Áurea Lopes
08/03/2012 – O balaio de dificuldades enfrentadas pelos Pontos de Cultura transbordou. Acumulam-se, desde 2010, problemas como o não pagamento de resíduos de convênios firmados em anos anteriores, o cancelamento de editais, a redução de recursos dos Pontos e a ausência do programa Cultura Viva no orçamento do Ministério da Cultura (MinC) para 2012. Ao criticar a forma de seleção e conveniamento dos editais, a atual gestão do ministério fala até em devolução dos recursos já aplicados pelos Pontos.
É nesse cenário que representantes dos Pontos de Cultura se articulam para entrar com um recurso contra o governo. “Formamos uma comissão, estamos conversando com um advogado e pensamos em impetrar um mandato de segurança por conta do cancelamento, mesmo contra determinação da Advocacia Geral da União (AGU), de três editais realizados em 2011, ”, diz Geo Brito, coordenador do Ponto de Cultura do Centro de Teatro do Oprimido, no Rio de Janeiro.
Saídas possíveis
Célio Turino, idealizador do programa Cultura Viva, lançado na gestão do ministro Gilberto Gil, avalia que, para honrar os compromissos firmados com os quase 3.500 Pontos de Cultura em atividade, seriam necessários pelo menos R$ 200 milhões – o que representa um acréscimo de R$ 121 milhões no atual orçamento do ministério. O MinC deve R$ 107,8 milhões de resíduos a pagar, mais R$ 55,8 milhões dos editais cancelados e dos Pontões. “É algo em torno de 10% do orçamento do ministério, bastante razoável para um programa dessa relevância”, diz Turino.
A crise, na visão do ex-secretário de Cidadania Cultural, é perfeitamente contornável: “Não é necessário cancelar editais, muito menos devolver dinheiro, o que seria uma quebra de confiança na relação do governo federal com a sociedade civil, além de quebra de contrato, com implicações legais em diversos sentidos”. A melhor saída, para ele, seria o remanejamento interno do orçamento do MinC, “assegurando ao Cultura Viva os recursos mínimos para o cumprimento de seus compromissos e manutenção de seu tamanho e formato, ao menos nos moldes de 2010, sem retrocessos”.
Turino também sugere outras medidas, como:
a) Publicação de portaria estabelecendo prazo de 15 ou 30 dias para que os demais selecionados apresentem toda sua documentação e plano de trabalho (com parecer técnico pela aprovação) para conveniamento. Após esse prazo, os que não tiverem cumprido as exigências serão arquivados;
b) Visita técnica a todos os Pontões, a fim de verificar se estão cumprindo com suas funções de articulação (com incubação de novas entidades e futuros Pontos de Cultura, quando detectada a necessidade), capacitação e difusão na rede dos Pontos de Cultura.
Veja, abaixo, a íntegra do documento de avaliação do programa Cultura Viva feita por Célio Turino e divulgada ontem:
Sobre o Edital para seleção de Pontões
Célio Turino
Um Pontão de Cultura é um articulador, capacitador e difusor na rede
Cultura Viva, seja por território ou temáticas, e seu conceito é estratégico para a
construção do programa. Rompendo com a tradicional relação de subordinação e
dependência da Sociedade em relação ao Estado, o conceito Pontão avança no caminho
da Gestão Compartilhada entre Estado e Sociedade (em que as competências e soluções
dos problemas são encontradas dentro da própria sociedade, que se potencializa em
rede) e exercita fundamentos do Estado-Rede. Se o Ponto de Cultura significa a
potencialização de micro-redes atuando no território e comunidades, o Pontão
representa a meso-rede, ativando ainda mais a rede de Pontos de Cultura.
