Blog do Rovai – Revista Forum
07/12/2011 – A proposta que o MinC enviou para a Casa Civil em outubro vem sendo discutida em diversos veículos, mas até agora ninguém divulgou o documento original. Faço isso em primeira mão neste post. São três pdfs. O primeiro é o dos fundamentos do_anteprojeto da Lei de Direitos Autorais; o segundo, a exposicão de_motivos enviada à presidência e assinada pela ministra Ana de Hollanda; o terceiro, a versão final da proposta de Lei de Direitos Autorais.
Solicitei aos professores Pablo Ortellado (USP) e ao Allan Rocha (UFRJ), principais especialistas da sociedade civil em direitos autorais, uma análise detalhada sobre o projeto que está desde outubro na Casa Civil.
Eles escreveram o texto que segue e que considero altamente esclarecedor.
No final de semana, no Festival de Cultura Digital, conversei com o Sérgio Mamberti, secretário de Políticas Culturais do MinC, e com o José Murilo Júnior, coordenador geral de Cultura Digital, e eles se mostraram abertos para debater o projeto de forma mais ampla possível.
Este texto inicia o debate.
*
A versão Ana de Hollanda da reforma da lei de direitos autorais protege ECAD, dificulta licenciamento livre e ataca o compartilhamento digital
Allan Rocha de Souza*
Pablo Ortellado**
Depois de indas e vindas, a gestão Ana de Hollanda apresenta suas modificações para o anteprojeto que reforma a lei de direitos autorais. O texto do anteprojeto e a nota explicativa que o acompanha são bastante indicativos da nova orientação política do MinC. A última versão do anteprojeto mantém 85% da última versão elaborada pelo ministro Juca Ferreira, mas em 15% modifica pontos chave que beneficiam o ECAD, dificultam o licenciamento livre e favorecem a indústria frente à sociedade na regulação da Internet.
A ministra Ana de Hollanda assumiu o Ministério da Cultura em janeiro de 2011 defendendo uma pauta política que poderia ser adequadamente descrita como de defesa dos interesses da tradicional indústria cultural. No campo do direito autoral, seus discursos e atos centraram-se basicamente em dois pontos: a crítica da fiscalização pública do Escritório Central de Arrecadação de Direitos (ECAD) e da política da adoção de licenças livres de direito autoral, em especial as licenças Creative Commons. Para realizar essa agenda, ela, de imediato, ordenou a retirada do selo Creative Commons que licenciava os conteúdos do site do ministério e recolocou em consulta pública o texto do anteprojeto que reformava a lei de direitos autorais.
O anteprojeto elaborado durante o governo e gestão Lula-Gil-Juca tinha sido fruto de um longo processo de debate público que começou em 2007 e incluiu a realização de 7 Fóruns Nacionais e inúmeras reuniões e debates setoriais. Um anteprojeto fruto do debate foi proposto e submetido a uma consulta pública na Internet que recebeu mais de 8.000 contribuições. Essas contribuições em seguida foram sistematizadas e várias delas incorporadas numa nova versão. Esta, por sua vez, foi submetida ao GIPI – o Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual, que é um fórum de governo que reúne vários ministérios, da qual saiu nova versão, encaminhada em seguida à Casa Civil, de onde deveria ter sido enviada ao Congresso Nacional no começo de 2011.
Porém, quando Ana de Hollanda assumiu, o novo MinC fez várias críticas ao anteprojeto e sem condições políticas de simplesmente introduzir novas modificações, optou por submeter o texto a nova consulta pública (desta vez sem a publicidade da anterior) para justificar modificações posteriores. E foi a partir desta nova consulta que a Ministra encontrou apoio para propor as modificações que queria. Uma nova versão foi elaborada e ressubmetida ao GIPI onde o projeto foi discutido por mais de seis meses, encontrando forte resistência de outros ministérios.
Os breves comentários que apresentamos aqui são feitos com base na última versão existente (Versão 5 – veja a tabela abaixo) e que incorpora os valores do novo Ministério da Cultura e, inicialmente, discutimos abaixo três aspectos desta versão do anteprojeto da gestão Ana de Hollanda: (1) registro; (2) gestão coletiva da música; e (3) compartilhamento de arquivos digitais
As muitas versões do anteprojeto que reforma a lei de direitos autorais
Versão 1: Versão elaborada pelo Minc a partir dos debates públicos ocorridos entre 2007 e 2008 no Fórum Nacional de Direitos Autorais e colocada em consulta pública em junho de 2010.
Versão 2: Após ser submetida a consulta pública formal, uma nova versão elaborada pelos técnicos do Ministério da Cultura reunidos na Diretoria de Direitos Intelectuais incorpora as sugestões recebidas.
