No Fórum de Governança da Internet,
o governo brasileiro criticou o controle norte-americano na Icann e
defendeu um papel mais propositivo para o evento, promovido pela
Organização das Nações Unidas.
Verônica Couto
As críticas ao controle dos EUA na administração da internet foram
constantes no Internet Governance Forum-IGF Brazil 2007, evento
promovido pela ONU, no Rio de Janeiro, em novembro. O discurso do
ministro Extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira
Unger, surpreendeu a platéia com ataques diretos à internet Corporation
for Assigned Numbers and Names (Icann), atual responsável pela
distribuição de domínios e números IP na rede. “A sociedade civil deve
ter mais representatividade nas decisões”, afirmou. Para o ministro, a
Icann deve ceder o poder de forma pacífica para uma organização mais
“includente”, da qual participariam todos os governos, a indústria e a
sociedade civil. No evento, Unger e os ministros Gilberto Gil, da
Cultura, e Sérgio Rezende, da Ciência e Tecnologia, todos com críticas
públicas à Icann, assinaram convênio para formar um grupo de estudos
dedicado, entre outros temas, à criação de uma estrutura institucional
de governança. “O nosso objetivo é substituir o arbítrio do dono
individual pela construção coletiva”, insistiu Unger.
Atualmente, a Icann, uma ONG da Califórnia, tem contrato com o
Departamento de Comércio norte-americano e está submetida ao poder de
veto daquele país. Na oposição à entidade, o governo brasileiro tem ao
seu lado, por razões diferentes, Rússia e China. E tem costurado apoio
junto a nações da África e da América Latina, que, por sua vez,
precisam somar forças para combater os altos preços das conexões
internacionais. A Índia evita o debate, porque os EUA são importante
comprador de sua tecnologia de software.
IGF para quê?
No front pela autonomia, o Brasil quer mudanças no próprio
IGF. Vários participantes acusaram o fórum de desequilíbrio, com
predomínio de painelistas alinhados com a Icann. E esse desequilíbrio
joga um papel importante na disputa sobre quais devem ser as
atribuições do IGF, outro tema que opõe países pobres e ricos. De
acordo com o chefe da Divisão de Ciência e Tecnologia do Ministério das
Relações Exteriores, Everton Lucero, o governo brasileiro entende que o
“Mandato de Túnis” (quando a ONU decidiu criar o fórum, na Cúpula
Mundial da Sociedade da Informação, em 2005) diz textualmente que “o
IGF deve identificar questões emergentes e, onde for apropriado, fazer
recomendações; esse mandato é inegociável e não pode ser interrompido”.
Não é a opinião dos organizadores deste ano, para quem “o fórum não tem
papel deliberativo” — advertência repetida ao final de todos os debates.
Estão previstos cinco fóruns (o primeiro, de 2006, foi em Atenas; e o
próximo, de 2008, será em Nova Déli). “Até a quinta edição, devemos, no
mínimo, ter uma estrutura para fazer recomendações”, diz Everton. A
programação do IGF é de responsabilidade do próprio secretário geral da
ONU, que convoca um comitê para assessorá-lo (o Meeting Advisor Group,
ou MAG). O que querem o governo brasileiro e dos outros países é mudar
a forma de composição desse comitê. “Defendemos critérios transparentes
para formação do MAG e uma representatividade equilibrada no processo
preparatório, com a participação da sociedade civil, da academia, de
empresas, governos. Até vemos os setores representados, mas não há
muita diversidade de opinião”, explica Everton.
Segundo ele, as reuniões abertas, marcadas para o início do ano que
vem, em Genebra, para colher sugestões para o próximo MAG — do IGF de
Nova Déli — serão o espaço para pressionar nessa direção. Não é certo
se o fórum poderá servir de embrião para uma instância de governança
alternativa, vinculada à ONU. Há dificuldades, como a falta de
mecanismos para agregar iniciativa privada num órgão essencialmente
governamental, mas o modelo parece inspirador. No evento, apresentou-se
a experiência do IGF Reino Unido, criado como organização jurídica para
encaminhar questões relativas à internet, integrando sociedade civil,
empresas e governo. Também a Rits, pelo Brasil, e outras ONGs do
Uruguai, Chile, Argentina, Equador, reuniram-se durante o IGF do Rio
para discutir um IGF América Latina, que teria o propósito de definir
consensos e estratégias comuns.
