Vem aí o TPP: acredite, ainda pior que o Acta
Uma nova ameaça à liberdade na internet:
O capítulo de propriedade intelectual da Trans-Pacific Partnership (Parceria Trans-Pacífico), acordo de livre-comércio impulsionado pelos Estados Unidos.
Igor Ojeda
ARede nº 82 – julho de 2012
DESPONTA no horizonte uma ameaça mais perigosa que o combatido Acordo Comercial Anticontrafação (Acta), tratado internacional que estabelece padrões para o cumprimento da legislação de propriedade intelectual. O novo dispositivo de ataque à liberdade da internet tem sigla TPP, do inglês Trans-Pacific Partnership (Parceria Trans-Pacífico). Trata-se de um acordo comercial que, como o nome revela, envolve países banhados pelo oceano Pacífico.
Enquanto o Acta patina e enfrenta forte mobilização contrária, o TPP mal é conhecido, inclusive pelos defensores da liberdade na internet. “O TPP é bem pior que o Acta”, avalia Pedro Mizukami, pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). Ele explica que o Acta joga todas as suas forças na execução das normas de propriedade intelectual, mas o TPP pretende “ampliar a própria substância dos direitos de propriedade intelectual”. Engana-se quem pensa estar livre dos efeitos do acordo por não ser cidadão dos países que o negociam. O grande perigo de tratados do tipo, analisa Mizukami, é a criação de modelos de legislação que podem ser usados por outras nações. “Aos poucos vão se estabelecendo padrões por via bilateral, plurilateral, e logo se utiliza do fato de que esses padrões já valem em vários países para forçar a tomada de decisões nos fóruns multilaterais”.
O que é o TPP e o que diz o capítulo sobre propriedade intelectual desse acordo?
Pedro Mizukami – O TPP, sigla para Trans-Pacific Partnership, é um acordo multilateral de livre comércio atualmente em negociação. Tem uma série de capítulos diferentes, entre os quais, um sobre propriedade intelectual, que tem sido objeto de preocupação de muitos que acompanham a política internacional do setor. Justamente porque é mais uma etapa, mais um passo na campanha de maximização do direito da propriedade intelectual, em curso já há alguns anos. Esses avanços tiveram certa projeção nos anos anteriores com o Acta, que repercutiu de maneira particularmente negativa e ganhou um nível de divulgação que outras etapas desse percurso de endurecimento das normas de propriedade intelectual não tiveram.
Esses acordos, negociados por trás, de portas fechadas, têm levantado uma série de preocupações por causa de sua falta de transparência e pouca razoabilidade na busca do fortalecimento dos padrões normativos de propriedade intelectual (PI) ao redor do mundo, e se transformaram em tema bastante caro aos que militam pelo acesso ao conhecimento e por regimes mais equilibrados de propriedade intelectual.
O TPP envolve um número reduzido de países. É um acordo plurilateral negociado entre Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Cingapura, Estados Unidos, Japão, Malásia, Nova Zelândia, Peru, Vietnã. O foco está basicamente nos países da Ásia-Pacífico. É meio difícil saber exatamente o conteúdo do TPP porque as negociações – e essa é umas das grandes objeções que se costuma fazer a esse tipo de acordo – têm ocorrido em segredo, muito diferente das negociações em fóruns multilaterais, como as da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), a cujos textos se tem acesso. Tanto no caso do Acta quanto do TPP, às vezes nem se sabe com muita antecedência onde serão as próximas reuniões, nem em qual país. E não há uma interlocução com outros grupos de interesse que não os grupos industriais de sempre. A última versão completa do texto que a gente tem é de, salvo engano, mais ou menos um ano atrás. Desde então pode ter mudado bastante o capítulo.
Essa versão foi a que vazou, não é? É de um ano atrás esse vazamento?
Mizukami – Houve alguns vazamentos. O mais recente foi o de uma versão do capítulo sobre investimentos. Em relação ao de propriedade intelectual, o vazamento mais relevante de um texto completo – há vazamentos também de propostas para seções específicas no interior de capítulos – data de fevereiro de 2011. É possível consultar todos os documentos vazados até agora nas páginas das ONGs Public Citizen, Knowledge Ecology International e Electronic Frontier Foundation.
O acordo comercial já está em vigor?
Mizukami – Está sendo negociado há mais de dois anos. Não dá para saber com certeza quando vão terminar as negociações, até porque não é só a propriedade intelectual que está sendo discutida. O TPP também envolve produtos têxteis e agrícolas, barreiras comerciais não alfandegárias, enfim, uma série de temas diferentes, em alguns casos entrando em matéria mais ampla do que poderia se esperar de um acordo de livre comércio. Não é possível dizer com precisão quando as partes vão chegar a um consenso sobre o texto, e também é complicado avaliar o próprio conteúdo do acordo tal como se encontra nos dias de hoje, porque a gente não tem acesso às propostas mais recentes. Agora, em relação ao que foi vazado, pode-se dizer que é basicamente o documento que melhor consolida o estado da arte em termos de maximização de PI. Algumas coisas são bem radicais.
Esse capítulo foi realmente proposto e redigido pelos EUA? Dizem até que é uma cópia integral da lei estadunidense para a área.
Mizukami – Os países costumam fazer propostas. Dentro das negociações, há propostas americanas, japonesas, chilenas e assim por diante. É óbvio que os Estados Unidos são um país que tem um protagonismo muito grande nas negociações. É o principal a puxar as negociações, a colocar propostas na mesa. Não é o único, mas é o principal.
Mas outros países fizeram propostas ou estão negociando com base na proposta estadunidense?
Mizukami – Por causa da falta de transparência, não sabemos qual o texto que está sendo discutido agora e de quais países se originaram as propostas que têm vingado. Então, a gente tem o trabalho ingrato de emitir opinião com base em versões ultrapassadas do texto, sem nenhuma interface com as pessoas e com os países que estão participando oficialmente das negociações. Ficamos dependentes de especulações que podemos fazer com base nos materiais que foram vazados, e também com base no protagonismo dos EUA na luta por algumas das demandas das indústrias de PI.
Qual a análise que pode ser feita com base nos documentos até agora vazados e levando-se em conta que os EUA protagonizam a negociação?
Mizukami – A estratégia, basicamente, é a seguinte: os Estados Unidos, já há algum tempo, têm feito acordos bilaterais de comércio com vários países, como Chile, Coreia do Sul, Colômbia, Marrocos, Peru, Israel. São 18 países atualmente. E sempre tem um capítulo de propriedade intelectual que é inserido no meio e faz parte da barganha total.
Vamos fazer uma colocação hipotética e pensar em produtos agrícolas de determinado país em desenvolvimento que tenha se engajado com os Estados Unidos na negociação de um acordo bilateral de comércio. Em troca de certos benefícios alfandegários para esses produtos, por exemplo, pode-se exigir a adesão a regimes bastante rigorosos de propriedade intelectual.
Para os EUA, a propriedade intelectual é tema prioritário, mesmo em detrimento de outros temas como a agricultura? Ou seja, o país pode ceder em certos setores em troca da concessão na propriedade intelectual? É esse nível de prioridade?
Mizukami – É uma questão de balança comercial. Pesa mais para os Estados Unidos em termos de exportações. É, sim, mais economicamente relevante. E a pressão se faz sentir no Congresso e no Executivo estadunidenses, resultando em um processo de maximização das normas de proteção à PI. É importante lembrar que nem para um país como os EUA essa seria necessariamente a melhor opção.
Existem controvérsias em relação ao quanto se pode creditar, em termos de avanço econômico, a normas mais fortes de propriedade intelectual. Mas a pressão é muito forte, e se faz sentir tanto com o lobby puro e simples quanto com financiamentos de campanha.
Esse tipo de pressão ocorre não só por meio das relações diplomáticas dos Estados Unidos, mas também internamente, em cada país. É a pressão exterior vinda por dentro, por assim dizer, feita por intermédio de agentes das indústrias de propriedade intelectual dentro de países estratégicos.
As indústrias fonográfica, cinematográfica, de software estadunidenses acabam também atuando junto ao Congresso, ao Executivo de vários países ao redor do mundo, fazendo com que essa pressão venha a ser sentida também domesticamente. E, via de regra, associam-se a atores industriais locais, sejam produtores de conteúdo ou fabricantes de calçados, por exemplo, que talvez se beneficiem com um tratamento mais favorável a seus produtos em razão de um acordo bilateral de comércio.
Em relação ao conteúdo vazado, quais os pontos mais preocupantes?
Mizukami – Se a gente olhar para o que foi discutido durante as negociações do Acta, ali era bastante nítido a ênfase no enforcement de PI, que é o nome dado à observância, no sentido de execução efetiva, das normas de PI. Medidas e normas que dizem mais respeito à execução das normas substantivas de PI do que à expansão propriamente dita dos direitos de PI.
Com o TPP, entretanto, há uma nítida intenção de ampliar a própria substância dos direitos de propriedade intelectual. Começamos com a questão do termo de duração do tempo dos direitos autorais. Estão tentando padronizar no acordo o termo de vida, mais 70 anos. Que já é, tudo bem, o termo vigente em vários países, mas é uma escalada além do termo constante da Convenção de Berna e do Acordo Trips, que é o termo de vida, mais 50 anos.
Então, já pelo começo, pela própria ideia do tempo de duração dos direitos autorais, se percebe uma preocupação em ir além da simples execução dos padrões mínimos já colocados internacionalmente. Outro ponto preocupante, no mesmo sentido, é a proibição à importação paralela de bens protegidos por direitos autorais: proibir, por exemplo, que um livro seja importado de um país para o outro sem a autorização do titular dos direitos.
E há, ainda, normas radicais dando suporte a medidas tecnológicas de proteção e mecanismos de DRM [Gestão de Direitos Digitais, na sigla em inglês], além do estabelecido nos tratados da OMPI e no próprio direito estadunidense, que pelo menos tem um sistema que permite a avaliação periódica de exceções a essas medidas – casos em que é possível contorná-las licitamente. No TPP não se abre qualquer exceção.
