artigo – As matriarcas negras da cultura brasileira

Carlos Henrique Machado Freitas fala da cultura viva do Brasil, "que tem em cada ponto de cultura um ponto de luz fertilizando o território brasileiro".

Carlos Henrique Machado Freitas *
do blog Trezentos

14/05/2012 – “Baixa baixa limoeiro, óia que eu quero panhá limão, que eu quero tirá uma nódia, óia lá meu Deus, uma nódia do coração. A nódia do coração não se tira com limão, tira sim com dois abraços e com dois aperto de mão.” (Tia Marina Caxambuzeira)

Para a conquista do azoto, mesmo lutando contra dogmas cristalizados no Brasil desde o período colonial, a preciosa participação das matriarcas negras na composição de uma química social que nutriu afetos e cultivou a generosidade para plantar as raízes da música brasileira, ainda não foi objeto de um estudo profundo. Todas as sábias adubações e o tempo de repouso para fertilizar o que hoje classificamos como música brasileira não vieram das velhas teorias clássicas, mas de um seio de tradição africana representado pelas mães e tias dos terreiros, das rodas de samba e de todos os padrões técnicos que tinham relação simétrica entre a criação e o ambiente brasileiro.

Ao contrário de aceitar a opressão como verdade bruta, o trabalho das matriarcas negras modificou o ponto essencial que, sem dúvida, assumiu o papel de protagonismo nos microssistemas que eternizaram a própria magia de nossa música. Por isso, na essência o critério de nossa música sempre teve papel filosófico, mas principalmente social.

Mesmo sabendo do trabalho de algumas dessas grandes matriarcas como a Tia Eulália, Tia Ciata, D. Zica, D. Neuma, Tia Surica, podemos dizer que esse complexo universo regido por estas mulheres negras, desde o período da escravidão, é bem mais bonito e rico do que imaginamos.

Na realidade, a principal característica dessas grandes mulheres foi a de promover o compartilhamento e foi ele que serviu de critério para termos a mais valiosa chave de um ritual cheio de magia que culminou na música mestiça que se transformou na grande e nova força do Brasil.

Como isso se deu? Com os atrativos deliciosos das festas com uma porcentagem muito forte do próprio conceito materno de tratar o alimento, a dança, a música como forma de resistência, fertilidade e comunhão. E todas essas normas são características étnicas pertencentes à música brasileira até os dias de hoje, felizmente.

O que fica é uma enorme interrogação sobre o papel da ministra da Cultura num governo também comandado por uma mulher, a presidente Dilma, já reconhecida com uma visão de caráter social progressista. O que nos resta é saber se essa nova pregação do MinC cheia de idealismo de mercado está associada à produção humana, à realidade nacional ou mesmo se tem algum parentesco psicológico com essa química de natureza espontânea das matriarcas negras, ou se, ao contrário, o que estamos assistindo é uma política covarde, anti-nacional, anti-crítica, anti-cíclica e, sobretudo, a negação da parte mais humana dessa grande festa que é a cultura brasileira regida por raínhas negras como Tia Marina nesta foto que representa todo o afeto, toda a sabedoria, todo o contexto de comunhão de uma líder de comunidade que sempre regeu magnificamente todo o seu rebanho com a esplêndida batida do tambor do caxambu.

Esta, na verdade, é a cultura viva do Brasil que tem em cada ponto de cultura um ponto de luz fertilizando o território brasileiro.

* Carlos Henrique Machado Freitas é músico, compositor e bandolinista.
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