Michael Geist, uma das vozes mundiais mais críticas ao tratado, vê com bons olhos o novo relator do Acta no Parlamento Europeu. Mas afirma que vem aí um tratado de livre-comércio ainda mais preocupante.
Geraldine Juárez
do portal ALT1040
09/03/2012 – Na semana passada, o Parlamento Europeu realizou uma série de eventos oficiais e audiências legislativas relacionadas com o Acta em sua sede, em Bruxelas (Bélgica). Por um lado, a Comissão Europeia defende com capa e espada o tratado que negociou. Por outro, o Parlamento Europeu recém-inicia o processo oficial de avaliação do documento e se prepara para formular as recomendações que definirão o voto contrário ou favorável a sua adoção no continente. Tudo isso em meio a dúvidas e preocupações dos próprios parlamentares e ao rechaço oficial de países como a Polônia, juntamente com os múltiplos protestos cidadãos nas ruas, que demandam seu rechaço.
A situação se complica devido à manobra da Comissão Europeia para enviar o Acta à Corte Europeia de Justiça e obter uma opinião sobre sua compatibilidade com os direitos fundamentais que os tratados da União Europeia protegem, mesmo que o responsável pelas negociações, Karel De Gucht, esteja completamente convencido de sua legalidade.
A Corte de Justiça só poderá dar uma opinião sobre os tratados regidos pelas leis da União Europeia, não sobre suas diretivas ou regulações – o que significa que os maiores problemas do Acta, como o fomento implícito de violações aos direitos humanos ou o impacto da opacidade e do secretismo das negociações para as estruturas democráticas, ficarão de fora dessa avaliação.
O Acta é um assunto de dimensões políticas, não apenas legais ou administrativas. Como muitos integrantes do Parlamento Europeu (especialmente do Grupo Verde) indicam, a decisão da Corte não determinará o voto da casa, uma vez que a pergunta da Comissão pode ser tão simplista e reduzida que provavelmente poderia resultar em uma resposta positiva da Corte. Por essa razão, o Parlamento também enviará à Corte o Acta, para, assim, poder obter de forma independente em relação à Comissão uma opinião legal por parte do tribunal máximo de Justiça.
Em 1° de março, a Comissão Parlamentar de Comércio Internacional (Inta) organizou a Oficina do Acta. Inta é a comissão responsável por formular a recomendação final sobre a posição do Parlamento Europeu, ainda que outras comissões, como as de Indústria e Liberdades Civis, também apresentarão as suas. O processo de avaliação na Corte atrasará a votação final do Acta de um a dois anos.
O recinto estava lotado de assistentes de grupos como La Quadrature, European Digital Rights, Foundation for Free Information Infrastructure, Telecomix e representantes de lobbies pró-Acta, além de curiosos, jornalistas, blogueiros e parlamentares.
O painel foi presidido por Vital Moreira, o presidente da Comissão Inta e que claramente apoia o Acta. O comissionado Karel De Gucht começou com um discurso idêntico ao que apresentou nos debates parlamentares dias antes e que foi publicado em fragmentos em diversos meios europeus.
Karel De Gucht, que no início dos protestos contra o Acta, em janeiro, pediu que não fossem levados em conta, claramente entendeu que não é possível ignorá-los. Assim, em seu discurso, ele deu as boas-vindas ao saudável e amplo debate no qual as pessoas haviam se envolvido, sem deixar de passar a oportunidade de tratar de desqualificá-las por meio de sua já gasta ladainha da “desinformação”. O discurso de De Gucht pretendia assegurar aos presentes que não tem nada de errado com o Acta, utilizando a conhecida retórica dos lobbies pró-copyright:
“Penso que é provavelmente justo dizer que todos os que estamos nesta sala conhecemos alguém que, sem pagar por isso, já baixou em seu computador um álbum ou um episódio de séries de televisão. Não posso, conscientemente, perdoar essa ação. Sei que existem pessoas que veem isso de uma forma diferente, particularmente os jovens. Mas, para mim, não há diferença moral entre tomar algo que não é seu no mundo físico e fazê-lo no mundo virtual. O intercâmbio de arquivos ilegal significa dinheiro que as pessoas mais criativas de nossa sociedade não receberam. É um desincentivo para seu trabalho. Talvez alguns de vocês estejam preocupados porque as pessoas que vocês conhecem estarão sujeitas a multas e à prisão como resultado do Acta. Mas a lei hoje em dia é muito específica quanto a isso. Por que até roubar uma maçã é um crime que pode ser reportado à polícia, mas compartilhar uma canção sem pagar por isso, que, estritamente, é ilegal, não é uma ofensa criminosa?”
Essa é uma de outras pérolas de De Gucht que permitiram que eu, como outros, comprovasse uma vez mais que o mais preocupante é que pessoas com uma visão tão caduca e reducionista sejam as encarregadas de tomar decisões de grande impacto como o Acta.
De Gucht parece não entender que o problema do Acta não são os downloads, mas sim a natureza antidemocrática do tratado e o favorecimento à indústria do copyright à custa da maioria e sem evidência que sustente que pôr no mesmo tratado infrações ao copyright e falsificação de marcas seja justo ou sequer necessário. Isso sem contar as fortes declarações oficiais contra o Acta e em relação ao acesso a medicamentos que a Índia expressou, na Organização Mundial do Comércio, na semana passada.
No entanto, é impossível pedir maçãs ao olmo.
Felizmente, depois de sua intervenção, o professor Michael Geist tomou a palavra e, assim, a desinformação do comissionado foi contra-atacada com argumentos e não com simples propaganda maximalista de propriedade intelectual.
