Lia Ribeiro Dias, do Tele.Síntese Análise
12/07/2013 – O episódio supreendente, mas não imprevisível, da espionagem eletrônica feita pelos Estados Unidos nas comunicações de brasileiros, denunciada pelo jornal O Globo, pode ter efeito positivo. Ao colocar em cheque a soberania nacional e atrair a indignação de governantes, políticos e da sociedade, a bisbilhotagem do governo norte-americano poderá despertar as autoridades brasileiras e o Congresso para tratar com seriedade a questão dos direitos fundamentais na internet, da proteção à privacidade e da garantia da neutralidade da rede.
O Congresso não pode mais empurrar com a barriga a votação do Marco Civil da Internet, que tramita há dois anos sem consenso. Mais do que os interesses econômicos de produtores de conteúdo e de operadoras de telecomunicações, que emperram uma solução comum, estão em jogo os direitos fundamentais dos internautas e a total “desproteção” frente aos produtores de conteúdo – que usam suas informações – e frente às operadoras de telecomunicações – que querem priorizar tráfegos com objetivo comercial.
Também a lei de proteção aos dados pessoais está perdida no emaranhado das discussões parlamentares. Como bem disse Ronaldo Lemos, em artigo publicado na Folha de S. Paulo: “O tema vai além da soberania. A regulação da rede passa não só por governos, mas por empresas privadas, sociedade civil e uma complicada rede de relações entre leis nacionais e organismos internacionais. A internet ilustra a complexidade regulatória deste século, em que o Estado é só um dos atores”.
Justamente pela complexidade, o tema da internet requer abordagem multissetorial. Não adianta apenas adotar medidas pontuais, como localizar bases de dados das comunicações dos internautas brasileiros no país – hoje, boa parte está nos EUA. Ou desenvolver a indústria nacional, para evitar que a indústria estrangeira, que vende equipamentos aqui, embuta funcionalidades como a coleta remota de dados (backdoor) – segundo a denúncia do jornalista norte-americano radicado no Rio de Janeiro, Glenn Greenwald, que produziu a reportagem para O Globo, essa coleta teria sido usada para a espionagem dos brasileiros. Foi por meio de Greenwald, que escreve para o jornal The Guardian, que Edward Snowden, ex-analista da NSA, denunciou a violação de dados pelo governo norte-americano.
Essas ações são importantes, mas têm de ser amparadas pelo Marco Civil da Internet, que estabelece as garantias fundamentais dos cidadãos no mundo virtual, e em uma lei de proteção aos dados pessoais. O Congresso brasileiro, perplexo com a demanda dos jovens que tomaram as ruas do país, parece que ainda não se deu conta do papel da internet nesses movimentos. Não é um instrumento apenas de mobilização. Pode ser também um veículo de discriminação, de violação da privacidade, de segregação.
Os problemas estão só começando. A internet, comparam os técnicos, é terra de ninguém. E hoje, cerca de 80% das ligações internacionais transitam pelo mundo IP, mesmo que a ligação não seja por VoIP, pois o mundo IP é mais barato. Assim, a eventual quebra de sigilo de ligações telefônicas, ao lado das comunicações via e-mails, deve ter se dado na camada IP.
“No mundo IP não se tem controle exato de onde está a base de consulta. Todos os provedores – Google, Facebook, Terra ou IG – usam os metadados (que armazenam a camada de aplicação, para saber se aquele número IP acessou VoIP, e-mail e quais sites de conteúdo) para fazer marketing. Sob ordem do juiz, as empresas norte-americanas são obrigadas a abrir seus arquivos, se suas base estiverem em território americano. E a rede IP não tem país. Nos servidores da internet, passa tudo, por todo lugar. Não daria para diferenciar se a comunicação é de brasileiro ou não”, avalia um técnico.
É o tipo de tecnologia da internet, e a forma de funcionamento, que facilita o acesso remoto aos dados. Já o acesso ao CDR – o registro eletrônico das chamadas que permite o faturamento – é mais complexo. O CDR traz o número de quem ligou, dia, começo e fim da ligação. Tanto a operadora brasileira quanto a estrangeira têm o CDR. Uma autoridade judicial norte-americana poderia obrigar a operadora daquele país a abrir o CDR, mas não teria poder sobre uma operadora brasileira.
Assim, o avanço do mundo IP sobre as telecomunicações ou da telefonia sobre o mundo IP aumenta a urgência de o Brasil criar um conjunto de regulações que dê conta da complexidade da internet, a começar pela aprovação do Marco Civil.