Telecentro? Para quê?
Apesar de ter aumentado o acesso das pessoas à tecnologia, a necessidade de uma política pública de inclusão sociodigital não está superada, na opinião da ativista Beatriz Tibiriçá. Superada, acredita ela, é a visão de alguns governantes a respeito dos centros públicos de acesso à internet – equipamentos que, sob boa gestão, podem se tornar polos de desenvolvimento das comunidades.
Texto Áurea Lopes | Fotos Robson Regato
ARede nº 91 – Maio de 2013
Há pouco mais de dez anos, quando a principal demanda da sociedade da informação era conexão, surgiam os telecentros. Hoje, cresceu muito o número de pessoas que têm computadores em suas casas e dispositivos móveis de comunicação. Com isso, os programas de inclusão sóciodigital estão diante de um desafio: compreender que a tecnologia deve estar a serviço do desenvolvimento local, alavancando as iniciativas das comunidades. Para isso, é preciso participação popular e gestão compartilhada, alerta a ativista Beatriz Tibiriçá, a Beá. Pioneira na implantação de telecentros no Brasil, Beá é uma reconhecida especialista em políticas públicas nesse setor. Esteve à frente do programa de inclusão digital da cidade de São Paulo, na gestão Marta Suplicy, e integrou a Rede Nacional de Formação do programa federal Telecentros.BR. A partir dessa experiência, avalia: “Cabe ao telecentro enxergar o que existe no seu entorno, quais os agentes sociais, que projetos a comunidade quer levar adiante, e se adequar à vocação regional”.
Com o aumento dos computadores pessoais, os telecentros estão perdendo força no processo de inclusão digital?
Beá – Não. Alguns governantes e analistas estão chegando a essa conclusão, mas esse raciocínio tem dois problemas. Primeiro: não se pode confundir inclusão digital com alfabetização digital. É possível pensar que as pessoas hoje têm mais acesso à tecnologia, sabem mais usar as máquinas – embora, se pensarmos em termos de todo o Brasil, a coisa não é bem assim… Mas mesmo que as pessoas tenham computador, usem celular, não é motivo para o esvaziamento dos telecentros, que têm outro papel. O segundo equívoco é dizer que uma política pública de inclusão digital não faz mais sentido, quando o verdadeiro problema é um erro de gestão.
Quais são os erros de gestão?
Beá – O que é o centro de uma política de telecentros, hoje? É o acesso coletivo e a possibilidade de, com o uso de tecnologias, favorecer projetos comunitários. É isso que dá vida aos telecentros. E isso só acontece quando se coordena esses telecentros em conjunto com a população, compartilhando a gestão. Aí, sim, os telecentros se tornam centros comunitários, como devem ser. Como já foram no passado, aqui em São Paulo, por exemplo. Porque o telecentro tem a função de colocar a tecnologia no centro da vida da comunidade. E o que leva as pessoas para dentro do telecentro é o que elas querem fazer em suas comunidades, e não o uso da máquina.
Qual seria o modelo ideal para um telecentro hoje, uma vez que as pessoas acessam internet por celular?
Beá – Antes de mais nada, um programa de inclusão digital não tem cartilha para seguir, não tem modelo e não tem padrão. Você tem de adequar o programa aos interesses da comunidade. Dessa forma o telecentro vai ter consistência e a comunidade vai reconhecer o equipamento como seu, vai ser receptiva à gestão compartilhada. A gestão por meio dos conselhos gestores. Quando terminou o governo da Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo, a gente já apontava para a necessidade de empoderar ainda mais os conselhos gestores, que tinham caráter apenas consultivo: indicavam oficinas, cursos, fiscalizavam o funcionamento do espaço. Naquela época foi feito um projeto de lei para institucionalizar a questão dos conselhos, da participação popular, propondo a criação de um conselho municipal de inclusão digital. O projeto até foi votado, mas ficou engavetado porque o prefeito seguinte não sancionou. Hoje os conselhos poderiam ter um poder de gestão de fato, além do consultivo.
Você quer dizer que é importante a participação da comunidade nos programas?
