Documentário usa referências históricas e culturais para deslocar e revelar significados múltiplos na obra do sambista Patrícia Cornils*
Cartola em estúdio
Quando estava fazendo o roteiro para o documentário sobre a vida de
Cartola, o diretor Hilton Lacerda lembrou-se do livro “Mate-me Por
Favor: uma história sem censura do punk”, dos jornalistas americanos
Legs McNeil e Gillian McCain. Seus autores reúnem depoimentos das
pessoas que estavam lá, nos anos 60 e 70, quando o punk começou, nos
Estados Unidos, com palavras-de-ordem como revolução e autonomia. As
falas se sucedem, e são entrevistas feitas tanto na época quanto nos
anos 90, quando o livro foi lançado. Às vezes, uma pessoa contradiz, no
parágrafo seguinte, o que a anterior disse. E é o conjunto das falas,
no todo, que dá personalidade ao livro. “Cartola, Música para os Olhos”
é um filme feito assim: uma sucessão de depoimentos, trechos de filmes
brasileiros, programas de televisão e vinte depoimentos, mais imagens
feitas especificamente para o filme, na Mangueira e em outros lugares
do Rio de Janeiro. Separadamente, cada uma dessas coisas têm um
sentido. Juntas, formam uma narrativa que os dois diretores — além de
Hilton, Lírio Ferreira — chamam de “sensorial”. A montagem leva o
espectador a participar de algo que está acontecendo ali, mesmo que ele
não saiba explicar exatamente o quê.
Para fazer esse mosaico, “Cartola” usou muito material de arquivo. Dos
R$ 1,6 milhão gastos no filme, R$ 600 mil foram para pagar direitos
autorais. Esse custo dos arquivos poderia ter inviabilizado o filme e
foi um dos motivos pelos quais ele demorou oito anos para ser feito: o
prazo necessário para que a Raccord, produtora de “Cartola”, captasse
recursos suficientes para pagar os direitos autorais, receber todas as
autorizações necessárias e realizar o filme. Das imagens usadas,
somente aquelas produzidas pela Raccord podem ser liberadas de direitos
autorais, mas isso depende de negociação com a produtora. “Podemos
liberar para outros produtos culturais, mas, para produtos comerciais,
cobraríamos”, diz Clélia Bessa, produtora de “Cartola”.
Para um filme ter divulgação livre, sem pagamento de direitos autorais,
ele precisa ser concebido assim desde seu nascimento, acredita Clélia.
Esse foi o caso de “Cafuné”, de Bruno Vianna, da mesma produtora. “O
filme é totalmente isento de direitos de terceiros e os autores
liberaram para ser distribuído na rede no momento em que ele foi
filmado”, conta Clélia. “Além disso, foi produzido com um prêmio do
Ministério da Cultura, todo com dinheiro público; assim, achamos que
seria justo que o acesso a ele fosse público”.
Cartola e Dona Zica A liberação não tem a ver apenas com direitos autorais, mas também com
a maneira escolhida para comercializar o filme. No caso de “Cartola”,
onde há distribuidores associados, ele precisa percorrer todo um
circuito comercial, antes de ser liberado, inclusive para as TVs
educativas: cinemas, DVD, TV fechada, TV aberta. “Isso tem mais a ver
com como colocar o filme no mercado do que com os direitos autorais em
si”, avalia Clélia.
Além de determinar a viabilidade ou não de um filme feito a partir de
arquivos, há complicadores adicionais gerados pelas leis de direitos
autorais. Dois exemplos: uma imagem da extinta TV Tupi, de Pixinguinha
— um dos maiores e mais completos músicos brasileiros —, pode ser
comprada, mas só pode ser usada, se todas as outras pessoas que
aparecem na imagem autorizarem. Como 90% dessas pessoas já morreram, os
produtores precisam encontrar seus herdeiros para conseguir sua
autorização. Essa é a forma como os donos dos acervos de imagem se
protegem da lei, explica Clélia. A Globo, se tem uma imagem do sambista
Paulinho da Viola, em que aparecem também outras pessoas, só libera seu
uso, mesmo com o pagamento pela imagem, se todos que aparecem em cena
autorizarem. Assim, ela se protege de ter que pagar essas pessoas.
Marcos Paulo Simião interpreta
Cartola menino
Com a mobilização de tantos recursos e esforço para ter acesso a todos
esses arquivos — o filme tem 37 trechos de outros filmes e reportagens
e 33 músicas —, “Cartola” termina sendo uma homenagem à memória
brasileira e um exemplo da dificuldade de se ter acesso a ela. Se a
dificuldade de acesso está implícita no custo dos arquivos e na
complicação para liberá-los, a homenagem fica por conta da narrativa
“costurada” em cima desses trechos: ela multiplica os sentidos, tanto
das músicas quanto das imagens de grandes filmes brasileiros, como “Rio
Zona Norte”, de Nelson Pereira dos Santos, ou “Nelson Cavaquinho”, de
Leon Hirszman — para ficar em dois deles.
Aqui fala Hilton: “Nosso principal interesse era tirar essas músicas de
seu lugar-comum. Em alguns momentos, como Cartola cantando o samba ‘Nós
Dois’, para Dona Zica, elas funcionam em seu significado direto. Mas
‘Divina Dama’ na abertura do filme não está sugerindo uma leitura
cronológica. ‘Divina Dama’ nem foi a primeira música de Cartola, embora
tenha sido o primeiro sucesso. Ali, nós a relacionamos com a morte do
sambista — “Tudo acabado, o baile encerrado…”, como diz a letra. Nas
imagens do golpe de 64, a música é ‘Acontece’ — “… se eu ainda
pudesse dizer que te amo, ah, se eu pudesse! Mas não quero, não devo
fazê-lo, isso não acontece” — e sugere um divórcio. É uma tentativa de
apresentar uma nova forma de observar as músicas”.
Ele nasceu em 1908 e morreu em 1980, e é um dos maiores sambistas de
todos os tempos. Fundou a escola de samba Estação Primeira de
Mangueira, fez seu primeiro samba-enredo (“Chega de Demanda”) e
escolheu seu nome e suas cores, o verde e o rosa. Cartola compôs,
sozinho ou com parceiros, mais de 500 canções, como “As Rosas Não
Falam”, “Alvorada”, “O Mundo é um Moinho” e “O Sol Nascerá”, que foi,
de acordo com a Wikipedia, regravada mais de 600 vezes. Muito gravado
pelos cantores da década de 30, esteve longo tempo fora do circuito, e
somente no final década de 50 foi reencontrado pelo cronista Sérgio
Porto, trabalhando como lavador de carros. Ele e a esposa Zica
fundaram, na década de 60, o bar Zicartola, no centro do Rio de
Janeiro, pólo irradiador do samba e onde surgiram vários talentos.
Gravou seu primeiro disco somente aos 65 anos.
www.culturalivre.org.br/../content&task=view&id=78&Itemid=40 — Sobre “Cafuné” e link para assistir o filme.
(*) Trabalhou como assistente de finalização do filme “Cartola, Música para os Olhos”.