A precária inclusão cultural
Audiodescrição ainda engatinha no país, com lei mínima e baixa qualidade do serviço prestado.
ARede nº 87 – dezembro de 2012
Roteirista, revisor, ator, técnico de mixagem de som e de vídeo. Estes são os profissionais de uma produtora de cinema ou de uma companhia de teatro. Mas são também os trabalhadores que, por meio da audiodescrição, ajudam quem não enxerga a “ver” espetáculos, filmes e programas de TV. O recurso permite a inclusão cultural não só de pessoas cegas e com baixa visão, mas também de quem tem dislexia ou deficiência intelectual. Surgida nos Estados Unidos, a audiodescrição é uma narração das imagens exibidas na tela ou no palco, em momentos que não atrapalham a audição dos diálogos.
No Brasil, virou norma para os canais de TV aberta em 2010. Pela portaria 188/10, emitida pelo Ministério das Comunicações (Minicom), todas as emissoras de TV têm obrigação de transmitir ao menos duas horas por semana de programação audiodescrita. Para cinema e teatro, não há legislação a respeito. Ou seja, o país tem muito pouco e, o pouco que existe, não tem qualidade, na opinião de quem precisa do serviço. Uma das pessoas que mais conhecem a legislação nessa área, Paulo Romeu, cego e autor do Blog da Audiodescrição, acompanhou desde o princípio a confusão das propostas que regulariam o uso do recurso. Ao todo, o Minicom emitiu oito portarias. “Uma das primeiras exigia duas horas ‘por dia’ de programação audiodescrita. Após muitas idas e vindas e pressões das emissoras, a carga foi reduzida, em 2010, quando o [então] ministro das comunicações Hélio Costa assinou a portaria 188, prevendo a obrigatoriedade de duas horas ‘por semana’. Isso dá menos de 1% da programação total”, diz.
Alberto Pereira, secretário de acessibilidade e ajudas técnicas da Organização Nacional dos Cegos do Brasil (ONCB), concorda: “Duas horas semanais estão aquém das necessidades. As afiliadas das emissoras precisam ser despertadas para que transmitam os programas locais, as festas, as manifestações folclóricas com audiodescrição. Pensamos que a audiodescrição deve ser usada no teatro, cinema, na educação.”
A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão garante que todas as suas associadas vêm cumprindo a legislação, mas não cogita a possibilidade de ampliar a carga horária de programas audiodescritos. Em nota, declara: “A entidade considera que o acesso à informação, em todos os meios, é um direito do cidadão com necessidades especiais. As emissoras estão cumprindo rigorosamente a regra, embora sejam motivo de preocupação dificuldades para a adoção dos novos recursos, como o atual padrão analógico de televisão, a necessidade de importação de equipamentos e a contratação de profissionais especializados, ainda insuficientes para atender ao mercado nacional”.
Na época da regulamentação, o argumento das TVs para convencer o Minicom a reduzir a carga horária de audiodescrição foi econômico: o recurso custaria muito caro e faltaria mão de obra especializada. As emissoras divulgaram cotações, feitas com profissionais dos Estados Unidos, orçando o minuto de audiodescrição em cerca de R$ 222. Só depois que as discussões pela definição das duas horas semanais haviam avançado é que se divulgou o valor do serviço realizado por profissionais brasileiros: R$ 65 o minuto.
Hoje, as empresas recorrem a soluções ainda mais baratas que, segundo pessoas com deficiência, carecem de qualidade. “Os canais contratam empresas de dublagem sem qualquer conhecimento de audiodescrição”, reclama Romeu. Segundo ele, existem no país cerca de 400 audiodescritores profissionais, com experiência e capacitados para entregar um material superior ao encontrado hoje na maior parte das emissoras. Pela norma do setor, a audiodescrição deve ser implantada aos poucos nos canais abertos (ver quadro na página 18). A portaria 188 não faz qualquer menção à qualidade do serviço.
Incapazes de fiscalizar todos os canais abertos, o Minicom e a Anatel recorrem aos Sorteios para Acompanhamento de Radiodifusão (SAR) para checar a execução do serviço pelas emissoras. A cada dois meses, algumas cidades são sorteadas. Vários aspectos são verificados, nessas fiscalizações: a quantidade de programação eleitoral, existência dos recursos exigidos segundo os contratos de concessão etc. Como não há menção a qualidade na lei, a questão não é objeto de avaliação. O Ministério, por meio da assessoria de imprensa, afirma que já chegou a notificar alguns canais, que buscaram se adequar. Mas, caso o espectador flagre alguma irregularidade, deve fazer a denúncia no Departamento de Acompanhamento e Avaliação de Serviços de Comunicação Eletrônica do Minicom (telefone 61 3311-6890).
