Algo novo vai surgir na sua tela
ARede nº 77 janeiro de 2012 – No bairro do Bixiga, na capital paulista, cerca de 200 meninos e meninas de seis a 21 anos encontram, nas mídias digitais, uma alternativa de transformação para suas vidas, que tocam com muita dificuldade, em comunidades de baixa renda. Integrantes da Associação Novo Olhar, essas crianças e esses jovens passam por oficinas de audiovisual e participam de projetos como o Programa Novo Olhar, de TV, desde 1998 distribuído para São Paulo e Campinas, e que caminha para se tornar uma rede nacional. Ou do projeto Pílulas da Cidadania, que produz conteúdos sociais que vão ser veiculados em circuitos de TV de ônibus, metrô, elevador. Ou do projeto Bixiguia, um guia georreferenciado sobre o bairro, que estão desenvolvendo em parceria com a Universidade Mackenzie e o CPqD. Muitos deles, a partir dessa formação, entraram para o mercado de trabalho, como funcionários de grandes emissoras de televisão ou abrindo negócios próprios.
A moçada do Centro Comunitário de Comunicação Novo Olhar mostra como é importante, para o país, investir nas cadeias produtivas da economia digital. Não basta ter direito ao acesso à tecnologia, é preciso ter direito à produção e à distribuição dos bens culturais, ensina o professor Luiz Fernando Gomes Soares, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. “Grande parte da cultura brasileira vem das comunidades, das populações regionais. Nossa gente faz cultura, mas não tem acesso aos mecanismos de produção e de transmissão de suas expressões culturais. Precisamos de uma TV pública forte, que apoie e suporte a produção local. Não vai ser a Globo que vai fazer isso”, explica Soares, um dos principais idealizadores do Ginga, middleware para aplicativos interativos na TV digital de código aberto, livre e gratuito (ver abaixo).
O Ginga é personagem importante na história dos meninos da Novo Olhar, na história da cultura e do desenvolvimento científico do Brasil. Em plena era da digitalização, quando os equipamentos de comunicação se tornam plataformas para múltiplas aplicações de utilidade e de interesse dos cidadãos, nós marcamos um gol de placa: criamos o Ginga, com código aberto e gratuito. Qualquer pessoa com conhecimento básico de programação pode baixar livremente o Ginga da internet, ter fácil acesso à literatura técnica, integrar uma comunidade de desenvolvedores e produzir aplicativos para TV digital de forma simples e rápida. Qualquer fabricante de TV, que queira, pode embarcar essa tecnologia nos aparelhos com custo adicional insignificante, ou seja, sem encarecer o produto. E qualquer emissora de radiodifusão pode transmitir programação interativa, mais atrativa, oferecendo serviços ao espectador.
Porém, nada disso acontece em escala comercial. Basicamente por dois motivos. O país está muito atrasado na produção de conteúdos digitais – seja para a internet, amplamente disseminada entre os ricos e a classe média; seja para a televisão, veículo cuja penetração atinge 98% da população, em todas as classes. Nosso ritmo, nesse setor, é bem diferente, por exemplo, da Argentina, que aderiu ao nosso sistema de TV digital em 2009 e, um ano depois, já havia criado nove centros de pesquisa em conteúdos digitais. As iniciativas públicas de que se tem notícia no Brasil se restringem a projetos realizados em laboratórios de algumas universidades e de poucas empresas públicas – todos experimentais. De outro lado, há resistência dos fabricantes globais de TV em investir em um middleware brasileiro, o que vai reduzir a escala, em território nacional, para os pacotes de conteúdos já embutidos no aparelho e negociados mundialmente pelo fabricante.
A produção de conteúdos digitais nacionais precisa urgentemente dar um salto. Não apenas porque o mercado de mídia e entretenimento dispara mundialmente – entre 2011 e 2015 o Brasil deverá crescer 11,4% ao ano, o dobro da média global no mesmo período (ver página 16). Mas, acima de tudo, para garantir que o controle da cadeia produtiva de conteúdos digitais para a mídia brasileira – da produção à recepção – fique, literalmente, nas mãos da população brasileira, nas mãos de coletivos e comunidades como a dos meninos e meninas da Novo Olhar. Pura questão de soberania nacional. Essa é a atual briga dos ativistas da democratização do acesso à informação. Mas é uma preocupação incluída na agenda do governo, que prepara uma política pública para conteúdos digitais.
