 mil, para os próximos três anos. Ainda em 2010, fechou para passar por uma reformulação e reabriu as portas em fevereiro de 2011, renovada por uma parceria com a Petrobras – um contrato de patrocínio que vai até 2013, pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura (ICMS). O acordo estabelece que a escola capacite 160 crianças por semestre.

Tradição em artes
Antes de assumir a Escola Livre, em 2002, Faustini, Barnabé e o também ator Alexandre Damascena atuavam no Teatro da Cidade das Crianças, no bairro de Santa Cruz, periferia da capital fluminense. Os três já pensavam em estruturar o teatro como um ponto de aprendizado para além do contrato de administração com a prefeitura do Rio, que previa apenas montagem de espetáculos para as mais de 200 comunidades carentes da região. A ideia era dar ferramentas, por meio do teatro, para potencializar a subjetividade das pessoas. Em apenas dois meses de funcionamento, já com 400 integrantes do projeto, eles sentiram a necessidade de mostrar esse trabalho. “A gente conseguia atender as pessoas, mas não conseguia tirar essa pecha de violência da periferia”, conta Barnabé, hoje professor de teatro na ELC, além de coordenador do projeto junto à historiadora Cristiane Bráz, que é a diretora.

Em 2004, Faustini já adquirira reconhecimento com o teatro político – montou, por exemplo, peças do dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri. Só que estava mais envolvido com cinema e pediu a ajuda de Cristiane. Ele precisava de alguém para desenvolver uma pesquisa histórica sobre os grupos de “bate-bola” ou “Clóvis”, manifestação carnavalesca típica da zona Norte do Rio. A pesquisa desembocaria no documentário Carnaval, Bexiga, Funk, Sombrinha. Segundo Barnabé, os grupos de bate-bola ainda são retratados pela mídia convencional ou como briga entre facções criminosas, ou como grupos de foliões folclorizados pela academia. “Queremos romper o modelo de melodrama. Colocar a periferia como lugar possível para subjetividades, sutilezas. Um lugar de potência”, resume Faustini, hoje afastado da direção do projeto por conta de seu cargo de superintendente na secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro.

No mesmo ano de lançamento, 2006, a filial da TVE do Rio reproduziu o filme durante o carnaval. Foi então que o prefeito de Nova Iguaçu assistiu e procurou Faustini para desenvolver disciplinas de áudio-visual no projeto Bairro-Escola da Cidade, atrelado à Secretaria de Educação. Com apenas uma filmadora na mão, Faustini passou três meses dando aulas durante o intervalo nas escolas da periferia de Nova Iguaçu. Em agosto daquele ano, a ação se consolidou como uma escola e começou a funcionar na atual sede.

Palavra, corpo e território
A proposta de tornar palpável e transformável o território dos alunos acompanha o grupo da ELC desde o começo. Foi ao longo do tempo, no entanto, que a autoconsciência do corpo e da palavra se tornaram pilares metodológicos. Um exemplo emblemático citado pelos atuais diretores, Barnabé e Cristiane, foi o trabalho com contos do escritor e antropólogo potiguar Luiz da Câmara Cascudo. Primeiro, eles espalharam palavras dos livros pela escola. As crianças tinham que dar sentido às palavras sem recorrer ao dicionário. Depois, a consulta ao dicionário trazia mais um desafio: representar os significados por mímica. Então, passavam a trabalhar a técnica e encenar aquilo que intuíram das palavras. “Após seis semanas de curso, eles devoraram os contos, quando finalmente foram apresentados”, conta Cristiane.

Miguel Nagle, ex-aluno de dois cursos (em 2006 e 2007) e hoje bolsista da Academia Internacional de Cinema em São Paulo, absorveu os conceitos-pilares da escola. Um dos trabalhos consistia em acompanhar a diária de alguém próximo, da família. Como foi um exercício de férias, foi permitido mesmo o uso de câmeras de celular ou similares. Miguel, no entanto, utilizou uma super VHS, emprestada de um amigo. Filmou por cerca de um mês as atividades da avó, dona Laura.

O documentário Um Dia de Laura fez tanto sucesso que acabou por abrir o festival de cinema de Nova Iguaçu, o Iguacine, e, além de ganhar  outras competições, foi o filme exibido durante a estreia de Lula, o Filho do Brasil, de Fábio Barreto. “A sensação é a mesma que ter uma bandinha de garagem convidada para abrir uma apresentação do Red Hot Chilli Peppers”, brinca. Essa apresentação e os prêmios que o curta ganhou deram a Nagle a confiança que faltava para ele ir atrás de uma complementação de formação.

Finanças
Hoje, 80% dos funcionários fixos da ELC (são sempre entre 11 e 12 na equipe) são ex-alunos. Profissionais de áreas específicas promovem cursos e oficinas pontuais. “Nosso objetivo é ter toda a equipe formada por ex-alunos”, diz Cristiane. Ela explica que o foco no ex-aluno sempre esteve em pauta, pois o objetivo da escola “não é ser um projeto social. É dar educação de qualidade para que haja um retorno, inclusive financeiro, para o aluno”. Como sempre lidou com números e se saiu bem em administração, ela é quem dirige a Avenida Brasil, a organização da sociedade civil (Oscip) à qual pertence a Escola Livre de Cinema.

Cristiane decidiu, em 2009, submeter a ELC a uma espécie de avaliação que permite observar as diferenças tanto de comportamento quanto de retorno em renda daqueles que frequentaram o curso. A metodologia utiliza o cálculo de regressão, que evita conclusões tendenciosas, como “quem participa está interessado. Quem se interessa é estudioso.

Logo, quem é estudioso tem melhores notas”. Com esse estudo, foi possível demonstrar que os alunos da ELC têm um rendimento 15% superior na escola convencional, e um aumento de renda real de 7%. “Isso me deixa muito satisfeita”, diz ela. Esse estudo serve ainda para corroborar os critérios para o curso, como resumiu o coordenador Barnabé: “A seleção não é para os bons. É uma seleção que te pega no pulo. A gente quer os ruins mesmo. O cara que já está inserido em um contexto, a gente guarda na manga, para, quem sabe, uma parceria futura”.

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