cultura
Uma saga social na caatinga
Uma coletânea de vídeos feitos por alunos de sete cidades
do sertão da Paraíba e de Pernambuco
revela a dura
realidade de tocar projetos populares no país
Rafael Bravo Bucco
ARede nº 97 – março/abril de 2014
À sombra de um angico, usando chapéu de couro e camisa azul, Seu Sebinho, cabelos brancos, conta o que sabe. Explica que a casca da árvore é boa para curtir couro. Basta colocar um pouco dentro do curtume. Mas a planta, nativa da caatinga, também é perigosa: não deixe o gado se aproximar das folhas, que são venenosas. O conhecimento dele, e de muitos outros habitantes que tiram o sustento do bioma sem ameaçar a natureza, foi registrado em vídeo por jovens do projeto Pontão da Caatinga, realizado entre 2010 e 2013.
Nesse período, a equipe do Coletivo Para’iwa, de João Pessoa (PB), capacitou professores, agentes culturais e estudantes. Profissionais de vídeo foram chamados para ministrar oficinas de filmagem, escrita e edição de material para cinema e TV. A prática viria com a criação de minidocumentários sobre as cidades onde vivem e o ambiente em que habitam. Participaram das atividades pontos de cultura em sete cidades – Aparecida, Bananeiras, Catolé do Rocha, Cuité, Serra Branca e Taperoá, todas da Paraíba, além de Arcoverde, em Pernambuco.
O objetivo do projeto era audacioso: produzir 35 vídeos, cinco por cidade; capacitar 105 jovens, 35 professores e 24 agentes culturais dos pontos de cultura; distribuir kits para difusão dos vídeos gravados; realizar uma série de TV com sete capítulos; implantar núcleos de produção de conteúdo em dois pontos de cultura, a partir do desempenho obtido; além de fortalecer o núcleo de produção do Para’iwa, que já tinha alguns equipamentos, com novos aparelhos HD.
Quase tudo foi feito com resultados superiores ao previsto no planejamento. Das gravações, saíram 61 minidocumentários sobre os habitantes da região e sua relação com a caatinga. A adesão de estudantes (150) e professores (40) foi além das expectativas. Cada cidade formou cinco grupos de trabalho, que faziam as oficinas e se encontravam nos finais de semana para gravar, sempre assessorados por profissionais.
Edmilson Gomes da Silva Júnior, de 21 anos, era estudante do terceiro ano em 2010, quando participou do Pontão, por meio do Projeto Xiquexique, em Catolé do Rocha. “A gente teve formação de roteiro e leitura crítica da imagem. Depois dessas oficinas, a gente pode ir gravar”, lembra. Em sua cidade, as cinco equipes gravaram três vídeos cada, de cinco, três e um minuto.
“Tive ganhos enormes com o projeto. A gente ganha outra noção da realidade onde vive, fica sensível a outras coisas, desenvolve um olhar mais crítico sobre o que acontece na nossa cidade. Como vemos coisas que antes não víamos, podemos, a partir daí, mudar o contexto de alguma forma”, reflete Júnior. O jovem ressalta um importante aspecto da iniciativa: “Normalmente, projetos como esse beneficiam os grandes centros. Levar para cidades do interior é um ganho tremendo. É uma aposta no jovem que mora no sertão e também tem seu potencial, tem muito pra mostrar”. Mesmo após as gravações, ele seguiu no projeto, participando da segunda etapa, com oficinas de criação de blog, podcast e videocast.
Hoje cursando ciências sociais na Universidade Federal da Paraíba, Júnior continua fazendo cinema. Um dos três vídeos realizados por seu grupo abordou as mobilizações de estudantes em Catolé do Rocha no final da década de 1960. “Eu mesmo fiquei sabendo dessa história pelas oficinas. Então fiquei interessado no assunto, estudei, e houve a oportunidade de inscrever o projeto para um edital do governo do estado, chamado Fundo de Incentivo à Cultura Augusto dos Anjos, em 2012”, conta. Selecionado, Júnior recebeu R$ 20 mil para transformar o relato sobre a época da ditadura em um curta-metragem que foi batizado de Praça de Guerra. “As gravações aconteceram de 15 a 19 de janeiro de 2014, em Catolé do Rocha. O lançamento será no segundo semestre deste ano”, promete.