No alvo, não estão apenas as novas plataformas, como a da TV digital, mas plataformas tradicionais como a TV paga, que abre um novo espaço para o conteúdo audiovisual brasileiro e para o conteúdo audiovisual independente a partir da aprovação da Lei 12.485/2011. Essa lei unificou a legislação da TV paga no país (antes, cada tecnologia tinha uma regulamentação), abriu o mercado à participação das teles e estabeleceu a obrigatoriedade de cotas de conteúdo nacional na grade de programação das prestadoras de TV paga. A regulamentação da lei está em consulta pública (ver página 17) e a expectativa é de que entre em vigor dentro de dois ou três meses. A obrigatoriedade das cotas vai criar mercado e escala para os produtores nacionais de conteú- do. E não só para os grandes, como a Globosat e as produtoras de emissoras de TV, mas também para os pequenos. E para iniciativas como a do programa Novo Olhar. Os meninos do Bixiga poderão ver suas produções na tela da TV, em algum canal pago.
“O acesso à infraestrutura, bem ou mal resolvido, já é passado. Agora é o tempo de brigar pelo acesso ao que vai ser transmitido na infraestrutura”, pondera José Murilo, coordenador de Cultura Digital do Ministério da Cultura, um dos ministérios que coordenam a proposta da Política Nacional de Conteúdos Digitais Criativos. Depois do celular e da internet, a próxima batalha vai se dar no mundo da TV digital. O apagão analógico está marcado para 2016, lembra João Lanari, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC). “E é a televisão que vai fazer a grande inclusão digital, por ter penetração maciça, por ser um objeto altamente sedutor, com a força do entretenimento. Agora, com o digital, queremos agregar a dimensão de serviços públicos, empresariais”, revela o diretor do departamento de Tecnologias Inovadoras do MDIC.
Em 2010, um grupo de trabalho organizado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (Seac), ligada à Presidência da República, começou a discutir o assunto e concluiu que o país precisa de uma regulação que garanta “a defesa e o desenvolvimento do mercado de trabalho dos profissionais que produzem bens e serviços culturais no nosso idioma” e também “a ocupação, por produtos nacionais, em competição com os estrangeiros, dos espaços disponíveis nas mídias eletrônicas”. Em 2011, foi colocada no papel a proposta inicial de uma Política Nacional para Conteúdos Digitais Criativos, iniciativa conduzida pelos ministérios das Comunicações (Minicom); da Cultura, por meio da Secretaria de Audiovisual; e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, por meio da Secretaria de Inovação.
A ideia não é só produzir conteúdo para potencializar o uso das redes de banda larga, mas transformar a indústria brasileira de conteúdo digital em uma atividade econômica de expressão no mercado interno e também externo. E já há recursos alocados para isso no Plano Plurianual (PPA) para o período de 2012 a 2015. Foram destinados R$ 270 milhões à “promoção do uso de bens e serviços de comunicações, com ênfase nas aplicações, serviços e conteúdos digitais criativos para potencializar o desenvolvimento econômico e social do país”. Segundo James Gorgen, assessor da secretaria executiva do Minicom, a articulação de todas as áreas do governo federal envolvidas com a questão dos conteúdos digitais se assemelha ao que foi feito na concepção do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD). A previsão é de que o texto do Plano Nacional receba contribuições de cada ministério e seja submetido à consulta pública este ano, para chegar à presidente Dilma Rousseff no início de 2013.
Educação e inovação
Regras e incentivos são determinantes, mas compõem apenas uma parte do processo que leva a nova Política de Conteúdos Digitais Criativos a alcançar seu objetivo maior, de “aproveitamento da oportunidade econômica gerada pelos investimentos nas cadeias produtivas dos setores de audiovisual, jogos eletrônicos, visualização e aplicativos de TI”, como diz o texto da proposta inicial.
Entre outros itens da receita de sucesso está a educação, primeira premissa para o desenvolvimento e a sustentabilidade do setor, de acordo com Bruno Feijó, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). “Não temos mão de obra qualificada. Precisamos de educação básica, técnica, superior, especializada, tudo… em perspectivas de médio e longo prazo”, diz ele, apontando que a universidade está atrasada na área de convergência dos conhecimentos tecnológicos. Ao lembrar que a TV digital vai abrir muitas oportunidades, ressalta: “O país só vai ter expressão nesse segmento se tiver competência para a inovação. Então, o primeiro passo é definir bem o que são os conteúdos digitais, para depois identificar as inovações. A área exige um modelo de produção novo, híbrido, que envolve tecnologia e arte, programador e designer. Não há produtos de prateleira para os novos dispositivos de interface, será preciso saber programar para juntar sensores, planejar uma tela de navegação funcional”, explica o professor.
