COM TECNOLOGIAS ABERTAS, professores podem pesquisar e recriar conteúdos para serem avaliados pelos estudantes, que também devem ser pesquisadores do que estudam. Sérgio Amadeu da Silveira
ARede nº58 maio/2010 – Paulo Freire escreveu que ensinar exige pesquisa. No livro Pedagogia da Autonomia, afirmou: “Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”. Todavia, estamos assistindo, nos últimos anos, um lamentável avanço dos sistemas privados de ensino que buscam transformar a Educação em algo semelhante a uma fábrica de salsichas.
Livros didáticos e “power points motivacionais” são vendidos com a finalidade alegada de “facilitar” a “vida do professor” e “elevar a qualidade de ensino”. Será que cumprem essa missão? Tudo indica que não. São textos úteis para sustentar um processo em que o professor não tem tempo para pesquisar e refletir sobre qual o melhor modo de envolver os seus alunos e construir processos de aprendizagem. Na realidade, os professores estão sendo cada vez mais afastados do processo de busca do conhecimento. Contraditoriamente, isso ocorre em um cenário de expansão das redes informacionais. Nunca foi tão viável estruturar pesquisas e organizar processos de compreensão da realidade.
Em um caminho oposto, para utilizar todo o potencial informacional, interativo e colaborativo das redes é que surgiu um movimento que defende a produção de recursos educaionais abertos, também conhecido por REA. Nos dias 14 e 15 de setembro de 2007, o Open Society Institute (OSI) e a Fundação Shuttleworth (do criador do Ubuntu) convocaram os defensores da Educação aberta para uma reunião na Cidade do Cabo, na África do Sul. Desse encontro, surgiu a “Declaração de Cidade do Cabo para Educação Aberta” (www.capetowndeclaration.org/translations/portuguese-translation).
A Declaração da Cidade do Cabo define como recursos educacionais abertos materiais de cursos, planos de aula, livros, jogos, software e outros instrumentos de apoio ao ensino e à aprendizagem. Sendo abertos, tais recursos podem ser usados, revistos, traduzidos, melhorados e compartilhados com todos que tenham interesse. Isso reforça a pesquisa e as possibilidades dos professores desenvolverem seu próprio material. Depois, eles podem deixar esses materiais disponíveis na rede para que outros educadores possam recombiná-los e utilizá-los, alimentando o ciclo. Para isso, os recursos educacionais abertos devem estar em Creative Commons ou em licenças de uso que permitam às pessoas copiá-los, alterá-los e reutilizá-los.
No Livro Verde dos recursos educaionais abertos, Carolina Rossini, pesquisadora da Universidade de Havard (Estados Unidos), escreveu que existem três pilares relativos à intersecção das tecnlogias da informação e comunicação com a política educacional para a obtenção do melhor nível de retorno dos investimentos públicos. O primeiro é que “os materiais educacionais de financiamento público, tanto os de ensino como os resultantes de pesquisa, devem ser considerados bens públicos e disponibilizados sob as definições internacionais dos REA”. O segundo trata de garantir a transparência das informações: “dados, estatísticas e avaliações com relação ao êxito da política de REA devem estar facilmente disponíveis a todos”. O terceiro diz respeito ao envolvimento e à colaboração dos educadores, que devem ser incentivados a, junto com as comunidades, se engajar na elaboração e recombinação de conteúdos “a fim de aproveitar ao máximo a combinação de tecnologia e conteúdo aberto”.
No Brasil, já existem diversas iniciativas de disseminação dos recursos educacionais abertos. Existe o Blog da Comunidade REA-Br – http://rea.net.br –, onde é possível encontrar uma série de informações sobre eventos, encontros e recursos disponíveis para os educadores. No blog, também podemos saber mais sobre o conceito de conteúdos abertos e como participar da comunidade REA Brasil.
No site da Esfera, uma postagem da pesquisadora Bianca Santana, chamada “O conhecimento da sala de aula acessível a todas as pessoas” (http://blog.esfera.mobi/provoca-recursos-educacionais-abertos-bianca-santana), esclarece que “quando imprimir textos e imagens em papel ou gravar vídeos em fitas ou DVDs eram as únicas possibilidades de distribuir material didático, dificilmente era possível considerar os usos feitos do material. Claro que um professor poderia enviar uma carta para a editora argumentando que determinado material não era adequado ao uso que ele fez em sala de aula. Por mais que a cultura da colaboração não fosse tão destacada, determinado professor poderia investir em colaborar. Mas as chances do produto gerado por este professor alterar o material que seria distribuído eram muito pequenas”.
Sem dúvida alguma, a pesquisadora tem razão ao afirmar que a emergência da internet e a digitalização crescente da nossa produção simbólica altera profundamente esse cenário. Com nossas produções intelectuais podendo “ser transformadas em 0 e 1 e distribuídas em rede a custo direto praticamente nulo, produtos próprios dos chamados consumidores podem ter lugar”. Professores podem pesquisar e tentar recriar os melhores conteúdos para serem avaliados pelos estudantes que também devem ser pesquisadores do que estudam.
É muito difícil aprender algo quando não temos o menor interesse ou quando não aceitamos que aquilo seja importante. Por isso, boa parte do processo de ensino-aprendizagem passa pela sensibilização e pelo envolvimento dos estudantes com aquilo que precisam aprender. Construir processos de pesquisa em rede exige que as fontes de informação continuem abertas. A base da criação e do conhecimento é a liberdade de acesso as informações. Nunca Paulo Freire foi tão atual.
Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo, considerado um dos maiores defensores e divulgadores do software livre e da inclusão digital no Brasil. Foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação.