Antena Coletiva – A vida real passa na TV Morrinho

Uma maquete dos morros do Rio, criada por dois jovens da comunidade Pereira da Silva, retrata o cotidiano de favelas cariocas e dá origem a uma produtora de vídeo profissional.


Uma maquete dos morros do Rio, criada
por dois jovens da comunidade Pereira da Silva, retrata o cotidiano de
favelas cariocas e dá origem a uma produtora de vídeo profissional.
Verônica Couto

No morro do Pereirão, bairro das
Laranjeiras, no Rio de Janeiro, uma gigantesca maquete construída com
tijolos reproduz a arquitetura e o cotidiano de favelas da cidade,
cenário para uma brincadeira que já dura oito anos. Foi reconhecida
como obra de arte, exposta em museus brasileiros e no exterior, e deu
origem, em setembro de 2001, ao projeto TV Morrinho. O trabalho
envolveu a formação de um grupo de oito jovens produtores de vídeo, que
agora se preparam para levar o conhecimento a outros 12 meninos, e
ganhou o apoio, este ano, da Caixa Econômica Federal (CEF), da Gênesis
— incubadeira da PUC-RJ — e da Shell do Brasil.


A maquete monumental:
escadarias, grafites, igrejas…

Os jovens da comunidade Pereira da Silva levam a sério o jogo do
Morrinho, como é chamada a maquete – com personagens fixos, feitos de
peças de lego, que podem morrer, ou ter filhos, ou conquistar novos
territórios. Cada menino controla parte do morro (ou um pedaço da
maquete) e usa seus personagens para defendê-la e lhe dar vida.
“Representam com realismo incrível a vida das comunidades do Rio. Tem
baile funk, igreja, guerra de tráfico, polícia, mototáxi, tudo. Só não
tem super-herói. Um dos bonecos já é filho de outro personagem, criado
lá no início”, conta Fábio Gavião, produtor de vídeo e um dos
responsáveis, junto com Francisco Franca, pela capacitação dos meninos
dessa comunidade na criação, edição e montagem de vídeos. Jovens que
pilotam, atualmente, a produtora TV Morrinho.

Há três anos, Gavião foi ao Pereirão fazer um documentário sobre a
maquete. Os meninos, contudo, estavam tão envolvidos na brincadeira,
que dificultavam as gravações. “A brincadeira é em tempo real. Como num
forte apache, boneco atingido morre mesmo. E eles não me deixavam
gravar direito, porque, afinal, eu atrapalhava a ação dos personagens”,
lembra o produtor. Por isso, ele resolveu passar a câmera para os donos
do morro, ou do jogo, dando dicas para a gravação. “Foi fantástico.
Teve até boneco que dizia não poder gravar entrevista, porque era
bandido”.

Favela em Barcelona

Nessa época, o Morrinho já era um fenômeno, com 120 metros quadrados,
construído a partir de tijolos pintados e quebrados (para formar portas
e janelas), com outros materiais reciclados. Atualmente, ocupa 300
metros quadrados, retratando 15 favelas, principalmente do complexo de
Santa Tereza (Turano, Fogueteiro, Pereira, etc.), com cem personagens,
e até 20 meninos na brincadeira. “Já há uma nova geração se preparando
para entrar no jogo”, diz o produtor. A partir do momento em que
começaram as gravações, feitas junto com os próprios meninos, o Museu
da Casa França-Brasil contratou um vídeo sobre o Pelé, e a organização
não-governamental Alto Rio Carioca, um documentário sobre meio
ambiente. E a iniciativa foi se transformando em uma ação social.

Gavião levou artistas para verem a instalação – os músicos DJ Marlboro,
Fernanda Abreu, Gabriel Pensador, o crítico de arte Sérgio Paulo
Duarte, entre outros. E a repercussão no meio cultural gerou um convite
para o grupo participar da Mira-1ª Mostra
Se capotar, morre mesmo.
Internacional Rio de
Arquitetura, no Rio, em 2003, com uma exposição no Parque das Ruínas,
em Santa Tereza. Em 2004, os meninos integraram o evento Habitat, da
Organização das Nações Unidas (ONU), em Barcelona, na Espanha. Na
verdade, a maquete não sai da comunidade. Os seus autores refazem
partes dela ou releituras da cidade com os mesmos materiais. Em
Barcelona, por exemplo, construíram o complexo do Alemão.

A arte as maquetes vai integrada ao processo de profissionalização no
vídeo. Os oitos jovens que há três anos trabalham com a equipe de
Gavião agora vão participar do programa Iniciativa Jovem, da Shell. A
empresa apóia empreendedores, com assessoria gratuita, na montagem de
planos de negócios sustentáveis. A TV Morrinho já produziu, por
exemplo, um videoclipe para a cantora e compositora Adriana Calcanhoto,
material para organizações sociais, museus e instituições, tem prontos
vários episódios de novelas que se passam dentro da maquete, um
documentário sobre surfe, e fechou, no início de julho, seu primeiro
contrato remunerado a preço de mercado, com a BG, para a Comgás, de São
Paulo.

A TV Morrinho contou com o apoio, em alguns casos, das produtoras
CaradeCão e TV Zero. E de profissionais qualificados que reconheceram o
talento do grupo. O documentário de Gavião, aquele que ele começou a
fazer em 2001, ainda não está pronto. Para continuar gravando, ele
entrou na brincadeira – “comprou” um terreno na maquete, onde instalou
sua produtora, também na dimensão imaginária. Já tem, assim, 180 horas
de material gravado. De verdade.

Não vale voar

Nelcirlan Souza de Oliveira tinha 14 anos quando levantou o primeiro
barraco do Morrinho, em 1997, junto com o irmão Maycom, de oito. De lá
para cá, a ocupação, como na maioria das favelas, foi rápida – há
botequins, escadarias, polícia, vielas estreitas. “Fiquei
dois anos sem estudar, e ficava brincando no terreiro com meu irmão.
Foi quando começamos a construir a maquete”, diz Nelcirlan, que
“controla” as comunidades do Fogueteiro, Querosene, Caju e o complexo
do Alemão. A brincadeira é para valer, cheia de regras, como nos jogos
de RPG (Role Playing Game). Quem não aparece uma semana, perde seu
território. “Não pode voar, nem dar um pulo maior do que seria possível
para uma pessoa normal, como também não pode correr mais do que um
carro”, explica. Se um carrinho capotar de forma muito violenta, o
boneco de lego morre e sai do jogo. “Um dos personagens, por exemplo,
aparece em um dos vídeos, mas já morreu. Outro está preso”, diz
Nelcirlan. Nessa história não tem outra chance. O Morrinho é um lugar
da vida real.

tvmorrinho@uol.com.br ou Fábio Gavião, pelo tel: 21 9616-7608.