Na disputa pela governança, chocam-se propostas de regras democráticas e de supremacia de países e empresas. Anamárcia Vainsencher
Todo mundo que usa a internet — ou a grande maioria — quer mais é que a
rede funcione para navegar à vontade, acessar os conteúdos que lhe
apetecem e, de preferência, tudo isso com rapidez e, se der, sem pagar
muito caro. Mas está na hora de parar para refletir que tudo isso pode
estar em perigo. Porque, na internet, há um forte conflito de
interesses, envolvendo pesos pesados em assuntos que vão desde o
domínio de nomes e números, segurança, padrões, infra-estrutura física,
até infra-estrutura lógica e conteúdo. Em outras palavras, corre solta
a disputa pelo mando da “cadeia alimentar” de conexão, que vai do
usuário, na ponta, até as grandes operadoras de backbones (espinhas
dorsais) da internet. E seu desenlace vai afetar todos. Eis por que a
governança da internet está na berlinda. Ou, como diria o cordelista
Mestre Azulão, compara o ex-presidente do Serpro, Sergio Rosa, trata-se
mesmo é da “controlança” da world wide web (WWW), que preocupa governos
(porque a questão tem relação com a soberania das nações), instituições
internacionais, entidades da sociedade civil, empresas. Para discutir
tudo isso se realizará, no Rio de Janeiro, de 12 a 15 de novembro, o
segundo Fórum de Governança da Internet (IGF, da sigla, em inglês).
O fórum foi criado, em 2005, na Cúpula Mundial da Sociedade da
Informação (CMSI), em Túnis. Dele participam representantes de
instituições, governos, empresas, indivíduos. Seu objetivo: apreciar e,
eventualmente, fazer recomendações, sobre assuntos pertinentes à
governança da web. Entre as atribuições do IGF incluem-se a discussão
de políticas públicas relacionadas a elementos-chaves da governança,
para estimular a sustentabilidade, robustez, segurança, estabilidade e
desenvolvimento da internet; e de problemas relativos aos recursos
críticos da web.
Embora instituído pela Organização das Nações Unidas, nem todos
aplaudiram a criação do fórum, o que, talvez, explique o fracasso de
seu primeiro encontro (Atenas, 2005). É justo isso que se quer evitar
no IGF.2. Com esse objetivo, articulam-se governos (como os da Índia,
Brasil e Argentina); coalizões em torno de temas específicos;
organizações da sociedade civil. Nesse sentido, o Núcleo de Pesquisas,
Estudos e Formação (Nupef) da Rits (Rede de Informações para o Terceiro
Setor), com apoio da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas,
programou dois seminários sobre a governança. O primeiro foi em São
Paulo (3 e 4 de julho), o segundo será em setembro, no Rio de Janeiro.
Se os interessados na preservação dos direitos inerentes à essência
global da internet não se mexerem, será cada vez maior o risco em
matéria de acesso, abertura, segurança e diversidade da web, todos
temas centrais dos debates do IGF.2 (veja a página 23). Por isso, os
participantes do seminário de São Paulo enfatizaram a importância da
governança para a própria democracia e, por que não dizer, para a
soberania dos povos e das nações. Nem por isso, contudo, o assunto
desperta o interesse das organizações civis, “voltadas que estão para
as enormes carências que existem na sociedade brasileira”, lamenta
Carlos Afonso, coordenador do Nupef, diretor da Rits e integrante
do Comitê Gestor da Internet (CGI.Br). Poucas entidades foram ao
auditório da Direito-GV. Mas, alerta Carlos Afonso, a questão da
governança pode ter sérias conseqüências sobre as nossas vidas. Segundo
ele, é preciso mobilizar pessoas e organizações em defesa da web porque
“grandes grupos econômicos estão de olho na sua governança”.
Para o diretor do Rits, o que está em jogo, “na real”, é uma disputa de
poder entre os EUA e os outros, e que, além de se dar em torno de
recursos críticos como números, inclui searas sem governança, como os
recursos de interconexão. Esses, afirma, são dominados pelos EUA porque
é lá que termina a “cadeia alimentar.” Ele questiona as diferenças de
preços na interconexão, uma vez que os custos da tecnologia são os
mesmos, globalizados. E pergunta quem decide os preços e se não seria
uma boa idéia uma Icann para interconexão. Segurança é mais um problema
e, em nome dela, vem a censura. “Nas áreas da
convergência-neutralidade, o perigo é que se está saindo da interação
livre, onde os servidores estão centralizados, para a interação
controlada pelos detentores de conteúdo. As conseqüências disso?