Beá – O que dá alegria ao projeto de inclusão digital é exatamente isso. A participação da população, de um lado, e dinamizar o telecentro de acordo com aquilo que a comunidade faz. Na Rede Nacional de Formação [rede de formação do programa federal Telecentros.BR], houve uma avaliação de que a rede estava atendendo o que a gente chamou de “letramento digital mais avançado”. O monitor que entrava para a rede já tinha alguma relação com tecnologia, conhecia um pouco de sistema etc. Assim, a gente tentou fazer um trabalho voltado para os projetos comunitários, dentro dessa ideia da comunidade no centro do processo de inclusão digital. Mas a gente percebeu que estava deixando para trás uma série de pessoas. Certas instituições parceiras, por exemplo, estavam recebendo telecentro sem ter a menor familiaridade com tecnologia. Pessoas sem nenhum contato com tecnologia estavam sendo impactadas pelos telecentros. E havia gente com conhecimento básico de tecnologia, mas que não tinha desenvolvido capacidade para colocar conteúdo na rede ou que não usava as redes sociais. Diante desses vários tipos de letramento digital, a gente achou melhor dirigir o foco para as comunidades que estavam recebendo os telecentros. Não só visando uma formação em torno de projeto comunitário, mas pensando principalmente na questão da responsabilidade e do compartilhamento.
Como seria a formação com base no compartilhamento?
Beá – Por exemplo: você pode ter telecentros em comunidades que não têm nenhuma vocação para reciclagem. Mas na comunidade vizinha, onde há cooperativas de catadores, já foi desenvolvida uma tecnologia social de reciclagem. Então, qual é a ideia? É fazer um diagnóstico das comunidades, com participação das próprias comunidades, para mapear as vocações regionais e definir de que forma o telecentro pode atuar nesse circuito de uma micro rede territorial. Assim, nesse exemplo, não é o telecentro que vai ensinar as pessoas a trabalhar com a reciclagem, pois tem outra instituição na própria região que trabalha com isso. Cabe ao telecentro enxergar o que existe no seu entorno, quais os agentes sociais, que projetos a comunidade quer levar adiante, e se adequar à vocação regional, se articular com os atores sociais da comunidade para promover o desenvolvimento local, alavancar as iniciativas da comunidade. A tecnologia deve estar a serviço disso.
O que precisa ser revisto, portanto, é o entendimento de inclusão digital.
Beá – Claro, não se pode tratar o telecentro de forma rasteira, como um equipamento público para acesso. Se pensar assim, realmente o telecentro está superado. O que está superado mesmo é a visão que alguns têm do que é uma política de inclusão digital. E não a necessidade da existência de uma política. A gente tem falado aqui no Coletivo Digital que você não pode abandonar a intencionalidade da política, não pode confiar no que a gente chamou aqui de externalidade positiva. Ah, deixa que o mercado vai fazer… é só dar dinheiro ou dar máquina que as coisas vão acontecer. Não é assim que funciona. O telecentro tem um papel de articulador, e é por isso que a gente preferia chamar os monitores de articuladores de inclusão digital.
Você pode dar um exemplo bem-sucedido dentro dessa concepção?
Beá – Na Inglaterra, no início dos anos 2.000, a gente visitou um telecentro no meio de um conjunto habitacional popular – tá certo que era uma comunidade de dez mil moradores, e não de 150 mil, como existe aqui. Nessa comunidade, beneficiada por um programa do governo de aquisição de computadores, as pessoas compraram equipamentos por 30% do valor. Todo mundo tinha computador em casa. Mesmo assim, o telecentro era bem montado, com programas de vídeo e imagem, ilha de edição. Então, qual era o papel do telecentro nessa comunidade? Exatamente de articular o trabalho coletivo. As pessoas aprendiam o uso comunitário dos equipamentos: faziam o jornal da comunidade, o site, trabalhos do pessoal que fazia música etc. Tem gente que atua na área digital que não consegue entender essa concepção de telecentro porque nunca viu um telecentro que atue dessa forma mais avançada.
Os telecentros brasileiros estão equipados para atender as demandas atuais, com máquinas suficientes, programas adequados, banda larga?