Partindo deste conceito, desde 2005, foram conveniados inúmeros Pontões
com os mais significativos resultados. Toda uma rede de cineastas indígenas, com
produções premiadas, inclusive no exterior, foi alavancada a partir do Pontão Vídeo nas
Aldeias. A capacitação em cultura digital e software livre entre os Pontos de Cultura
também é resultado de uma atuação articulada dos Pontões de Cultura Digital. Assim
como a extensão de grupos de Teatro do Oprimido por presídios, assentamentos rurais e
demais Pontos de Cultura do país; ou a rede de Griôs e mestres da cultura tradicional,
que chegou a beneficiar 120.000 estudantes do ensino fundamental, é resultado da
transformação de um Ponto de Cultura em Pontão, o Grão de Luz e Griô, de Lençois, no
interior da Bahia. São inúmeros exemplos que honram a construção do Cultura Viva;
coisas boas e belas foram feitas a partir deste trabalho, que vai desde a disseminação do
conceito Pontinho de Cultura (para a cultura lúdica e infantil) -que também nasce de um
Ponto de Cultura, o Bola de Meia, em São José dos Campos, interior de São Paulo-, a
TVs comunitárias, Difusão do livro e leitura, Cultura de Paz, entre outras relevantes
temáticas.
O edital de 2009, que foi o segundo específico para Pontões, cumpriu o
papel de consolidar e ampliar este processo. No momento, a atual gestão do MinC tem
apresentado críticas à forma de seleção e conveniamento do edital, gerando profunda
instabilidade e apreensão na rede Cultura Viva. Fala-se até mesmo em anulação do
edital e exigência de devolução dos recursos já aplicados pelas entidades. A alegação é
quanto a inconsistências no processo. Gostaria de estar escrevendo sobre uma posição
mais explícita e clara por parte do MinC, mas, como tem sido a tônica no último ano, as
informações chegam por partes, em ilações e boatos, que depois se confirmam em
cancelamentos de editais, como já aconteceu com três editais em 2011. Mesmo assim,
dada a gravidade da situação, na condição de idealizador e gestor do programa durante
seis anos, sinto-me no dever de me pronunciar.
A primeira alegação refere-se ao questionamento do edital e processo
seletivo por ele prever originalmente 40 Pontões e terem sido selecionados mais. Este
argumento despreza cláusula prevista no próprio edital, que abre a possibilidade de
seleção de um maior número de entidades e que, a bem do interesse público, este foi um
esforço do MinC ao longo dos oitos anos do governo Lula em diversos editais e não há
nada de errado com isso. O edital previa 40 Pontões ou R$ 14 milhões, com teto
unitário para cada proposta no valor de R$ 350 mil/ano. Como se vê, havia um teto
unitário; sendo que a maioria das propostas apresentadas tinha valor mais baixo, foi
possível selecionar mais com o mesmo orçamento. Também houve um processo de
negociação direta com proponentes para redução de custos após parecer técnico –
sempre em comum acordo-, o que também resultou em mais dinheiro disponível. Este
procedimento trouxe vantagem tanto para o Estado, quanto para a Sociedade e assim foi
possível atender mais regiões e mais temáticas com o mesmo recurso. Também houve
ampliação do orçamento do programa para 2010, possibilitando uma ampliação da
seleção.
Por que tanta crítica e ataque a um processo tão inclusivo como este? Fazer
mais com menos recursos, por que esta política está sendo tão questionada pela atual
gestão do MinC? Vale verificar os benefícios do processo. Em primeiro, nosso país é
muito grande, são 27 estados e o distrito federal, 40 Pontões são insuficientes para
atender um país do tamanho do Brasil. Havia temáticas que dependiam da constituição
de uma rede de Pontões em atuação articulada, foram elas: Livro e Leitura, Griôs e
mestres da tradição oral, Cultura Digital; somente o atendimento a estas 3 temáticas
prioritárias já representaria o preenchimento entre 25 a 30 vagas. Também houve a
necessidade estratégica de contemplar temáticas ou regiões historicamente alijadas de
políticas públicas e que só puderam ser identificadas a partir do chamamento do edital e
não antes; regiões como o sertão da Paraíba e o Cariri, Pantanal; temáticas como: artes
para o desenvolvimento de pessoas com deficiência intelectual, TVs e Rádios
comunitárias, teatro em comunidades, escolas de samba… Uma seleção inclusiva como
esta foi resultado de um processo criterioso, independente e amplo. Também houve
prazo regimental para impugnações e recursos de propostas que se julgaram
prejudicadas, sendo que vários destes recursos foram acatados a partir da reavaliação da
relevância e consistência das propostas apresentadas. Tudo muito transparente e com
acompanhamento da consultoria jurídica do MinC, que avalizou edital e convênios.