Michael Geist, que vem sendo uma das vozes mais críticas ao Acta e vem informando a sociedade civil desde o início das negociações, não perdeu a oportunidade de explicar mais uma vez, e de forma contundente, porque o Acta teria que ser rechaçado. O Parlamento Europeu apresentará em breve um relatório preparado por Geist, que resumiu seu conteúdo na fala:
“O relatório conclui que os danos do Acta excedem seus potenciais benefícios. Devido ao corrosivo efeito na transparência das negociações internacionais do Acta, o dano às instituições internacionais de propriedade intelectual, a exclusão da maioria dos países em desenvolvimento do âmbito do acordo, suas potencialmente perigosas medidas substanciais e os benefícios incertos para se contra-atacar a falsificação são razões amplas para que o público e os políticos rechacem o acordo em sua forma atual. Ao fazê-lo, os governos devem ajudar a restaurar a confiança no sistema global de propriedade intelectual e abrir a porta a uma nova rodada de negociações com a premissa de transparência, inclusão e criação de políticas públicas baseadas em evidências.”
Michael Geist recebeu fortes aplausos depois de sua apresentação. O deputado europeu Vital Moreira os condenou, disse que as pessoas “não estão aqui para fazer manifestações” e ameaçou tirar do auditório quem voltasse a fazê-lo. A partir desse momento, os aplausos se converteram em uma forma de resistência, que se repetiu em várias ocasiões, quando o Acta era destruído por especialistas, cidadãos e deputados europeus, que, além disso, pediram a Moreira que reconsiderasse sua absurda política de não aplausos.
De Gutch respondeu a Michael Geist com sua característica arrogância: “O professor Michael Geist está dizendo que o Acta é muito perigoso e vai mudar o mundo. […] o que ele disse, no fim das contas, não significa nada”.
O professor Cristopher Geiger também fez uma apresentação sobre as implicações das disposições penais do Acta que, em sua opinião, não justificam o fim. Pedro Martins Velasco, oficial da Comissão Europeia, e Oliver Vrinis – que confirmou, ao ser questionado, que era membro de um grupo de lobby pró-Acta – defenderam o Acta no que diz respeito a sua proteção dos direitos humanos e explicaram as salvaguardas, que, em sua opinião, o tratado oferece.
Ao final da oficina, Vital Moreira agradeceu e pareceu esperar um aplauso, que ninguém deu. Em seguida, Michael Geist deu uma pequena entrevista para ALT1040:
ALT1040 – Qual é sua opinião sobre a oficina celebrada hoje?
Michael Geist: O que vemos na Europa é muito impressionante. Estamos impressionados com a reação durante o último mês, com os protestos nas ruas. Acho que está acontecendo uma reversão dentro da Comissão e do Parlamento, que estão reconhecendo as preocupações do público, o que creio ser algo positivo. Hoje demos um bom passo para se ter um bom debate. Como mencionei no painel, a raiva é muito palpável. Acho que devemos superar esse ponto e entender o que acontece. Hoje estive no refeitório com alguns integrantes da Comissão e, para ser honesto, algumas coisas que eles disseram me pareceram ridículas. Ao mesmo tempo, continuam sem levar em conta os protestos e o que está realmente acontecendo.
ALT1040 – Qual é, então, o passo seguinte?
Michael Geist: Seria bom baixar um pouco a temperatura, mas isso vai exigir mais reuniões desse tipo e uma genuína boa vontade da Comissão e do Parlamento para incorporar essa retroalimentação e reconhecer que não se trata apenas de pessoas desinformadas, mas também de genuínas preocupações. O mais positivo que escutei hoje veio do novo relator do Acta no Parlamento Europeu, David Martin, que parece ter uma mente aberta para abordar essa situação. Ele esteve de acordo com algumas das coisas que eu disse e em desacordo com outras. O que é bom. Acho que não podemos pedir mais do que termos um relator que tem em sua perspectiva o exame profundo do Acta e que, além disso, tem suas próprias preocupações. Acho que ele não está interessado em provocar um curto-circuito no debate, e isso é algo muito bom.
ALT1040 – Você acha que é possível deter totalmente o Acta? Poderemos começar do zero e confiar que nossos governos tomem decisões justas no que se refere à propriedade intelectual?
Michael Geist: Francamente, vejo muitas pessoas contrárias ao Acta expressando um ponto de vista que se imaginava não existir mais. Obviamente, o fato de haver muitas pessoas nas ruas protestando significa que o Acta está muito desgastado. Ao mesmo tempo, está muito claro que a Comissão Europeia vai brigar por isso até o final e sua credibilidade também está desgastada. Acho que é muito prematuro declarar vitória mas, no mínimo, espero que estejamos enviando um sinal muito claro sobre a forma como esse tipo de acordo é negociado e sobre os problemas associados a esse acordo específico.
ALT1040 – O que vai acontecer agora com o TPPA (Acordo de Parceria Transpacífico, tratado de livre-comércio que vem sendo negociado entre EUA, Nova Zelândia, Austrália, Brunei, Chile, Malásia, Peru, Cingapura e Vietnã e cujo capítulo sobre direitos autorais é considerado por ativistas pior que o Acta)?
Michael Geist: Estou muito preocupado. Obviamente algumas pessoas já foram além do Acta. É inacreditável que, com todo o dano causado pelo fato de se fazer isso em segredo, vejamos de novo que tudo se repete no contexto do TPPA. Houve um vazamento do capítulo de propriedade intelectual que mostra como estão começando do zero. Tudo o que queriam no Acta querem agora no TPPA, o que significa que temos muitas batalhas a travar pela frente. (Tradução: Igor Ojeda)
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