26/05/2013 – O texto abaixo foi apresentado por Antonio Martins no Diálogo Global “Os movimentos sociais na era da internet”, na tarde desta sexta-feira (24), na Casa de Cultura Mário Quintana. O autor ressalta que é uma versão ainda inconclusa de um texto maior sobre os desafios colocados para os movimentos sociais neste início de século XXI.
1. O pós-capitalismo é possível
Desde a grande mobilização global de Seattle contra a OMC e a mercantilização da vida (em 1999) e o primeiro Fórum Social Mundial (2001), ambos na virada do século, vivemos a emergência de uma nova cultura política. Ela recupera elementos das antigas tradições socialista e anarquista, como a luta pela igualdade ou a desconfiança diante do Estado, mas vai além. Esta nova cultura vislumbra, talvez pela primeira vez, a possibilidade de enfrentar o sistema hoje hegemônico desafiando seu elemento central – ou seja, os valores que o constituem.
Queremos ir além dos valores que marcaram a chamada “modernidade”, uma fase da História que começa com o final da Idade Média e se consolida com a Revolução Industrial. Rejeitamos a noção de que competir e acumular são os impulsos que movem o trabalho humano e a produção coletiva de riquezas. Estamos construindo, na prática, mecanismos de colaboração, compartilhamento, solidariedade, redistribuição.
Negamos a ideia de que o ser humano deve conquistar a natureza. Preferimos enxergá-la não como um recurso a ser consumido, mas como a casa que habitamos e precisamos preservar.
Já não enxergamos a razão como e a ciência como fontes únicas do conhecimento do mundo. Talvez concordemos com Eduardo Galeano, que concebeu certa vez a possibilidade de um “marxismo mágico – metade razão, metade emoção e uma terceira metade de mistério”.
Por este e muitos outros motivos, rechaçamos a ideia de que o Ocidente, berço do racionalismo (?) tenha o direito de iluminar, conduzir e sobretudo dominar o resto do mundo. Foi um projeto que abriu caminho para as Cruzadas, o genocídio das populações indígenas, a escravidão dos africanos e a espoliação de seu continente. Esboçamos, em lugar dele, a construção de formas de estar no mundo baseadas na diversidade cultural, nos sincretismos, na valorização tanto das grandes conquistas intelectuais inegáveis do Ocidente – por exemplo, a noção de indivíduo – quanto de noções como o bem viver dos incas, a antropofagia tupinambá, o compromisso atávico dos africanos com a alegria.
Assim como a do branco, rejeitamos a supremacia do macho e as ordens familiares monogâmicas e heteronormativas baseadas em seu poder. Acreditamos e praticamos múltiplas possibilidades de amor, amizade, conhecimento recíproco, sexo, famílias e amor.
Duvidamos das formas de democracia baseadas na representação, na transferência, nas urnas. Não identificamos política como um exercício de poder sobre outros, de disputas institucionais bizarras, de privatização do público, de manipulação. Tudo isso leva a construir o que José Saramago chamou, em carta ao I Fórum Social Mundial em Porto Alegre, de uma missa laica, uma fachada, que nada revela e na verdade oculta os mecanismos e corredores em que se tomam as verdadeiras decisões. Queremos, como alternativa, a política como exercício do direito de conhecer o mundo e as relações sociais e de transformá-las não uma vez a cada dois anos, digitando teclas numa urna eletrônica, mas por meio de atitudes e ações que assumimos e adotamos todos os dias.
2. O mundo está se transformando num lugar perigoso
Há alguns grandes déficits em nossa nova cultura política. Ela é, às vezes, narcisista demais. Somos muito orgulhosos, com razão, dos grandes passos que demos em muito pouco tempo – mas não caímos na real, não nos damos conta de que eles envolvem uma parcela ainda muito minoritária das sociedades.
Nossas iniciativas – do Fórum Social Mundial às Marchas da Maconha, da Liberdade ou das Vadias, às campanhas em defesa do Código Florestal na Internet, às tomadas simbólicas dos centros das cidades – tendem a exagerar e glorificar demais nossa própria influência no mundo real. Somos muitos, o que é ótimo. Temos peso específico para criar coletivos, manifestações, campanhas, ilusões. Em especial, a ilusão de que somos majoritários, de que nossa cultura política converteu-se na cultura política de todos. É algo imensamente enganador, amplificado muitas vezes pela guetização produzida pelo Facebook – onde todo mundo só se comunica com seus iguais. Esta ilusão impede que vejamos a influência imensa que ainda jogam ideias como a crença no emprego eixo, no salário, na carteira assinada, no progresso, na indústria, no consumo, na sensação de possuir uma geladeira da Brastemp, de ter um carro mesmo velhinho ou de consumir o Arroz Tio João.
Este narcisismo, esta tendência a valorizar demais o que nós mesmos fizemos com grande esforço, como se isso fosse o conjunto da consciência social, pode ser trágico. Porque nos impede de enxergar que o mundo continua a ser um lugar muito perigoso.