Artigo – Os governos, a ITU e o controle da internet.

Sílivo Meira fala sobre as investidas da International Telecommunications Union sobre a rede mundial.

Sílivo Meira
Do blog Dia a dia, bit a bit

24/02/2012 – Na próxima segunda-feira vai começar uma discussão que pode mudar o rumo da internet no mundo inteiro. Será em Genebra, onde fica a sede da ITU, a International Telecommunications Union, que vem a ser a agência das Nações Unidas para as tecnologias de informação e comunicação. A ITU cuida da alocação global do espectro eletromagnético [usado por redes celulares, TVs, serviços de emergência…], determina a órbita dos satélites de comunicação, estabelece os padrões técnicos para telecomunicações… enfim, a ITU, com seus 193 países membros, detém muito poder sobre o sistema global de comunicação.

Agora, Rússia, China e aliados pretendem usar a ITU para criar um “controle internacional sobre a internet”. Para fazê-lo, a ideia é mudar o regulamento internacional de telecomunicações [ou ITR], tratado assinado em 1988 em Melbourne, para estender a ação regulatória da ITU para campos hoje fora de seu alcance e controle, onde está a internet. Não por desígnio ou acaso, mas porque, quando se escreveu a versão atual do ITR, não havia internet comercial e a ITU não estava nem aí para as redes experimentais da época, como a bitNet, uuNet, NSFnet e muitas outras.

A ITU, aliás, parece nunca dar muita atenção para inovação e mudança, o que nos deveria deixar de cabelo em pé só com a possibilidade dela ser usada para uma tomada [hostil] de controle da internet, como parece ser o desejo explícito de países que, ainda por cima, não têm história de tratar coisas públicas de forma transparente e democrática.

Antes do Fórum de Internet 2011 no Brasil, este blog escreveu que “internet não é telecom”. Aqui, a rede foi definida como serviço de valor agregado [ou SVA] desde o começo da internet comercial, lá em 1995. Que diferença isso faz? Um SVA não é passível de regulação pela Anatel, no nosso caso, e qualquer um pode, a qualquer momento, lançar novos protocolos e serviços. Caso fosse regulado, quase toda novidade, primeiro, teria que ter um padrão e ser aceita pela comunidade regulatória.

Se a internet passar a ser “controlada” pela ITU, é isso que vai acontecer com a rede global. E decisões, na ITU, são como na CBF: cada país [assim como cada federação] tem um voto. E o voto do Djibuti [cerca de 1/5 da área de Pernambuco, população menor do que a de Recife] vale tanto quanto cada um de China, Estados unidos ou Brasil.

E onde China, Rússia e muitos outros países podem chegar, ao desmontar o atual sistema de governança da internet? A lista é longa e inclui – pra bater o centro – o controle da ICANN, a instituição sem fins lucrativos de coordena os endereços da internet e onde participantes do mundo inteiro se esforçam pra garantir que a rede continue segura, estável e interoperável.

A sede de controle da Rússia e aliados atinge, também, o domínio de muitas das funções que hoje são realizadas pela IETF [a força-tarefa de engenharia de internet], que cuida da evolução da rede de forma aberta e voluntária e da Internet Society, que promove a evolução e desenvolvimento da internet em benefício de todos.

Até aqui, e por mais de 15 anos, a rede tem evoluído na velocidade que temos visto sem interferência maior de governos – que sempre querem mais controle – ou órgãos como a ITU –q ue tendem a querer mais estabilidade. A instituição de Genebra foi fundada em 1865 e, de lá pra cá e de forma cada vez mais convolucionada, se dedica mais a manter o status quo do que a promover mais inovação e competição globais. Aliás, uma das propostas que deve entrar na discussão que começa segunda e termina numa conferência mundial em Dubai, em dezembro, é permitir que companhias telefônicas possam cobrar por tráfego “internacional” na rede… O que fragmentaria a rede para sempre, tornando o acesso a sites fora do país onde está o usuário exponencialmente mais caro do que às redes nacionais.

Isso sem falar na proposta dos governos, e somente eles, tratarem de todos os assuntos relacionados à privacidade e segurança de dados. Neste caso, as consequências para a evolução da rede podem ser ainda mais drásticas: se uma versão bem radical de tal controle passar na ITU, o governo de um país qualquer poderia só permitir acesso a sites que tenham sede naquele país. nada, pois, de twitter criando uma comunidade mundial sem estar registrado, como negócio, em cada país… e aí a criatividade e inovação em rede travam, de vez.

Estranho? Já é assim para parte dos serviços em rede. Pandora, uma rádio em rede, não tem licença dos proponentes de SOPA e PIPA para prover seus serviços para o brasil, por exemplo. Olhe a imagem abaixo, onde se diz que “…due to licensing constraints, we can no longer allow access to Pandora for listeners located outside of the U.S”.

Desde sempre se sabe que o preço da liberdade é a eterna vigilância. A defesa dos direitos do cidadão, em rede, não é uma luta local, é global. Num mundo fragmentado por divisões irracionais, que levam [por exemplo] o Irã a condenar à morte um pastor que não renuncia ao cristianismo, a internet e a web são mais do que tecnologias, são prenúncio de um ambiente global onde a terra [toda] e a humanidade [inteira] fazem muito mais sentido e são mais sustentáveis do que cada um, isolado, preso na sua vila de crenças.

O desafio da rede, para continuar sendo o motor e esperança de um mundo que se solta de suas amarras históricas e parte, mais cedo, para cumprir seu inevitável destino, o dos homes e mulheres livres, porque educadas, empoderadas e conscientes de seu papel, é resistir, Resistirmos todos, às tentativas de controle do ambiente da web, sejam locais, como no Brasil, ou globais, como vai ser tentado este ano na ITU.  

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