Os avanços
Existem diferentes propostas para a governança da internet. Há quem
acredite numa mudança de gestão na Icann, aproveitando uma consulta
pública sobre suas atividades, que será aberta em março de 2008 para
subsidiar a renovação (ou não) do contrato com os EUA, em setembro de
2009. Outro caminho seria criar uma entidade multilateral e
independente, nos moldes da Cruz Vermelha. E há quem aposte na própria
ONU (via IGF ou não) para a governança da internet, como chegou a
sugerir o ministro Gilberto Gil.
Afora a disputa pelo fim do controle norte-americano, de poucos
resultados, o Fórum registrou avanços. Houve plenária específica sobre
recursos críticos (infra-estrutura, interconexão, servidores, nomes e
números), assunto proibido no IGF do ano passado; sobre acesso (com
ênfase na exclusão digital de nações pobres); segurança (combate à
pornografia infantil e pedofilia); diversidade cultural; e alguns
debates sobre privacidade e uso de padrões abertos. Executivos do
Google e da Microsoft foram questionados: o primeiro, quanto à
privacidade dos dados dos usuários e à falta de transparência na
hierarquização dos resultados da busca; e o segundo, por a empresa
resistir a abrir especificações de seus programas em prol da
interoperabilidade plena na rede (veja a página 49).
Ao contrário da edição anterior, em que só podiam falar representantes
de governos, este ano, o microfone foi entregue também à sociedade
civil e às empresas. O IGF Brazil 2007 reuniu cerca de 1,3 mil
participantes, de 109 países.
Enquanto a governança autônoma da internet não se concretiza, a maior
influência na administração da rede parece estar sendo exercida, de
fato, pelas empresas que fazem o comércio do registro dos nomes de
domínio. E com efeitos que vão afetar a todos os internautas. Do
orçamento total da Icann, no exercício 2006/2007 — da ordem dos US$ 20
milhões —, cerca de US$ 500 mil são doações de governos (o Brasil entra
com US$ 40 mil), e o restante, pago pelas chamadas “registrar”
(empresas que pagam à Icann para comercializar alguns domínios) e
“registry” (as revendas que os oferecem ao varejo): VeriSign, Afilias,
NeuStar, NeuLevel, Yahoo, etc. No exercício 2007/2008, o orçamento deve
chegar a US$ 46,7 milhões, sendo US$ 1 milhão de doações e o restante
de receitas provenientes dos processos de registro.
Essas empresas “registradoras” são as maiores interessadas na criação
de domínios genéricos, um dos temas do debate sobre recursos críticos
da internet durante o IGF 2007. Se aprovada na Icann, qualquer um
poderá propor à entidade um domínio: torcedores poderiam criar páginas
.fla ou .flu, ativistas feministas, .feminismo, militantes islâmicos,
.jihad, e assim por diante. O resultado é o crescimento do mercado para
as registradoras. No Brasil, o registro do .br é feito pelo Nic.br,
entidade ligada ao Comitê Gestor da Internet, que cobra R$ 30,00 ao ano
por domínio.
Integrante do CGI.br, o professor Demi Getschko é contrário aos
domínios genéricos, porque “dificultariam tremendamente a administração
da rede”. Além disso, a proliferação de endereços pressionaria os
recursos da internet, que opera sobre um protocolo (IPv.4), que deve
migrar para nova versão (o IPv.6), com maior capacidade. “Essa migração
não seria necessária; e significará troca de equipamentos, a custo alto
para os países pobres”, critica Demi. Os genéricos aumentariam, diz
ele, a concorrência com os sites
.br e o acesso aos conteúdos hospedados fora do país. Ou seja, maior
tráfego internacional, e acesso local banda larga mais caro.
O novo presidente da Icann, Peter Dengate Thrush, informou que os
genéricos devem ser analisados até meados de 2008, podendo atrasar. E
admite que a entidade passará a adotar, nesse caso, novos
procedimentos. Além do julgamento formal dos domínios, serão feitas
considerações “sensíveis”. Isso significa, explica a advogada Marília
Maciel, mestranda em Democracia na Internet, levar em conta aspectos
subjetivos. Por exemplo, se o domínio é ofensivo.
Segundo especialistas, o novo procedimento pode frustrar movimentos
anarquistas e libertários que, nessa questão, alinharam-se ao lado das
registradoras, por acreditarem que os genéricos trarão maior
diversidade à rede. Até o momento, a aprovação dos genéricos não teria
acontecido porque grandes multinacionais ainda temem páginas falsas e
pirataria de marcas. Mas essa oposição pode estar arrefecendo com a
percepção, por parte delas, de que poderão usar domínios próprios. Por
hipótese, www.algumacoisa.IBM, ou algumacoisa.Microsoft. Se isso acontecer, poderíamos ver a migração para fora do Brasil de muitos sites que, hoje, estão hospedados localmente.