Além da TV
A audiodescrição pode ser usada em muitas outras mídias, além da TV. Lívia Motta, uma das mais conhecidas profissionais da área, autora do site Ver com Palavras, já fez trabalhos para cinema, teatro, em uma clínica de obstetrícia e em uma igreja. “Descrevi um ultrassom para uma amiga. Ela e o marido são cegos e queriam ter mais informações descritivas. A médica explicava para ela, mas eu ia completando. Também fiz a audiodescrição de um casamento, onde muitos convidados eram pessoas com deficiência visual. A noiva era cega e o marido tinha baixa visão”, conta. Outro ramo explorado por ela é o dos livros. Lívia descreve obras didáticas, publicadas no formato eletrônico MecDaisy, para serem lidas pelo computador.
A vontade da ONCB é que a audiodescrição contemple todos os âmbitos culturais. Para isso, conversa com Minc e com o MEC, na expectativa de estender o serviço a museus, cinemas, teatros, escolas e universidades. A ideia é que projetos que tiram proveito da Lei Rouanet, de incentivo à Cultura, tenham como contrapartida recursos de acessibilidade, como legenda aberta, exibição com intérprete em Libras e, claro, audiodescrição. “Se vai haver 50 apresentações de uma peça, que uma parte seja obrigatoriamente com audiodescrição”, propõe Romeu.
Fora da TV, a audiodescrição aparece isoladamente, em iniciativas esparsas. Algumas, bastante sólidas. Como o Festival Assim Vivemos, referência nacional quando o assunto é acessibilidade. Evento gratuito, onde são exibidos cerca de trinta filmes – entre longas, médias e curtas-metragens – que abordam a deficiência, acontece a cada dois anos no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, de Brasília e São Paulo. A primeira edição, em 2003, foi também a primeira iniciativa com audiodescrição no país. “Fui para a Alemanha e lá conheci um festival que tinha o recurso. Achei interessante e resolvi fazer algo parecido no Brasil. Então convidei minha irmã, que é atriz e conhece bem a vida das pessoas com deficiência visual, pois fez um trabalho no qual precisou aprender a andar com bengala, a se comportar como se não enxergasse”, conta Lara Pozzobon, organizadora do Festival.
Sua irmã, Graciela Pozzobon, não tem deficiência, mas fez um laboratório no Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro, especializado na educação de pessoas com deficiência visual. Aprendeu como é viver sem visão para interpretar uma pessoa cega no curta-metragem Cão Guia, de Gustavo Acioli. Graciela se tornou a primeira brasileira a fazer audiodescrição: “Fui atrás de audiodescritores estrangeiros, que me mandaram um pouco de material. Comecei intuitivamente, bem diferente de como fazemos hoje. Ao final das sessões, conversava com os usuários, e a partir disso a gente foi chegando à dose certa, descobrindo o que é excessivo, quais sons eram compreensíveis e o que precisava ser descrito”, lembra.
Hoje, ela comemora o fato de haver mais profissionais na área, que já discutem a criação de uma categoria no país. Para fazer uma audiodescrição de qualidade, explica que é preciso assistir ao material e criar um roteiro com as descrições, indicando os momentos exatos em que o narrador deverá entrar no áudio. O roteiro é revisado pelo menos três vezes e passa pelo crivo de uma pessoa com deficiência visual. Se aprovado, segue para atores gravarem a descrição, em estúdio.
Em um filme, geralmente se usa uma voz masculina e uma feminina para haver melhor correspondência entre os personagens. Depois da gravação, o técnico de som faz a mixagem e, juntamente com um editor de vídeo, acrescenta a trilha ao filme. “No caso de teatro, os atores, já ensaiados, fazem a audiodescrição na hora. Em palestras, acontece ao vivo”, conta Graciela. Ela colabora com o Teatro Carlos Gomes, no Rio, onde as apresentações do primeiro e terceiro domingos do mês têm o recurso. Fez também a audiodescrição, ao vivo, do Carnaval do Rio de Janeiro para as pessoas cegas que foram à Sapucaí. Além do ritmo contagiante, elas puderam compreender a explosão de cores da festa número um do país – pela primeira vez. (R.B.B.)
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