Beá – Eu acho que “telecentro” não é o nome de um modelo. Não pode ser visto como um ambiente com 20 máquinas, uma impressora, conexão tal… O telecentro pode abrigar coisas diversas, conforme você desejar. Se você está em uma comunidade com tradição em hip hop, você pode moldar o telecentro para dar atendimento a essa vocação. Aí, 20 máquinas podem não bastar. Ou pode ter até menos, desde que haja mesa de som, programas para edição de áudio, gravar CD, montar show… para que se faça a inclusão digital do jeito que aquela comunidade entenda. Por isso, a comunidade a ser favorecida não é a indicada pelo político ou onde alguém passou e achou que devia ter um telecentro ali. Se não, a comunidade não vai se apropriar da política pública e se perderá o principal sentido, que é o da participação popular para articular a tecnologia com os projetos regionais.
Esse vínculo com a vocação regional não depende mais do ator local do que dos gestores federais ou estaduais?
Beá – Vamos pegar o programa Telecentros.BR, do governo federal, dimensionado para atingir oito mil a dez mil telecentros. Foi uma inovação e um avanço. Mas teve problemas. Por que? Na minha opinião, talvez o edital tivesse que ter limitado a quantidade máxima de telecentros debaixo do mesmo proponente. Exatamente para permitir um acompanhamento mais fino das unidades. Claro que houve também uma gestão atabalhoada, com mudanças de coordenação. Mas uma avaliação que a gente faz, com o que aprendemos na Rede de Formação, é que o governo federal não deve assumir todo o papel de indução de uma política pública. Funciona melhor se você incentivar as redes territoriais e em torno do telecentro construir a articulação dos equipamentos sociais. A mobilização da comunidade pode ser um critério para a distribuição de verbas em programas de inclusão digital. É mais fácil para o governo federal destinar os recursos para que as prefeituras incentivem essas comunidades do que tentar atuar na ponta, entregando máquinas e conexão, do que chamar para si logísticas que não têm condições de dar conta. E mais: ao ativar microrredes territoriais, você gera insumos para elaboração de planos diretores de inclusão digital nas regiões e nas cidades. Assim, se desloca recurso para comunidades que já estão articuladas e não para as que ainda não entenderam que querem um telecentro. De repente, a maior necessidade da comunidade naquele momento ainda não é um telecentro. De novo: o programa não pode vir de fora para a comunidade.
No Brasil há boas práticas dentro dessa concepção de projetos comunitários?
Beá – Os usos mais comuns são nas áreas de saúde e de ambiente. No Norte, populações ribeirinhas trabalham muito bem essas temáticas em parceria com os telecentros. Inclusive porque muitas vezes têm de decidir o que o telecentro vai fazer porque as redes são com base em energia voltaica e, por exemplo, se ligar a televisão do bar, o telecentro não funciona. Eu acho que as pessoas têm ousado pouco nesse sentido. Para direitos humanos, eu enxergo claramente o potencial no combate à violência, nas mobilizações sociais. Na América Latina, Peru, Colômbia, eu vi telecentros que eram exclusivamente para reportagem comunitária. Eles usavam a estrutura do telecentro, e não era nada grandioso, eram cinco, seis máquinas com conexão. Acompanhavam marchas contra a Alca, movimentação da população indígena, e transmitiam para o mundo todo.
Você foi idealizadora de um programa de vanguarda, implantado em São Paulo, no governo Marta Suplicy. Como está essa rede hoje?
