A gente tem que entender


Está no Congresso Nacional um projeto de lei sobre o acesso à informação pública, que reafirma a obrigação de transparência de todos os órgãos de governo.

O ativista Pedro Markun, do Transparência HackDay, explica por que é importante que os dados públicos fiquem disponíveis para os cidadãos, em formatos abertos e legíveis por computadores.




Dados públicos precisam estar na internet de forma fácil para serem analisados por computadores
Patrícia Cornils

ARede nº55, fevereiro de 2010 – Assim como acontece com o capítulo da Comunicação Social, que consta na Constituição mas nunca foi regulamentado, o Brasil não tem uma lei sobre o acesso à informação pública, apesar desse ser um direito constitucional. Está no Congresso Nacional um projeto de lei que deverá ser votado até março, de acordo com o deputado Mendes Ribeiro (PMDB-RS), relator da comissão especial criada para discutir a lei. O relatório está pronto desde o final do ano passado, mas ainda não foi votado na comissão. Baseado em uma proposta enviada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Congresso, em maio de 2009, o relatório recebeu contribuições de organizações da sociedade civil, como a Artigo 19, e o Transparência HackDay – um grupo de trabalho aberto, que debate e desenvolve colaborativamente aplicativos para usar essas informações.

Um dos objetivos do HackDay é estimular a criação de uma cultura a favor da liberação de dados públicos. As bases de dados disponíveis hoje, além de poucas, se concentram sobretudo em informações relacionadas a arrecadação de impostos e execução do orçamento. Com o potencial colaborativo da internet, outras bases, sobre educação e saúde, por exemplo, podem ser usadas para revelar como funciona o Brasil e o que é necessário para fazê-lo funcionar melhor. Isso só será possível se esses dados forem publicados em formatos abertos, legíveis por computadores, e atualizados.

A inovação no uso das informações públicas está em discussão em países como a Inglaterra – que acaba de criar um portal com 3 mil bases de dados – e os Estados Unidos, onde a transparência na divulgação de informações é uma prioridade do governo Barack Obama (veja a página 19). Aqui, a relação entre a publicação de dados e sua apropriação pelos cidadãos, por meio da internet, ainda é pouco debatida. Nesta entrevista, Pedro Markun, um dos participantes do HackDay, explica a importância de o poder público publicar dados em formato aberto e em forma bruta, ou seja, primários, não tratados.

O que é a Lei de Acesso à Informação Pública?
Pedro Markun – É o Projeto de Lei 5.228/2009, em tramitação no Congresso. Será uma lei importante porque, além de ter relação com a divulgação de informações sobre desaparecidos na ditadura militar, regulamenta como o poder público deve publicar suas bases de dados. Hoje, essa regulamentação não existe. Há somente o princípio constitucional da publicidade. A Constituição diz, no artigo quinto, que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de interesse particular ou coletivo, a serem prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Isso é muito vago. Qual informação? Como se dá essa publicidade? Em que prazo? Com a lei, nós, a sociedade, vamos poder bater na porta do poder público para solicitar dados sobre educação, saúde. E ajudar a criar uma cultura de liberação de dados públicos.

A lei de acesso não vai obrigar os órgãos a publicar, vai dar ao cidadão o poder de demandar a informação. Quando o cidadão faz o pedido, o órgão tem que abrir os dados de maneira que sejam úteis a todos. É importante lembrar que a Lei de Responsabilidade Fiscal, em vigor, determina a publicação de dados de contas, orçamento, como tradicionalmente são, no Brasil, as normas que falam em divulgação de informações pelo poder público. Mesmo assim, há milhares de municípios que ainda não têm seus portais de contas públicas.

O que há de novidade no projeto de lei?
Markun – O grupo de trabalho do Transparência Hackday conseguiu propor alguns pontos no projeto e especificar o que são dados abertos, estabelecer que os dados precisam ser primários e atualizados. O projeto diz que o poder público pode publicar suas bases de dados como quiser, mas também é obrigado a oferecê-las em formatos abertos, como Open Document Format (ODF), Comma Separated Values (CSV), para serem manipulados por quaisquer programas. Nos inspiramos, para fazer isso, no texto aprovado pelo estado do Paraná sobre o ODF. Além disso, os dados precisam ser devidamente documentados, porque não adianta abrir bancos complexos sem dar a chave, ou seja, sem explicar o que significa cada informação e como foi coletada.