Versão 3: O texto da Versão 2 é encaminhado e discutido no GIPI, que propõe modificações adicionais, incorporadas ao texto do APL.A Casa Civil recebe a Versão 3 e deveria enviar para o Congresso, após modificações próprias, caso ocorressem.
Versão 4: Nova gestão do MinC recebe a Versão 3 da Casa Civil e reabre a discussão submetendo-a (Versão 3) a nova consulta – desta vez fora da plataforma pública anteriormente usada.Uma nova Versão (4) é então produzida supostamente a partir das contribuições da segunda consulta pública.
Versão 5: GIPI analisa a Versão 4 e propõe novas mudanças, quedevem (ou deveriam) ter sido incorporadas pelo MinC numa Versão 5
Versão 6: Esta nova Versão (5) está agora na Casa Civil para um parecer final antes de ir ao Congresso. Será a Versão 6 do APL de revisão da LDA
1. Registro
O artigo 20-B do novo anteprojeto torna obrigatório o registro de obras cujo depósito legal é exigido por lei e estabelece multa para quem não o fizer. A medida em si é boa, permitindo maior controle do que é publicado e evitando obras órfãs, mas ela é complementada por um dispositivo que burocratiza e onera o licenciamento.
O artigo 20-H impõe que as transferências de direitos (cessão ou licenças) sejam averbadas ao registro para valerem contra terceiros, o que pode ter implicações sérias e negativas para as licenças digitais (como as Creative Commons) e para os movimentos de Acesso Aberto à Produção Científica e aos Recursos Educacionais Abertos.
Em termos práticos, a medida implicaria que, para se fazer o licenciamento, seria necessário averbar ao registro compulsório, de maneira que não bastaria apenas colocar uma licença no rodapé de uma página Web, como se faz hoje, mas seria preciso todo um procedimento burocrático, dificultando o licenciamento livre.
Vemos aqui uma ação contrária à agenda de promoção da cultura digital (vista de maneira equivocada como uma ameaça aos artistas), pois leva a criação de obstáculos que servem apenas para dificultar a vida dos usuários de Internet e impedir as práticas estabelecidas e disseminadas de licenciamento livre.
Outros perigos relevantes da regulamentação proposta pelo MinC dizem respeito, em primeiro lugar, ao fato do registro das obras, por ser obrigatório para os editores e produtores em razão do depósito legal, não refletir as intenções contratuais dos autores e favorecerem as cessões ao invés das licenças e, também, pela possibilidade de absorção pura e simples dos registros privados – como os das associações que compõem o ECAD, com todas as suas já demonstradas falhas e falta de rigor, atribuindo-lhes fé pública.
2. Gestão coletiva
A supervisão da gestão coletiva proposta no projeto Gil-Juca Ferreira, no tocante à gestão coletiva, foi modificada em dois pontos fundamentais: no cancelamento da autorização de funcionamento das associações de gestão coletiva (como o ECAD) e na criação de obstáculos para a cobrança proporcional.
A versão anterior do anteprojeto (versão Juca) previa no artigo 98 o cancelamento administrativo de associações de gestão coletiva que não atendessem os critérios de funcionamento estabelecidos. Esse poder do executivo foi suprimido na nova versão (Ana de Hollanda) e substituído pelo cancelamento pelo judiciário (o que já ocorre hoje).
Assim, fazendo parecer que apenas troca o executivo pelo judiciário, o que o novo anteprojeto na verdade faz é retirar, de fato, o poder de fiscalização do executivo, diminuindo os instrumentos de fiscalização e supervisão públicos sobre agrupamentos de associações como o ECAD.
O novo anteprojeto também modifica os parágrafos 3º e 4º do mesmo artigo 98, deixando de exigir a cobrança proporcional (condicionando esse tipo de cobrança à possibilidade técnica e econômica). A obrigação de cobrança proporcional impediria alguns dos abusos atuais do ECAD, como a cobrança de maneira indiferenciada, independente do tipo e da quantidade de usos que se faça da execução musical. Como estava no projeto da gestão Gil-Juca, o ECAD seria obrigado a cobrar de maneira diferente dependendo da quantidade e do uso que é feito por cada usuário.