Professora de biologia da EREM Carlos Rios, em Arcoverde (PE), Flavia Emanuella Mendes Souza foi uma das docentes que passaram pela formação para trabalhar com tecnologias da informação e comunicação em produção de conteúdo audiovisual na sala de aula. O grupo de alunos que conduziu registrou como vive Odálio, o índio Kapinawá sertanejo “que melhor que ninguém sabe o que é viver na caatinga e tirar dali desde o sustento até a cura por meio das plantas”. As filmagens aconteceram no Vale do Catimbau, no município de Buique (PE).
Assim que ela soube do projeto do Pontão da Caatinga se prontificou a participar. “Foram representantes na escola propondo oficinas de multimídia, audiovisual e produção de vídeo. Isso me chamou a atenção porque eu também não tinha muita habilidade”, lembra.
Do momento em que aceitou até o encerramento, tudo foi puro aprendizado, garante ela: “Foi um mix de informações entre estudantes, professores e a equipe do Pontão da Caatinga. Foram produzidos cinco vídeos”. Os alunos e professores curtiram tanto a experiência que extrapolaram o escopo do projeto e aproveitaram para gravar um vídeo sobre a história da escola, fundada há mais de 50 anos. “O entusiasmo com a aquisição de conhecimento e a percepção de manusear aqueles equipamentos foi tamanho que os alunos produziram também esse vídeo para uma feira de ciências”, recorda.
Os cinco vídeos de Arcoverde ficaram prontos após três meses de gravações nos finais de semana. Os estudantes fizeram os roteiros, mas as imagens foram captadas pelos profissionais. Ia todo mundo gravar. A equipe do Pontão da Caatinga dava as instruções, ensinava a manusear os equipamentos. A produção do vídeo foi menos envolvente, realizada pela equipe do Pontão apenas. Os pontos de cultura que participaram do projeto foram o Multivisual.net, um de João Pessoa e outro de Bananeiras, o Grupo de Cultura Os Cariris (Taperoá), SERtão Cultural (Catolé do Rocha), Estação da Cultura (Arcoverde), Anjos da Caatinga (Serra Branca) e Casa da Cultura Antônio Nóbrega (Aparecida). José França de Oliveira é desta última. Gestor da Acauã Produções Culturais, organização responsável por dois pontos de cultura na cidade. “A gente desenvolve um trabalho no segmento audiovisual, com literatura e música”, conta.
Ele fez parcerias para levar o projeto a Aparecida. “Fechamos com a escola estadual para a produção dos materiais. Foram cinco”, diz. Tudo feito entre 2010 e 2011. “A parceria com o Pontão da Caatinga possibilitou entender um pouquinho mais sobre como trabalhar com o público da educação, com o segmento escolar”, explica Oliveira.
Como em Arcoverde, ali foram criados cinco grupos de estudantes e professores, que foram a campo com a equipe de filmagem após passar por oficinas. Os professores vieram de acordo com a demanda de tempo e por setor de trabalho. O pessoal de artes e português entrou fundo no projeto. Alguns professores de outras disciplinas acompanharam apenas pela escola. O apoio da comunidade também foi fundamental. “Quem o projeto procurou para ouvir e contar as histórias se dispôs sempre a mostrar sua história e sua realidade”, diz.
Pedras no caminho
No final de 2013 metade dos vídeos foi compilada em um box com sete DVDs, um por cidade. Foram feitos 300 kits, parte distribuída como brinde no encontro Brasil Canadá 3.0, em dezembro, parte enviada aos pontos de cultura e escolas participantes. Quem pagou para o lançamento do material foi a Associação Nacional pela Inclusão Digital (Anid). A verba repassada pelo programa Cultura Viva prevista para isso foi exigida de volta pelo Ministério da Cultura (Minc). Ao todo, o Para’iwa teve de devolver R$ 88 mil, dos R$ 350 mil que recebeu. O ministério alegou atrasos na execução.
“O projeto surgiu do edital dos Pontões de Cultura, do Minc, pela Secretaria de Diversidade Cultural, em 2009. Foi o segundo edital dos pontos de cultura, um dos primeiros em que se exigia o Siconv. Fomos uma das primeiras entidades conveniadas pelo sistema”, obseva Durval Leal Filho, responsável pelo Para’iwa.
Por ser um dos primeiros, o coletivo aprendeu a usar o Siconv na raça, isto é, usando. “Tanto nós, como o ministério, não sabíamos como trabalhar com o sistema”, conta. Ele ressalta que embora o convênio tenha sido firma do no final de 2009, apenas no final de abril de 2010 o dinheiro foi transferido para o coletivo. “Não tinha mais como executar o planejamento, que estava todo vinculado à sala de aula. Tivemos de refazer o cronograma de atividades. O projeto começou em agosto de 2010”, lembra.
