A contribuição milionária de todos os erros

Oscar Jara, sociólogo e educador peruano, diz que a fala do dia-a-dia também cabe na literatura.


Oscar Jara, sociólogo e educador peruano, diz que a fala do dia-a-dia também cabe na literatura.
Verônica Couto

A expressão é do escritor Oswald de Andrade, no manifesto Pau Brasil,
de 1925, defendendo o uso da fala cotidiana na literatura brasileira,
um dos marcos do Modernismo. Na ação social, o sociólogo e educador
popular peruano Oscar Jara diz que os erros cotidianos também são
fundamentais. Ele veio ao Brasil, em janeiro, para apresentar o método
de “sistematização de experiências” a educadores do CDI-Comitê para
Democratização da Informática. Trata-se de documentar e refletir
criticamente sobre todos os passos dos processos de educação popular. E
não deixar que se percam, nas correrias do ativismo diário, as
contribuições das idas e vindas, dos acertos e desacertos, dos
movimentos sociais.

Oscar Jara, que vive na Costa Rica, dirige o Centro de Estudos e
Publicações da Rede Alforja e coordena o Programa Latino-Americano de
Apoio à Sistematização de Experiências do Ceaal — Conselho de Educação
de Adultos da América Latina. O programa, idealizado no Comitê
Internacional do Fórum Social Mundial, tem uma lista de discussão com
680 inscritos e cerca de 70 documentos — manuais e registros de
experiênciais sociais de diversas áreas — abertos a qualquer
interessado. Trabalha com a perspectiva de uma universidade popular dos
movimentos sociais a nível mundial, usando encontros presenciais e
internet.

Para o educador, a tecnologia potencializa os resultados da
sistematização de experiências, por permitir a formação de redes e por
introduzir os conceitos do código aberto e da produção colaborativa.
“Todo tipo de comunicação precisava formar parte livremente das
possibilidades de uso das pessoas. E não ser instrumento de controle e
dominação”, diz. Ele aponta, no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) como exemplo bem-sucedido de sistematização de
experiência. Por isso, o MST é uma das 12 organizações camponesas e
indígenas envolvidas com o manejo de recursos naturais, de diferentes
países latino-americanos,  cujas experiências serão recolhidas
para apoiar um debate global sobre meio ambiente, talvez até a criação
de um tribunal internacional, conta o peruano, que integra o projeto.

ARede • O que é o método de sistematização de experiência? Qual a diferença entre ele e outras formas de sistematização?
Oscar Jara • O mais importante é que a sistematização de
experiências é uma proposta de educação popular. A gente tenta, no
processo de sistematização, fazer processos de educação popular, no
sentido de construir, nas pessoas, capacidades de sujeitos
protagonistas e transformadores dos processos sociais. É uma
sistematização pensada para os educadores e educadoras sobre uma base
principal, que é a experiência do dia-a-dia. Esse cotidiano é uma fonte
riquíssima de aprendizado, mas que, muitas vezes, vai se perdendo,
porque não são feitos os registros dessas experiências. Não se acumula
de maneira suficiente o que a experiência nos ensina.

A diferença da sistematização de experiências é que, em diversas
disciplinas, tem se utilizado o termo sistematização no sentido do
senso comum, de ordenar, catalogar e classificar informações. E não de
sistematizar experiências. Essa tenta interpretar e apreender
criticamente os processos vividos, sabendo que os processos sociais têm
muitas mudanças e multiplicidade de elementos; envolvem as condições do
contexto, os tipos de atores, a situação econômica, política e cultural
do momento, a atitude das pessoas, as relações de poder.

Na América Latina, nos anos 60 e 70, o movimento social começou a fazer
uma autocrítica sobre a visão dependente do trabalho social,
principalmente da metodologia norte-americana, uma metodologia
asséptica e que tentava, simplesmente, desenvolver modelos aplicáveis
universalmente. A partir de então, diferentes disciplinas vêm
utilizando esse outro olhar sobre a palavra sistematização. Ela inclui
elementos quantitativos, mas é, principalmente, uma leitura qualitativa
do processo. Como exemplo, cito a sistematização das experiências das
Comunidades Eclesiais de Base (CEB) e dos programas de educação de
adultos e de educação popular, que têm essa influência tão grande de
Paulo Freire.

ARede • Desde Paulo Freire, essa prática se disseminou? Temos hoje uma base forte de experiências sistematizadas?
Oscar • Há muitas experiências em que se faz essa
sistematização, tendo ela esse nome ou não. Temos muitos encontros de
educação popular, em quase todos os países latino-americanos, baseados
em sistematização de experiências. As pessoas chegam com uma
interpretação crítica de sua experiência concreta. Não é só um registro
do que fazem, mas a compreensão de porque o fazem desse jeito.