E como se pode usar essas informações?
Markum – O Brasil tem vários setores que produzem informação de forma competente. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é um exemplo. Mas oferece relatórios com estatísticas consolidadas ou planilhas em Excel indicando quantos analfabetos há por município. Não há quase nada disponível livremente, no site do IBGE, no grau de informação bruta que seria interessante para fazer boas comparações. Os dados estatísticos, as informações primárias, na forma mais bruta possível, rua por rua, bairro por bairro. Para serem processados em uma arquitetura distribuída e gerar um mapa que mostre, ao longo dos anos, os bairros onde havia analfabetismo. Ou serem cruzados com dados sobre a localização de escolas públicas e privadas. Ou com dados do provão. Do PIB da cidade. Ou dos orçamentos. De migração…. Assim se começa a criar coisas interessantes.

Tudo isso pode ser feito pelo governo, mas o governo nunca vai poder fazer tudo. Essa nova transparência tem a ver com dividir a responsabilidade com a sociedade. Fundamentalmente, empoderar a sociedade para que a gente faça isso, cada um em seu foco de atuação. Na Casa da Cultura Digital (em São Paulo) tem uma empresa chamada Maracá, que trabalha com educação. As pessoas da Maracá têm todo o interesse em ter acesso a dados de educação. Um dos projetos do Transparência Hackday, que está parado, entre outras coisas, porque não temos bases consolidadas de dados, é um mapa da educação de jovens e adultos no Brasil. Conseguimos do Ministério da Educação o endereço de todas as escolas que em 2004 ofereciam educação de jovens e adultos. Eram 20 mil escolas em todo o país. Pode-se georeferenciar isso em um mapa, em todo o país. O segundo passo seria mapear as demandas. Essas novas interações de dados ajudam a entender melhor as informações e a apontar soluções para a resolução de problemas.

É isso que vocês chamam de “nova transparência”?
Markun – A transparência pública sempre foi algo importante, tanto que é um princípio constitucional. Mas até pouco tempo era uma coisa muito passiva, uma iniciativa quase exclusiva do poder público. Se limitava, basicamente, à publicação de dados de orçamento, gastos com pessoal, contratos, licitações. Uma coisa com um foco bastante contábil. A publicidade dos dados ajuda a combater fraudes e corrupção e também permite o controle social porque as pessoas podem ver como os recursos públicos são aplicados, e é uma exigência da sociedade. Mas a internet e as novas tecnologias possibilitam um novo tipo de transparência. A era digital, do mashup, das linguagens de programação amigáveis, do desenvolvimento rápido, da web 2.0 propõe outro tipo de relação com a informação, não mais passiva, mas ativa – pode-se criar coisas colaborativamente a partir dessas informações. E isso também aumentou a demanda pela transparência pública.

Isso muda a maneira das pessoas atuarem politicamente?
Markun – A gente pode fazer um paralelo entre a internet e o retorno do conceito, da ideia de pólis, de política. A questão da participação era muito presente no modelo grego, onde havia a ágora, uma praça onde as questões públicas eram debatidas. Dentro do círculo dos que eram considerados cidadãos, na democracia grega, a ágora era um instrumento poderoso. Ali todos tinham voz. A internet, pelos menos em teoria, traz a gente de volta para esse patamar, porque é um espaço com potencial para reunir todas as pessoas em torno da discussão de determinado assunto. Para usar a inteligência coletiva a favor da sociedade. E possibilitar uma maior integração dos cidadãos com o processo político tradicional, que está sofrendo uma crise de participação. As pessoas não estão interessadas nessa forma de representatividade estabelecida, votam e não querem mais saber o que seus representantes fazem. Mas continuam querendo saber dos problemas de seu bairro, de sua rua, da sociedade. Não é que não tenham preocupações políticas, elas não têm interesse nos políticos. E essa distância é ruim.

O poder público brasileiro publica dados?
Markun
– De um lado, os governos não provêm a informação detalhada, facilitada, de uma forma que você possa abastecer máquinas e produzir reflexões, interpretações. Do outro, não há ferramentas, aplicativos que tornem possível visualizar essas informações de uma maneira gráfica e de mais fácil entendimento para qualquer cidadão. Os dados são difíceis de ler e muitas vezes descontextualizados. Um exemplo disso é o Portal Transparência, da Controladoria Geral da União, que gera centenas de gráficos, provavelmente com todos os dados que eles têm, mas não permite fazer cruzamentos de uma forma simples. Ao contrário, é muito difícil. Tem que ir atrás de uma fonte de informação, depois de outra, depois de outra. É difícil comparar gastos, tanto entre dados do governo quanto com informações de fora do governo. Você pode saber que uma determinada pessoa de determinado órgão gastou uma fortuna em papelaria, mas não tem nenhuma noção do que isso significa.
Outro exemplo são os Diários Oficiais. Têm informações importantíssimas, mas a maneira de acessar um diário oficial é tão caótica que é quase impossível para um cidadão comum, que só quer saber coisas que lhe interessam diretamente, usar essas informações. Não há um padrão, cada diário é feito de uma maneira. Alguns, mais avançadinhos, geram um PDF. Mas a navegação é complicada, em alguns portais exigem que a pessoa diga a página que quer, outros pedem a data. Não há sistemas intuitivos de busca. O mesmo acontece com o poder Legislativo, no Congresso e nas assembléias e câmaras. São sistemas complicados. Você consegue acompanhar o trâmite de determinado projeto de lei, mas não consegue, por exemplo, receber um e-mail todas as vezes que um projeto sobre internet é apresentado e, portanto, se seu interesse for internet, ficar sabendo o que os legisladores querem aprovar sobre o tema.

O que é preciso fazer?
Markun
– É necessário deixar essas coisas transparentes, ou seja, publicar esses dados de uma maneira que sejam compreendidos inclusive por máquinas, senão continua havendo segredos. Não adianta a informação ser publicada se está codificada. Esse novo processo de transparência parte do princípio de que essas informações têm que ser decodificadas. Precisamos de dados brutos, em formatos abertos, que sejam legíveis por máquinas para poder comparar informações e criar maneiras inteligíveis de visualizá-las. A internet pode melhorar a representatividade por meio do uso da tecnologia, da criação de mecanismos alternativos de consulta. Por exemplo, a análise de proposições por SMS, ou um site onde os cidadãos possam expressar suas preocupações. Pode-se criar mecanismos de participação por meio da rede, para que as pessoas tenham retorno do que está sendo proposto por seus representantes e possam influenciar essas decisões. Agora há vários emissores, não somente receptores de informação, e as pessoas podem e devem responder ao que os políticos estão fazendo. Quando você consegue estabelecer isso, pode restabelecer uma certa confiança no sistema eleitoral.

O que pode ser debatido, nas eleições, sobre essa necessidade de transparência, publicação de dados?
Markun – Uma coisa importante é colocar esse debate na agenda dos candidatos. Tanto o da transparência e acesso a dados públicos como, de maneira mais ampla, o uso da internet para ampliar a participação política, de forma efetiva, dentro dos mandatos do poder Executivo e dos parlamentares. Outra coisa que pode ser interessante é criar uma plataforma para mapear os planos de governo, as propostas eleitorais dos candidatos. Esses documentos são quase invisíveis, ninguém conhece direito. Bolar um padrão para isso, inclusive com os próprios candidatos, e depois comparar com o governo. Criar um repositório central para que isso fique disponível e para que, eleito o candidato, a gente localize as palavras-chave de sua plataforma e veja se ele está fazendo o que disse que ia fazer.

Está aumentando o número de portais da transparência e acho que um dos trabalhos que a gente tem pela frente é sentar com os prefeitos, os governadores e explicar o que é um portal realmente útil para a sociedade. Até porque os prefeitos sabem que a divulgação desses dados os ajuda a compartilhar com a sociedade a responsabilidade de bem governar. Quando se compartilha, não se perde poder, se ganha poder. Vai haver mais olhos, mais gente interessada em ter uma vida boa em sua cidade, ajudando a pensar em soluções, apontando gente corrupta. Isso é uma ferramenta que cabe em todas as esferas, não somente em relação à aplicação de dinheiro. O impacto positivo pode ser ainda maior em coisas como a fiscalização de trânsito, saúde. Compartilhar dados é uma maneira de estimular o debate público sobre novas soluções políticas.

O mundo avança
Em 2009, o escritor Steven Johnson escreveu que a característica mais maravilhosa do Twitter foi ter estimulado uma onda de inovação, surfada tanto pelos seus usuários – que inventaram, por exemplo, o uso do sinal # para reunir posts sobre um mesmo assunto e do sinal @ para responder a posts de outra pessoa – quanto por desenvolvedores. Naquela época, haviam sido criados mais de 11 mil aplicativos para acessar a plataforma pelos mais variados meios, fazer buscas, criar listas… entre milhares de alternativas. “Em seu curto período de existência”, escreveu Johnson, “o Twitter é uma estufa de inovações criadas por usuários finais”. Essas inovações transformaram algo inventado para estimular a troca de mensagens curtas em um enorme e popular meio de comunicação.

Imagine a mesma lógica aplicada a dados públicos. A criação de um enorme reservatório de informação que qualquer cidadão possa entender, qualquer desenvolvedor possa usar e qualquer aplicação, em qualquer computador, possa processar para criar novas aplicações. O governo britânico lançou, em janeiro, algo assim. Trata-se do portal Data.gov.uk, que dá acesso livre a dados do setor público tanto para uso privado quanto comercial.

O portal foi desenvolvido com a consultoria de Tim
Bernes-Lee, inventor da World Wide Web. “Queremos encorajar os desenvolvedores da web britânica e companhias a criar sites e feeds de informação para combinar os dados com outras informações como tempo, mapas ou outros conjuntos de dados – e descobrir padrões que podem não ser visíveis quando observamos a informação crua”, diz a apresentação do site. Além de lançar o portal, o governo patrocinou um concurso de ideias para o uso das informações, com prêmio de 20 mil libras esterlinas para financiar o desenvolvimento de aplicativos com as melhores delas. Entre as possibilidades, estão fluxos de tráfego nas vias do país e o “Bilhãolibragrama” – uma maneira de comparar visualmente quantos bilhões o governo aplica em várias rubricas orçamentárias. No lançamento, o Data.gov.uk tinha cerca de 3 mil bases de dados disponíveis para o uso em mashups. O site de dados públicos do governo estadunidense, o Data.gov, lançado em maio, frustrou desenvolvedores. Criado sete meses antes do portal britânico, ele tem menos de um terço do volume de dados – cerca de mil bases. “Se o Twitter é um exemplo brilhante de como criar um próspero ecossistema em torno de um fluxo de dados, a administração Obama, por sua vez, merece só 140 toques de elogio pelos seus primeiros esforços”, publicou o ReadWriteWeb, um dos 20 blogs mais lidos do mundo, especializado em tendências da web. Quando se leva em consideração que a transparência governamental é uma das prioridades do governo Obama – o primeiro memorando assinado pelo presidente, após sua posse, determinou que o ministério de administração e orçamento criasse uma regra de transparência para os órgãos federais –, a quantidade de dados disponíveis surpreende negativamente.

O memorando de Obama gerou, nos EUA, a Diretriz para um Governo Aberto, feita depois de uma consulta pública e publicada em dezembro. A diretriz estabelece um padrão para os órgãos governamentais e metas de transparência, colaboração e participação. Essa diretriz instrui os órgãos de governo a publicar informações online com formatos abertos, acessíveis, legíveis por computadores. Cada repartição deve realizar um inventário das informações existentes e estabelecer um calendário para colocá-las online. A diretriz dá um prazo de 45 dias para que todas publiquem pelo menos três bases de dados novas e relevantes. Todo o governo, além disso, tem 60 dias para publicar páginas web em um endereço padrão, o nomedoorgao.gov/open. Ali, cada órgão deve explicar quais informações está publicando, receber sugestões sobre que dados colocar no site e permitir interação com o público.