Além do mais, isso geraria listas com o que foi efetivamente executado, impedindo manobras de amostragem que favorecem os artistas das grandes gravadoras. Hoje, por exemplo, o principal critério para distribuição do que o ECAD arrecada é a amostragem do que é executado por certos usuários. É a amostragem do que é tocado nas principais rádios que serve de base para a distribuição do que é arrecadado com shows e festas, por exemplo. Só que o que é tocado em shows e festas não é o mesmo que é tocado nas rádios, já que as majors manipulam o que toca no rádio por meio do jabá. Assim, se a cobrança proporcional fosse obrigatória, haveria instrumentos que impediriam a manobra de se controlar o que toca na rádio com o jabá e depois usar esse critério para distribuir o dinheiro dos muitos pagadores. Mais uma vez, vemos no anteprojeto o interesse em proteger o ECAD e permitir que vieses de distribuição continuem a beneficiar as grandes gravadoras e a prejudicar os artistas.
3. Compartihamento digital
Segundo o art. 105-A, elaborado na Gestão Juca e mantido pelo Projeto Ana, o provedor que receber uma notificação extrajudicial sobre um uso – discutível, equivocado ou não autorizado – deverá tirar o material do ar sob pena de ser considerado igualmente infrator, junto com as pessoas que tiverem feito a postagem.
Este artigo tem por objetivo enfrentar a questão da chamada “pirataria digital”, saciar a angústia de empresas, investidores e alguns autores e artistas e agradar aos Estados Unidos, alinhando-se à sua política externa de repressão, através da responsabilização indiscriminada dos provedores – quem sabe até abrindo caminho para o ACTA, que é expressamente rejeitado pelo Itamaraty.
A parte que solicita que o material seja retirado não precisa submeter sua alegação de suposta violação a um juiz ou Tribunal que avaliaria se a alegação apresenta os indícios suficientes para uma decisão prévia, preliminar, sobre a procedência ou não do pedido. O que poderá acontecer é a indústria abusar deste dispositivo, como nos Estados Unidos, fazendo milhares de solicitações diárias para se remover matéria, o que implicará em censura prévia privada massiva, já que primeiro a obra é retirada e só depois o mérito é julgado, também de maneira privada.
O preço, contudo, pode ser exageradamente alto para a sociedade, uma vez que os acusados só poderão contestar a acusação depois de o acesso à obra ser bloqueado, com base em uma simples notificação privada. Com isso uma simples alegação privada e não provada passa a ter o condão de condenar um cidadão.
Como está redigido, o artigo afeta direta e negativamente o direito de defesa e a própria liberdade de manifestação cultural, traz sérios riscos à privacidade e atribui poderes excepcionais e injustificados aos titulares de direitos autorais, obrigando os provedores a satisfazê-los, potencialmente transformando-os em policiais privados da rede. E, desta maneira, converte todo o sistema em uma verdadeira justiça privada da propriedade intelectual, realizando o sonho totalitário das indústrias culturais tradicionais e usurpando funções exclusivamente públicas.
Vale notar que, durante a discussão no GIPI, o Ministério da Justiça ofereceu uma redação alternativa que sanava esses problemas, submetendo o mecanismo ao judiciário (a redação alternativa consta no anexo do longo parecer com a exposição de motivos), o que fora vetado pelo MinC, que preferiu a redação que dá poderes totalitários à indústria cultural.
Conclusões
Começamos o artigo chamando atenção para a agenda da ministra Ana de Hollanda marcada pela defesa do ECAD e pelo combate à cultura digital (acusada de ser inimiga do artista). Entre essas duas prioridades, aparentemente desvinculadas, há conexões de ordens políticas e filosóficas.
As palavras proferidas pela ministra sobre os direitos autorais, a designação de uma advogada próxima ao ECAD para chefiar a Diretoria de Direitos Intelectuais, o resultado da revisão do anteprojeto de reforma da Lei de Direitos Autorais e a proximidade entre as mudanças promovidas e os desejos da indústria fonográfica em especial descortinam os vínculos entre as duas iniciativas e confirmam as suspeitas iniciais sobre os verdadeiros objetivos desta gestão.
É também bastante revelador destas relações o fato de o MinC ter se esmerado para encontrar justificativas (frágeis, contudo) de inconstitucionalidade com relação à fiscalização do ECAD e, ao mesmo tempo, tenha se esquivado de analisar (ainda que minimamente) a constitucionalidade da implantação de uma justiça privada (poderíamos qualificar seus operadores como “os justiceiros privados da propriedade intelectual”?) de proteção da indústria para as questões da internet.
* Allan Rocha de Souza, Professor, Pesquisador e Coordenador do Curso de Direito da UFRRJ/ITR, Professor e Pesquisador de Políticas Culturais e Direitos Autorais do Programa de Pós Graduação em Estratégias, Políticas Públicas se Desenvolvimento – PPED/UFRJ.
** Pablo Ortellado, Professor e Pesquisador do curso de Gestão de Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da EACH-USP.