Um dos propósitos da sistematização de experiências é contribuir à
própria experiência. Outro é a possibilidade de contribuir numa troca
qualitativa do projeto, e não só descritiva. Um terceiro é uma
contribuição à reflexão teórica a partir do que acontece na realidade.
Há, por exemplo, uma teoria da educação de adulto, teoria da educação
popular, uma teoria da intervenção comunitária, uma teoria da inclusão
digital… Mas como enriquecer e criar novidades para essa teoria, se
não for partindo das experiências de inclusão digital que estão sendo
feitas?

O CDI, por exemplo, está, agora, sistematizando as experiências
desenvolvidas em cerca de mil escolas de informática e cidadania
(Eics). A partir daí, pode recriar, repensar, dialogar com a teoria da
inclusão digital a respeito de aspectos que, antes, na teoria, você não
sabe que irão acontecer. Um exemplo muito claro é que a proposta da
inclusão digital estava pensada principalmente para adultos, e, criando
as EICs, vão chegando cada vez mais jovens e crianças nas escolas… As
pessoas que estão trabalhando lá têm que se abrir para uma experiência
de inclusão digital que é diferente daquela com adulto, que exige outra
metodologia. O processo vai ensinando.

ARede • E qual a relação da sistematização de experiências com a formulação de políticas públicas?
Oscar • Esse é exatamente o quarto objetivo da sistematização de
experiências: influenciar a formulação de políticas públicas. Por
exemplo, estive trabalhando com o Ministério do Meio Ambiente, aqui no
Brasil, com experiências na Amazônia de um projeto piloto, desenvolvido
entre 1992 e 2004.  Uma coisa é a idéia que você tinha em 1992, na
ECO 92, de como fazer isso; e outra coisa é, dez anos depois de fazer
trabalhos de proteção da floresta, de recuperação do conhecimento
indígena, você sistematizar as experiências. Tudo isso tem registro,
informes, relatórios. Mas, se você não interpreta criticamente essas
informações, perde a oportunidade de enriquecer a decisão de uma
política a partir dos aprendizados das experiências.

ARede • Essas organizações interagem com as universidades, com a chamada academia?
Oscar • Houve uma aproximação. Mas acho que esse diálogo entre a
pesquisa acadêmica e a experiência prática ainda é fraco. E talvez a
sistematização de experiência seja uma ponte importante para recuperar
o conhecimento dos praticantes que dia-a-dia estão fazendo o trabalho,
e os teóricos que estão no dia-a-dia trabalhando na academia.

ARede • Esse movimento de distanciamento das universidades se dá partir do fortalecimento do conceito da globalização?
Oscar • Sim, a partir da influência neoliberal. Se você está
pensando a educação como negócio, não interessa muito trabalhar com
setores desfavorecidos, salvo que tenham rentabilidade. A sensibilidade
social da academia tinha a ver com a missão de criar uma teoria a
partir da América Latina. E, hoje, talvez você tenha opções acadêmicas
não tão interessadas nisso.

A outra coisa é um ideal que muitas vezes não se logra de, por exemplo,
o educador ser educador, seja formal ou não, e ser também pesquisador
da sua própria realidade. Temos os que pesquisam, e os que praticam.
Estamos trabalhando com o convencimento de que as pessoas que estão na
prática têm um conhecimento muito rico, mas  precisam de
ferramentas que permitam desenvolver esse conhecimento, e tentar
produzir teorizações dessa prática, para criar também uma
intelectualidade popular que venha da sua realidade.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um exemplo muito
bom de como a própria organização vem criando seus próprios
intelectuais, seu próprio pensamento. Eles têm sistematizado a
Pedagogia da Terra, como desenvolver escolas itinerantes; como fazer
uma tomada de terra; um acampamento. Tem um aprendizado que se coloca
nos processos práticos, a partir das experiências sistematizadas: o que
dá certo, o que não dá, como engajar mais pessoas. Essa sistematização
é parte de um particularidade do MST. Outros movimentos da América
Latina não têm essa dinâmica. Fazem lutas, fazem ativismo, etc. mas não
sistematizam.

ARede • No caso da inclusão digital, por exemplo, há pouca sistematização?
Oscar • Talvez. É um campo ainda novo. A inclusão digital supõe
uma inclusão social. O acesso à informática, tal como comercialmente se
divulga, é um instrumento que só permite reproduzir a lógica dominante.
Não permite fazer uma inclusão social participativa. É importante
desenvolver um processo crítico de se apropriar da tecnologia, mas para
responder às necessidades que vêm da nossa realidade. Você pode usar
instrumentos criados por transnacionais, mas, se não os usar
criticamente, se os usar de forma passiva, cai preso dessa lógica —
toda a tecnologia é criada numa lógica, e está dentro de um processo de
poder.

Mas há processos muito interessantes, quando as pessoas dão uma
reviravolta e convertem um instrumento dominador num instrumento
liberador. Porque há uma força de resistência cultural muito forte dos
nossos povos. A idéia seria também tentar, nesse campo, desenvolver
atitudes de inclusão digital que permitam que as pessoas desenvolvam
processos comunicativos entre os setores populares, que desenvolvam
trabalhos sobre temas de sua própria realidade, e não numa lógica
puramente comercial.