Por suas características culturais, pela criatividade latente, o brasileiro, na opinião de Feijó, pode fazer diferença: “Os conteúdos digitais caem como luvas nas nossas mãos”. Mas esse talento nacional requer investimentos. “A inovação é como uma planta tenra, não podemos parar de regar. O governo e as empresas têm de pensar em continuidade, saber que montar uma equipe é custoso, colocar dinheiro a fundo perdido”.
Brasileiríssimo, gerado por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o Ginga é um middleware livre, com código aberto e totalmente gratuito.
Tecnicamente, a tecnologia consiste em uma camada de software intermediário, que permite criar aplicações interativas para TV Digital, de forma independente da plataforma de hardware do fabricante de aparelhos. Politicamente, representa o reconhecimento da inovação de que os brasileiros são capaz. O Ginga é o mid- dleware do Sistema Nipo-Brasileiro de TV Digital Terrestre (ISDB-TB), já adotado por países da América do Sul e da América Central.
A linguagem NCL, utilizada no Ginga, tem diversas vantagens: é de fácil aprendizagem por não especialistas; é suficientemente “leve” para implementações em receptores de baixo custo, sejam conversores digitais, aparelhos de TV, dispositivos celulares etc.; e é propícia a aplicações inovadoras. E foi para reforçar o conceito do middleware – de acordo com seus criadores, a exemplo da ginga do brasileiro, “um movimento fundamental da capoeira, nossa forma de luta por liberdade e igualdade” – que surgiu o projeto Ginga Brasil. As propostas são ampliar a formação sobre a tecnologia, difundir conhecimentos e estimular o desenvolvimento de aplicativos. Igualmente importante é mostrar como o Ginga é fácil de aprender e de trabalhar.
Por isso, a primeira edição do Ginga Brasil, em 2009, reuniu cerca de 200 alunos do ensino básico público de 13 cidades do país. Na segunda edição, foi a vez de telecentros, TVs comunitárias e Pontos de Cultura. Como complemento dessa segunda edição, para este ano está sendo organizada uma rodada com TVs universitárias de todo o país. “Estamos vendo, na prática, que os jovens, as comunidades, as populações de baixa renda são capazes, sim, de produzir conteúdos, de expressar suas culturas”, diz Luiz Fernando Gomes Soares, professor da PUC-RJ e um dos criadores do Ginga.
Com o apoio de instituições como o Comitê Gestor da Internet (CGI.br), Rede Nacional de Pesquisa (RNP), Telebrás, Proderj, Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), o Ginga Brasil lançou o Concurso Latino-americano em Programação NCL e prepara, para 2013, o 1º Festival de Narrativas Interativas.
Espaço garantido
Para estimular a competitividade e a pluralidade no mercado audiovisual, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) aprovou a Minuta de Instrução Normativa (IN) Geral, que vai regulamentar os dispositivos da Lei 12.485/2011, relativos à Comunicação Audiovisual no Serviço de Acesso Condicionado (Seac). O Seac substitui os atuais serviços de TV paga. O novo serviço entra em vigor tão logo sejam aprovados os regulamentos colocados em consulta pública pela Anatel, que regulamenta a parte relativa às telecomunicações, ou seja, ao transporte dos sinais, e pela Ancine, responsável pelo conteúdo audiovisual.
As medidas previstas na IN Geral da Ancine (ela lançou outra IN relativa apenas às informações para o credenciamento da obra na agência) visam ampliar o acesso dos espectadores a conteúdos e canais brasileiros e também fortalecer as programadoras e produtoras nacionais, garantindo espaço para as independentes. Esta IN contempla três conceitos que são muito importantes: horário nobre, espaço qualificado e produção independente. O espaço qualificado é constituído por obras audiovisuais, seriadas ou não, dos tipos ficção, documentário, animação, reality show, videomusical, e de variedades, realizadas fora de auditório. Canais de espaço qualificado são os que, no horário nobre, veiculam obras audiovisuais de espaço qualificado em mais de 50% da programação. Nesses canais, no mínimo três horas e meia semanais dos conteúdos veiculados no horário nobre deverão ser brasileiros e constituir espaço qualificado, sendo que, no mínimo, metade deverá vir de produtora brasileira independente.
O novo regulamento da Ancine traz diversos incentivos para produtores e programadores independentes, o que deve acabar com o bloqueio do acesso dessas pequenas empresas ao mercado de TV paga no Brasil. Além das cotas de conteúdo nacional, a IN também estipula que ao menos um terço de todos os canais brasileiros de espaço qualificado devam ser de programadoras independentes.
O produtor de conteúdo é considerado independente quando tem o poder dirigente sobre a obra. Ou seja: quem compra conteúdo de terceiros, passando a ter os direitos de propriedade sobre a obra, não será considerado produtor independente mesmo que a obra seja brasileira.