Beá – Na época, era uma concepção inovadora, que também existia em Porto Alegre. Chegamos a atender 600 mil usuários em 140 telecentros. O tripé da proposta era: software livre, participação popular e gestão de política pública. Havia o entendimento da população de que aquele equipamento era dela. Foi criado o que a gente chama de movimento telecentrista. Não havia uma política estática, era um ir e vir entre a coordenadoria de governo eletrônico e os telecentros. A gente ministrava oficinas em seis grandes temas: mundo do trabalho, ambiente, comunicação comunitária, audiovisual, imagem e sites. Mas, quando começou a gestão seguinte, 85 oficinas aconteciam ao mesmo tempo, com temas como capoeira, biscuit, dança… tudo isso foi acontecendo dentro dos telecentros, em um trabalho organizado pelos conselhos gestores, que conversavam com a comunidade e traziam as demandas. Lembro de um cara que trabalhava em uma plataforma da Petrobras e ficava seis meses no mar e seis meses em casa. Nesses seis meses em terra, ele dava aula de inglês no telecentro. Também havia uma senhora que fazia bonecas, mas não sabia como ensinar a fazer. Então a gente capacitou essa artesã com metodologia, didática, ajudou a montar o curso. Só se conseguia isso porque existia o conselho gestor. A prefeitura, do gabinete, não teria como motivar uma ação desse tipo.
O programa continuou depois dessa gestão?
Beá – Sim, mas a questão principal é: por que o programa continuou, em uma gestão de outro partido? A gente dizia que o programa era da cidade, não existia distinção política. Os telecentros eram montados a partir de critérios como índice de desenvolvimento humano etc. Em parceria com instituições, associações, cooperativas. Os conselhos gestores se tornaram uma força articulada e não deixaram o programa fechar. No entanto, o papel foi desvirtuado. Uma das primeiras mudanças foi o horário de atendimento, que ia até a noite e nos finais de semana, para atender os trabalhadores. A nova gestão estabeleceu horário de repartição pública. Depois, os conselhos gestores foram desativados. O foco também mudou: inicialmente, o telecentro era voltado para o cidadão; hoje, está a serviço do consumidor, como um equipamento de prestação de serviço. Isso afasta as pessoas do projeto. Se é para usar o telecentro para mandar o Imposto de Renda, agora dá pra fazer isso até pelo celular… Outra deficiência: a atualização dos equipamentos não é prioridade, como política pública. Aí eu vou para a lan house, onde tem conexão melhor, máquinas atualizadas. São Paulo teria de quebrar com essa dispersão da política pública e colocar em prática um novo jeito de fazer telecentros, articulado com pontos de cultura e outras iniciativas de cultura digital.
O custo da implantação de um telecentro não é uma barreira?
Beá – Na gestão da Marta, a gente atendia 600 mil usuários com um investimento em torno de R$ 14 milhões/ano. Muita prefeitura fez a conta, chegou a R$ 25 por usuário, e achou o programa barato. Não é verdade. Nenhum programa social que trate de tecnologia é barato. Tem de investir em formação, equipamento atualizado. As prefeituras achavam que dava pra fazer sem ter dinheiro, se associando a uma instituição que trabalhasse com descarte de máquinas. Durante um tempo, até é possível pensar uma coisa desse tipo. Mas até se arrumar para fazer um investimento em tecnologia adequada, máquinas suficientes. Temos de parar com essa brincadeira de que serve qualquer máquina porque telecentro é de pobre… Para quê uma banda larga? Pode ser uma conexão de 256 kbps… Não, não é assim. Além disso, qualquer programa de inclusão digital tem de fornecer formação. E a formação tem de ser aberta para toda população, não só para o monitor.
Qual o ganho, para uma prefeitura, de implantar um programa de inclusão digital?
Beá – O poder público está atrasado em perceber o papel de um telecentro, de um ponto de cultura. Os governos locais estão perdendo a oportunidade de formar nesses polos, onde estão os telecentros, os pontos de cultura, agentes comunitários de políticas sociais, por exemplo. Esses equipamentos públicos podem ajudar a prestar serviços de governo. E vão fazer a população prestar atenção na prefeitura porque vão divulgar atividades, campanhas, abrir espaço para iniciativas de cultura, educação… Além disso, as prefeituras têm de cumprir a Lei de Acesso à Informação. E você vai ter cada vez mais cidadãos preparados para analisar dados da prefeitura. É óbvio que o poder público não pode ter medo de fiscalização, nem de participação. Se o governante tiver medo, um conselho que eu dou: não faça projetos de inclusão digital. Tem de ter interesse em democratizar. Porque a inclusão digital vai democratizar, sem dúvida.