E é fundamental a discussão e a implantação do software livre. É
importante que haja uma decisão política nessa direção, nos governos,
nas universidades. Todo tipo de comunicação deve estar incluída nas
possibilidades de uso das pessoas. E não ser instrumento de controle e
dominação.

Mesmo que se reconheça direitos autorais, isso não pode ser ferramenta
para impedir a criação de novas possibilidades. Por exemplo, a
internet, o acesso a sites como YouTube, ou Skype, ou outras formas,
representam uma possibilidade de apropriação democrática de um
instrumento, que, talvez, não tenha sido pensado originalmente para
tanto. Então, temos que pensar criativamente.

ARede • As tecnologias de formação de rede potencializam a sistematização de experiências, a criação de bases abertas?
Oscar • Aumentam a disponibilidade dos conhecimentos. Agora, por
exemplo, estou trabalhando com um projeto de sistematização de 12
experiências camponesas e indígenas na América Latina, envolvendo oito
países (Brasil, Chile, Bolívia, Peru, Guatemala, Nicarágua, México,
Colômbia), que têm a ver com manejo de recursos naturais. São projetos
de construção de alternativas bem-sucedidas ou de resistência à
privatização, por exemplo, da água, ou a processos que impedem a
reforma agrária ou a agricultura sustentável. Estamos começando a fazer
o desenho da estratégia, que deve levar um ano, em que cada experiência
vai recolher os aprendizados de seu próprio processo, e gerar um
intercâmbio para tentar descobrir elementos que as ajudem e a outras
organizações a trabalhar melhor.

Na sistematização, é muito importante que os próprios protagonistas a
façam. Eu não posso fazer isso, sistematizar a experiência do outro. Se
uma organização não tem uma metodologia, você pode apoiá-la, mas os
principais autores da sistematização são os protagonistas das
experiências. Com isso, a idéia é também contribuir com um diálogo
entre organizações sociais de vários países.

ARede • Como fazer com que a sistematização de experiências chegue às escolas formais? As escolas já trabalham com isso?
Oscar • Talvez o país que tenha isso mais desenvolvido, a nível
de escola pública, seja Cuba. Lá, existe um movimento que está pensando
em responder os desafios educativos da escola, a partir da prática que
os educadores e educadoras estão desenvolvendo no dia-a-dia. Agora,
criaram um mestrado em Ciência da Educação para professores, em que se
pede não uma tese teórica, mas uma sistematização de sua experiência no
campo do trabalho cotidiano.

Temos outros países que estão começando. Na Costa Rica, há um programa
de informática educativa, desenvolvido pela Fundação Omar Dengo. A
fundação tem 15 anos, trabalhando na escola pública com informática
educativa, e incluíram a sistematização de experências como um elemento
para aprendizado dessas inovações que estão fazendo dentro das escolas.

ARede • São poucos os exemplos. Por que a escola formal resiste tanto a inovações?
Oscar • Porque isso significa colocar a criatividade do
aprendizado como uma base. A escola formal ainda não ensina a pensar. A
sistematização é um processo que supõe que a gente pensa, e desenvolve
a capacidade de pensar criticamente. A escola tradicional tem toda uma
estrutura hierárquica, vertical, os conteúdos são gerados fora, os
professores são instruídos a reproduzí-los…Toda essa tendência
reprodutivista da educação continua muito forte. Mesmo que seja negada,
debatida, mesmo que a Unesco tenha anos de investimento na melhoria da
educação, ainda se entende que educação é acesso à escola, que melhorar
a educação é mais meninos e meninas na escola. Os índices de avaliação
e as metas são quantitativas, não qualitativas.

Agora, com a influência do Banco Mundial nas políticas educacionais,
por meio de financiamentos à educação básica, criou-se um afastamento
maior entre uma educação de elite, para poucos, na educação superior, e
uma educação para a maoiria, que seja muito básica, para executar o que
essa elite quer. Esse é o modelo para todos os países
latino-americanos, que vem com assessoria, capacitação, recursos, tudo.
Tanto que a pirâmide educacional continua se agravando na América
Latina. Mais acesso aos níveis  básicos e menos acesso aos níveis
superiores. O único país que se afasta disso é Cuba.

Não temos uma educação que nos ensine a aprender a aprender, a usar as
ferramentas de pesquisa, de informação, a distinguir os elementos
principais dos secundários. Temos muito a fazer. E a educação popular
tem que construir uma nova proposta e uma nova relação com a educação
formal.

www.ceaal.org — Conselho de Educação de Adultos da América Latina

www.alforja.or.cr/sistem — Programa Latino-Americano de Apoio à Sistematização

www.alforja.or.cr — A Rede Alforja é uma coordenação regional que articula o trabalho de sete ONGs da América Central e do México.