Mais atrasos se deram por ser ano de eleições. “As escolas ficaram praticamente fechadas para projetos. Aqui nas cidades da Paraíba e do Nordeste a questão política é muito acirrada, realizar qualquer projeto é muito difícil, entram as intrigas familiares”, explica Leal. Mesmo assim, conseguiram fazer três oficinas em três cidades.
Diante dos problemas, o Para’iwa conseguiu prorrogação de seis meses no prazo. “Nos meses seguintes tacamos bronca e começamos a produzir. Produzimos e fechamos em 2011 as oficinas e vídeos de todos os pontos de cultura. Em todos os pontos produzimos acima do que imaginávamos”, frisa.
Segundo o termo de referência do projeto, o Pontão era encarregado também das capacitações em TICs dos gestores dos pontos. Eram cursos de videocast, podcast, roteiro interativo para TV Digital, e produção de blog. Ainda seria feita a produção dos sete programas de TV. Mais um pedido de prorrogação, de julho para dezembro de 2011. No segundo semestre de 2011 os trabalhos ficaram parados, esperando a aprovação do Minc, pois havia sido pedido também o remanejamento de rubrica – câmeras que tinham sido orçadas em R$ 27 mil baixaram para R$ 15 mil, o microfone baixou de R$ 6 mil pra R$ 4 mil.
A resposta veio apenas em 2012. “Aí a gente faz todas as oficinas de TICs, terminamos de editar os vídeos. Sobra dinheiro e pedimos outra mudança de rubrica. Foram mais seis meses sem resposta”, explica Leal Filho. Insatisfeito com o modo como as organizações sociais são tratadas pelo governo, Leal reclama: “Não tivemos acompanhamento nem avaliação. Toda hora mudam os interlocutores, os técnicos. Quem aprova o projeto é um, depois é outro”.
Quando chegou 2012, o Para’iwa ainda tinha R$ 88 mil em caixa para finalizar o projeto. Seriam usados na produção dos programas e para adquirir para dois pontos de cultura equipamentos de vídeo de alta definição. “Pedimos o terceiro aditamento. Quando pedimos, o Minc disse ´olha, vocês não terão 6 meses, terão 3´”, diz Leal, que reenviou documentos e justificativas para os prazos transcorridos. “A gente que tem um plano de trabalho não pode mudar o plano sem autorização deles. Porque senão seríamos acusados de malversação de recursos públicos, o que é passível de devolução, multa, processo”, ressalta.
O técnico do Minc mandou o parecer sobre o prazo na tarde de 28 de dezembro, último dia útil do ano. “Juridicamente, não se poderia renovar no ano seguinte, por decurso do prazo. Recebemos uma carta 42 dias depois do pedido de aditamento. Até então não tivemos resposta alguma, falando que estávamos inadimplentes, que entrariam no Serasa, no Sicaf etc. O ministério tem todos os prazos para fazer o que quiser. Nós não temos prazo nenhum”, conclui.
A notificação por inadimplência foi feita porque o coletivo não prestou contas. “E por que não prestamos contas? Porque estávamos esperando que o convênio fosse renovado. Tínhamos o dinheiro em conta e tivemos de devolver”, esclarece Leal. Os R$ 88 mil seriam usados na produção de conteúdos colaborativos, para equipar os pontos finalizar os programas de televisão, já gravados, criar os kits dos pontos de cultura e fazer um fechamento geral, reunindo as equipes. Isso não aconteceu.
As contas foram prestadas em 31 de março de 2013 no Siconv. Segundo o Minc, a prestação aguarda, até hoje, parecer dos técnicos. Da experiência, ficou o trauma de Leal com a burocracia pública: “Isso quebrou a instituição. Tínhamos uma equipe estruturada que ia trabalhar a informação, a difusão. De uma hora para outra, ficaram sem emprego. E por isso o projeto estacionou”.
Hoje o Para’iwa está congelado. Para finalizar os programas de TV, que seriam veiculados pela EBC, TV pública federal, são necessários R$ 22 mil. O coletivo procurou a Assembleia Legislativa da Paraíba, a Federação das Indústrias, mas, até o momento, ninguém se dispôs a financiar a conclusão do projeto. “A sociedade civil pequena, que depende do edital, é penalizada pela a desconfiança do estado”, lamenta.
culturadigital.br/pontaodacaatinga
paraiwa.org.br