Agora, quando se passa para as normas de enforcement, também há uma série de propostas que são bastante problemáticas. Há uma ênfase preocupante em forçar os governos que fazem parte da negociação a estabelecer incentivos para a colaboração entre provedores de internet e titulares de direitos autorais, algo que pode resultar em acordos entre particulares no sentido de se retirar sumariamente conteúdos da internet, mediante notificação, e eventualmente desconectar os próprios usuários.
Além da obrigatoriedade do regime legal de notice-and-takedown, algo que foi intensamente repudiado aqui no Brasil, na consulta pública do Marco Civil, e acabou sendo excluído do texto atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados.
Então, alguns pontos do TPP são até mais rigorosos do que a própria legislação dos Estados Unidos para a área.
Mizukami – Sim, e o caso das medidas tecnológicas de proteção é bastante emblemático, devido ao fato de que existe um procedimento trienal nos Estados Unidos por meio do qual se pode propor ao Copyright Office [Escritório de Copyright] a inclusão de hipóteses em que exceções a essas medidas seriam permitidas.
E em relação ao Acta?
Mizukami – Naquilo que temos ciência de que tenha sido proposto, é bem pior do que o Acta. Em termos de conteúdo normativo, tem se mostrado pior e ainda menos equilibrado. O perigo, com esses tipos de acordos, é o seu efeito cumulativo. Aos poucos vão se estabelecendo padrões por via bilateral, plurilateral, e logo se utiliza do fato de que esses padrões já valem em vários países para forçar a tomada de decisões nos fóruns multilaterais.
Pela abrangência – apenas países do Pacífico, embora os EUA estejam no meio –, por enquanto o TPP é menos perigoso do que o Acta, por exemplo?
Mizukami – O Acta tem sofrido uma série derrotas na União Europeia. É um texto que já nasceu desacreditado. Não estou tentando minimizar a ameaça que representa. De fato, sua própria existência já é um problema, e é torpe que o processo tenha sido conduzido como foi. Torpe por questões de falta transparência, e pela iniciativa de se criar um fórum paralelo aos que atualmente são os legítimos na política internacional de propriedade intelectual, a OMPI e a OMC.
Por outro lado, o TPP é mais perigoso justamente porque tem pretensões menores em seus aspectos organizacionais. Não vai ter, provavelmente, os problemas que o Acta está tendo. Vai ser um acordo que, com efeito, valerá entre os países que aderirem, e que estabelecerá esses padrões pouquíssimo razoáveis em bloco. Os acordos bilaterais que existem já são ameaçadores e causam um grande estrago. Somados ao TPP, fortalece-se o argumento de que as mesmas normas deveriam ser aprovadas em algum fórum multilateral.
A maior ameaça não é a abrangência, mas o estabelecimento de padrões para futuros acordos, para futuras legislações?
Mizukami – Sim. E mesmo para os países que não fazem parte das negociações. Vamos pensar no Brasil, por exemplo, que não faz nem fará parte das negociações. Mas, eventualmente, um congressista brasileiro proporá um projeto de lei com base e inspirado no texto do TPP. Pode vingar, pode não vingar.
A gente tem um exemplo recente que foi totalmente desastroso – aquele projeto de lei [já retirado, de autoria do deputado federal Walter Feldman (PSDB-SP)] que tentou incorporar algumas ideias do Sopa [na sigla em inglês, Lei de Combate à Pirataria Online] e do Pipa [Lei de Prevenção às Ameaças Online Reais à Criatividade Econômica e ao Roubo de Propriedade Intelectual]. Outro exemplo é o Projeto Azeredo de Cibercrimes, que busca inspiração na Convenção de Budapeste [tratado internacional sobre penalização de violações de direito autoral, fraudes relacionadas a computador, pornografia infantil e violações de segurança de redes], da qual o Brasil não é signatário.
Recentemente, houve mobilizações muito fortes contra o Acta e o Sopa, por exemplo. Por que o TPP ainda não enfrenta essa oposição mundial?
Mizukami – O que a gente está discutindo é algo que demora a ser explicado. Além disso, talvez por causa do número mais reduzido de países nas negociações, creio que o debate tem ficado mais restrito a esses países, caindo menos na atenção do público interessado no assunto.
Você acha que existe potencial para um dia se chegar à mesma proporção de mobilização contrária?
Mizukami – É muito provável que a mobilização contra o TPP ganhe as mesmas forças, os mesmos contornos do que as contra o Acta, o Sopa e o Pipa. Acredito que seja uma questão de tempo. O TPP envolve questões extremamente sensíveis, que acabam repercutindo no próprio ecossistema da internet – tanto em conteúdo quanto em infraestrutura. Toda vez que esse ecossistema é ameaçado, as campanhas de mobilização na internet surgem, como se para preservar o próprio ambiente que as viabiliza. Creio, então, que é uma questão que depende mais de divulgação e que, conforme as negociações forem se aproximando do final o barulho, só irá aumentar.
Pedro Mizukami faz parte do CTS-FGV no Conselho Nacional de Combate à Pirataria, biênio 2012-2013. Participou da elaboração do relatório Media Piracy in Emerging Economies, do Social Science Research Counci