Batemos de frente com as regulações de cada país, ao passo que a
internet é mundial”, critica Carlos Afosnso
A briga pelo controle da internet não é nova, recorda Alexandre
Bicalho, superintendente de serviços privados da Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel) e integrante do Multi-Stakeholder Advisory
Group (MAG) do IGF. Desde a Declaração de Bávaro, assinada pelos
participantes da XII Reunião Íbero-Americana de Chefes de Estado e de
Governo, em 2002, há diferentes propostas de governança. Uma,
multilateral, democrática, transparente; outra, similar ao modelo
intergovernamental que rege a ONU e seu braço de telecom, a UIT; uma
terceira defende um modelo privado, com supervisão de um só governo,
como o vigente. Nesse modelo, a empresa privada é a Icann (Internet
Corporation for Assigned Names and Numbers, Corporação para Atribuição
de Nomes e Números na Internet), sediada na Califórnia, supervisionada
pelo Departamento de Comércio dos EUA e que tem 60% de seu orçamento
originado pela comercialização de domínios feita pela empresa privada
também norte-americana, a VeriSign.
“Essa modalidade privada não atende às demandas do Brasil, face à
ausência da sociedade civil. No caso da proposta ONU/UIT, a burocracia
é muito grande, seus mecanismos de decisão são lentos, enquanto a
internet é veloz. Nós defendemos um novo mecanismo de governança, com
envolvimento de todos os setores, e cuja dinâmica possa acompanhar a da
internet”, argumenta Bicalho. Ele admite que são muitas as dificuldades
para atingir esse objetivo. Por exemplo, mais de uma vez os EUA
reiteraram seu apoio à Icann, afirmando que pretendem “manter o papel
histórico da corporação na autorização de mudanças ou modificações no
servidor-raiz (servidor principal no controle do DNS —, sistema de
domínios de nomes).” Segundo Bicalho, em Atenas, houve boicote em favor
da Icann. “Talvez, o que se possa esperar do IGF.2, fruto de uma
semente lançada em Túnis, é algo na direção da internacionalização da
Icann, e o arejamento da própria ONU”, observa ele.
Para o governo brasileiro, no IGF.2, não devem ser excluídos de pauta,
a priori, quaisquer temas relevantes para a governança da internet.
Essa foi uma das idéias que a representação do país levou ao encontro
de consultas informais sobre o próximo fórum, realizado em maio, em
Genebra. Para o governo brasileiro, a governança da internet envolve
aspectos técnicos e políticos. E cabe aos governos exercerem seus
direitos e responsabilidades no estabelecimento de políticas públicas
para gestão da rede no nível global. Nesse sentido, endossa todos os
elementos emanados da CMSI sobre o tema, como o compromisso com a
construção de um modelo de governança inclusivo, centrado na pessoa e
orientado ao desenvolvimento, e que tal governança seja multilateral,
transparente e democrática.
O Brasil considera importante criar um mecanismo para reverter a baixa
representatividade do mundo em desenvolvimento (em particular, da
América Latina e Caribe) no IGF. Tarefa, aliás,que cabe ao
secretário–geral das Nações Unidas, sobretudo porque o equilíbrio
regional de representação é indispensável para legitimar recomendações
do IGF. Quanto aos temas principais, o governo brasileiro pondera que
seria mais produtivo focar o debate em torno de questões concretas e
específicas relacionadas à governança, em cada um deles. Assim, no
acesso, tratar dos excessivos custos internacionais de interconexão; no
tema abertura, debater os direitos fundamentais na internet; ou o uso
de padrões tecnológicos abertos, inclusive software livre (FLOSS); no
tema segurança, tratar da cooperação para legislar e aplicar com
eficácia as leis nacionais e os tratados internacionais relacionados ao
uso da rede, particularmente em matéria penal; em diversidade,
estimular o debate sobre a proteção e promoção de conteúdos locais,
inclusive os sem fins comerciais.
www.igfgreece2006.gr
www.a2kbrasil.org.br/Internet
– Governance – Forum – IGFwww.cultura.gov.br/blogs/igf
www.nupef.org.br
www.rits.org.br
www.icann.org
http//ipjustice.org
www.intgovforum.org/Dynamic%20coalitions.php