Outro argumento que se apresenta para a impugnação diz respeito à ordem
de classificação dos contemplados. Alega-se que Pontões com menor pontuação foram
conveniados na frente de outros com pontuação maior. Isto aconteceu entre 2010 e
2011, quando eu já não estava como secretário da cidadania cultural (saí do MinC em
março de 2010) e cabe perguntar aos secretários que me sucederem (3 até o momento).
Mesmo não sabendo o que motivou estes secretários a agirem deste modo, digo que este
argumento não procede. Em primeiro porque o fato de uma entidade ser selecionada não
se constitui em direito adquirido, e sim expectativa de direito, que só é consumada no
ato do conveniamento. Entre a seleção e o conveniamento há um conjunto de etapas e
procedimentos, vários deles fora da secretaria da cidadania cultural, diga-se. Há o ajuste
do plano de trabalho, juntada de documentos, parecer técnico com diversas idas e
vindas, verificação de condições de adimplência, empenho orçamentário, envio de
minuta de convenio, assinaturas, novas verificações e parecer jurídico. Este
procedimento leva vários meses e até mais de um ano. É assim que algumas entidades
conseguem resolver seus trâmites e pendências com mais agilidade que outras. Por isso
a ordem de publicação dos convênios não segue estritamente a ordem seleção, conforme
pode-se verificar em diversos outros procedimentos do MinC e, acredito, em outros
ministérios, inclusive. Como há um conjunto de selecionados e todos vão para processo
de conveniamento (sem que o conveniamento de um exclua ou prejudique o de outro)
este descompasso é corrigido no processo, sem que ninguém sinta-se ou seja
prejudicado.
Ainda sobre este argumento. Pode-se alegar que vários Pontões muito bem
classificados estão com seu processo de conveniamento paralisado, enquanto outros
com nota mais baixa tiveram o convenio efetivado e receberam o recurso. Novamente
uma pergunta a ser feita aos secretários que me sucederam (pois como saí do governo
pouco após a seleção, os poucos convênios de Pontão que assinei foram os de nota mais
alta). Ressalto que estes Pontões mais bem pontuados e ainda não conveniados, são
exatamente aqueles com temática na Ação Griô e Cultura Digital em software livre e
licença creative commons, cabendo, sobretudo à atual administração do MinC,
responder o porque desta discriminação, se é que houve. Todavia, mesmo que tenha
ocorrido erro, imperícia, descuido ou discriminação por parte das gestões posteriores à
minha, a equalização e conveniamento destes Pontões mais bem pontuados pode ser
resolvida de imediato, uma vez que o edital ainda está em aberto e permite
conveniamento.
Outro motivo que pode estar gerando esta proposta de cancelamento do
edital, mas que não é apresentado explicitamente pelo MinC, é o corte orçamentário. De
2009 para 2010 o orçamento do Cultura Viva saltou de R$ 140 milhões para R$ 216
milhões, comprovando que houve aumento orçamentário que deu base para ampliação
dos selecionados, conforme previsto em edital. Se a gestão do MinC em 2010 cumpriu
ou não este orçamento é uma outra questão, e cabe a eles responder (uma vez que eu saí
do MinC logo no início de 2010), mas a base orçamentária havia. Em 2011 também
havia lastro orçamentário, ocorre que houve o contingenciamento no orçamento dos
ministérios e no caso do MinC determinou-se um corte de 65% no Cultura Viva,
reduzindo-o para R$ 80,4 milhões. Claro que este orçamento era insuficiente até mesmo
para o cumprimento das obrigações já contratadas com o programa. Para que se
compreenda melhor: R$ 80 milhões asseguram apenas a transferência de recursos para o
pagamento de 2.000 Pontos de Cultura em rede (há mais de 3.000). Sendo que o total de
empenhos realizados em 2011 foi ainda menor, de R$ 72 milhões, ou 90% do total
liberado, percebe-se o real motivo da inviabilização do edital. Nada mais sobrou para
Pontões de Cultura (incluindo aqueles do edital de 2007, com convenio em andamento)
e demais Ações do programa. Naquele momento o papel do gestor público, sobretudo
da secretaria executiva, seria encerrar o edital, interrompendo novos conveniamentos,
que iriam para arquivo. Ocorre que não o fez. Não sei se por inexperiência, imprudência
ou desconhecimento das leis de responsabilidade fiscal e de diretrizes orçamentárias (é
crime manter contratos em aberto sem a respectiva previsão orçamentária). O fato é que
esta medida (encerramento do edital por indisponibilidade orçamentária) não foi tomada
em 2011 e nem em 2012, pelo menos até o momento. Esta é a real razão, e não outra (ao
menos imagino que não exista motivação de ordem política, de redesenho ou
questionamento conceitual da relevância dos Pontões), que está inviabilizando o
prosseguimento do edital dos Pontões.
