A comunidade de Peixinhos transforma um matadouro em nascedouro da cultura popular
Anamárcia Vainsencher
As comunidades que vivem no entorno da bacia do Rio Beberibe têm um dos
piores índices de desenvolvimento humano da Região Metropolitana do
Recife. Uma delas é a do bairro de Peixinhos, que fica entre as cidades
de Recife e Olinda (Pernambuco), onde moram 36,2 mil pessoas (censo de
2000), metade das quais com 25 anos ou mais de idade; pouco mais de 10
mil, com até 14 anos; 7 mil, de 15 a 24 anos. Lá, a taxa de
analfabetismo é de 6,7% entre os jovens de 15 a 24 anos; 13,8% no grupo
de 15 anos ou mais. Diagnóstico do governo estadual diz que nas
comunidades como a de Peixinhos são precárias as condições de moradia,
de convivência social e lazer, e que “os altos índices de
analfabetismo, o estigma da violência e a falta de infra-estrutura
colaboram para que o ciclo vicioso da pobreza e exclusão se reproduza e
prolifere”.
Apresentação no Nascedouro, na visita do ministro Gilberto Gil, da Cultura, em outubro de 2005.
Nada disso, porém, impediu à comunidade resgatar as ruínas abandonadas
do antigo matadouro público de Peixinhos, conjunto arquitetônico cuja
construção começou em 1874, e hoje está tombado pelo Patrimônio
Histórico Municipal do Recife. Em 22 mil metros quadrados,
originalmente, o conjunto tinha 15 blocos. Em 1987, sobravam três, de
pé. Quando as atividades do matadouro foram encerradas, na década de
70, o local virou um centro de tráfico, morte e violência. Mas, no
início dos anos 90, grupos culturais locais começaram a retomar o
espaço. Em 1998, o poeta peixinhense Oriosvaldo Limeira de Almeida
cantou a epopéia em versos:
“Esta terra banhada
em sangue de animais
e suor de homens,
não será mais matadouro
posto que doravante
será o nascedouro
da cultura popular (…)”
Dançarinas ensaiam três
vezes por semana
A resistência cultural dos jovens da região, sobretudo, mas não só,
transformaram Peixinhos. Hoje, lá está o Centro Cultural e Desportivo
Nascedouro de Peixinhos, povoado por cerca de 44 organizações e grupos
culturais; 29 bandas de música; seis programas governamentais nas áreas
social, de infra-estrutura urbana e de tecnologia (veja o quadro abaixo).
“Isso aqui era boca-de-fumo. Se não fosse a comunidade, isso aqui não
existia”, conta, satisfeita, Dª Inês Maria Ferreira. Com 60 anos, ela é
a história viva do Nascedouro. Trabalhou 12 anos como voluntária
(leia-se, de graça) numa das edificações reconstruídas, onde funciona o
Centro Social Urbano (CSU). Para sobreviver, vendia merenda. Em 1991,
formou um grupo da terceira idade na comunidade (hoje, são 80 pessoas).
“Pra tirar idoso de casa, pra não ficar criando neto,” conta ela. Dona
Inês conheceu o conjunto de dança afro Majê Molê desde que começou a
brigar para conseguir usar o abandonado porão do CSU para ensaios.
No pátio do Nascedouro, músicos do Majê Molê (Crianças que Brilham, na
língua iorubá) contam sua história. Lá estão Bala (Gilberto José dos
Santos Filho), Nino (Jonathan Cristiano da Silva), Adinã Franklin
Barbosa. “Em 1997, isso aqui era conhecido pelo tráfico e pelos
crimes”, diz o percussionista Bala, lembrando que o resgate começou com
a sopa dos sábados, feita pelas
As meninas no camarim do
Teatro Carlos Gomes, no Rio
de Janeiro.meninas, com doações da comunidade. “A
gente convidava os marginais para atraí-los. A gente conseguiu reduzir
o índice de criminalidade e conquistou respeito”, orgulha-se Bala.
Hoje, o Majê Molê tem 25 pessoas, e a banda, cinco percussionistas. O
coreógrafo é Gilson, as coordenadoras Glória (mulher de Gilson), e
Mônica. As dançarinas ensaiam três vezes por semana, os músicos, duas.
A banda deu cria: a Fator — Fundação Artística Tocadores de Rua, de
Peixinhos, onde os professores são Bala, Nino e Adinã. Os Tocadores têm
30 integrantes, de oito a 19 anos. Seus instrumentos de percussão
incluem, entre outros, alfaias (tambores ocos, de origem africana) e AB
(chequerê). A proposta é trabalhar vários ritmos para que o pessoal
ganhe conhecimento e possa tocar em outras bandas. Sobrevivência? “A
gente vive de apresentações e de doações, nós mesmos somos os
administradores, e a divisão do cachê é igual, todos sabem quanto entra
e quanto sai”, conta Bala.
Era uma vez, um projeto chamado Centro Tecnológico da Cultura Digital,
numa torre reconstruída no Centro Cultural e Desportivo Nascedouro de
Peixinhos, no bairro de mesmo nome, entre Recife e Olinda (PE). O
pontapé inicial do futuro Pontão de Cultura foi do ministro Gilberto
Gil, da Cultura, em outubro de 2005. Pelo convênio assinado no mês
anterior, o Pontão receberia R$ 604 mil (36% do custo do projeto) do
MinC para aquisição dos equipamentos do CT, e o governo estadual
entraria com R$ 1,1 milhão (64% do custo) no restauro da torre que
abrigará o centro (R$ 910 mil), e em custeio e nos cursos de educação
profissional (R$ 159 mil, neste ano). Esses cursos, assim como a
incubação de empresas de tecnologia, serão incluídos no Pontão por
sugestão do governo do estado, conta a coordenadora do CT, a economista
Elisângela Gonçalves, da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio
Ambiente do Estado de Pernambuco.
O primeiro repasse do MinC, de R$ 118 mil, deveria ser liberado em
dezembro de 2005, conforme acertado no convênio. Não foi. Assim mesmo,
conta Elisângela, as obras de restauro começaram em abril de 2006 e
foram prolongadas ao máximo para evitar roubos e depredações
posteriores, antes que o prédio fosse ocupado. A torre foi inaugurada
em dezembro do ano passado. Quinze meses depois, março de 2007, a torre
está lá, fios e cabos instalados e um centavo sequer do Cultura Viva
bateu às portas do CT. A preocupação com depredações e roubos não é
paranóia, assegura a coordenadora do CT. É só chegar no Nascedouro de
Peixinhos e conferir.
O CT da Cultura Digital de Peixinhos terá educação profissional,
inovação e difusão tecnológica, apoio ao empreendedorismo, produção
digital. Suporte tecnológico será dado às linguagens musical,
audiovisual, fotográfica, de comunicação social e radiofônica,
patrimônio imaterial/cultura popular, dança. Entre os produtos
previstos incluem-se CDs multimídia e de áudio, websites, jornais,
spots radiofônicos, vídeos e DVDs a serem ofertados pela web.
Assinaturas de convênios com governos estrangeiros também estão em
suspenso, à espera do MinC. Em janeiro, seria formalizado acordo com a
embaixada da Espanha para o desenvolvimento de pesquisas rítmicas com a
banda Ojos de Brujo, e realização de oficinas. Para março estava
programada a assinatura de convênio com o Consulado da Alemanha para
aquisição de equipamento de som para apresentação das bandas e grupos
culturais. Procurado por ARede, o Minc não respondeu à reportagem.