O que fazer diante de uma situação como esta?
Aqui respondo na condição de idealizador do Cultura Viva e cidadão que se
dedicou por seis anos pela construção deste programa que tantos benefícios tem trazido
à Cultura brasileira e seu povo. Desnecessário dizer que a responsabilidade decisória é
do gestor. A melhor medida seria o remanejamento interno do orçamento do MinC,
assegurando ao Cultura Viva os recursos mínimos para o cumprimento de seus
compromissos e manutenção de seu tamanho e formato, ao menos nos moldes de 2010,
sem retrocessos. Calculo que seriam necessários em torno de R$ 200 milhões em
orçamento total (um acréscimo de R$ 121 milhões no atual orçamento da SCDC),
representando aproximadamente 10% do orçamento do MinC, algo bastante razoável
para um programa desta relevância.
Caso a direção do MinC decida por não adotar esta medida, há caminhos a
tomar. Nenhum deles que indique o cancelamento do edital ou convênios em
andamento. Menos ainda prevendo devolução de recursos. Isto representaria uma
profunda quebra de confiança na relação do governo federal com a sociedade civil, além
de quebra de contrato, com implicações legais em diversos sentidos (processos das
entidades contra o governo; criminalização do movimento social; fim de mecanismos de
articulação, capacitação e difusão na rede dos Pontos de Cultura, sem que o MinC tenha
oferecido alguma alternativa e a própria destruição do que ainda resta de gestão
compartilhada no Cultura Viva).
Como solução intermediária e a bem do interesse público, pode-se adotar as
seguintes medidas:
a) Publicação de portaria estabelecendo prazo de 15 ou 30 dias para
que os demais selecionados apresentem toda sua documentação e plano de
trabalho (com parecer técnico pela aprovação) para conveniamento. Após este
prazo, os que não tiverem cumprido as exigências serão arquivados;
b) Visita técnica a todos os Pontões (se é que já não foi feito) a fim
de verificar se estão cumprindo com suas funções de articulação (com incubação
de novas entidades e futuros Pontos de Cultura, quando detectada a
necessidade), capacitação e difusão na rede dos Pontos de Cultura. A critério do
MinC pode-se pedir uma declaração dos Pontos de Cultura que se relacionam
com o Pontão em questão, atestando o bom andamento dos trabalhos. Aqueles
que não cumprirem com os princípios e conceitos básicos de Pontão, aí sim,
terão o convenio encerrado (claro que se comprovarem a boa aplicação dos
recursos, sem a necessidade devolução dos mesmos);
Apenas com estas duas medidas, absolutamente simples e de boa
governança, já será possível restaurar um ambiente de segurança entre os Pontões, que
assim poderão prosseguir com seu indispensável trabalho. Alerto que caberá à alta
direção do MinC prover uma pequena transferência interna de orçamento que dê suporte
a estes compromissos; mas nada que um bom administrador não consiga resolver.
Da minha parte, como cidadão comprometido com a Cultura e o povo
brasileiro, coloco-me à disposição para qualquer esclarecimento e orientação, torcendo
para que as políticas públicas da Cultura encontrem um bom caminho.
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