A internet livre foi tema de discussões no evento, que recebeu Al Gore, Berners-Lee e mais de 6 mil campuseiros.
Patrícia Cornils
ARede nº66 – janeiro/fevereiro de 2011
Santa Banda Larga, padroeira das conexões e downloads, foi a divindade mais evocada pelos campuseiros na Campus Party Brasil 2011. Ao lado de São Logado e São Uploudo, ela é um dos santos de devoção criados pela agência Mercado Jovem para lançar sua nova marca durante o evento. Pois foi à Santa Banda Larga que os campuseiros recorreram quando a energia – e, portanto, o acesso à internet em banda larga – faltou pela segunda vez no evento, na tarde do dia 18 de janeiro, por cerca de uma hora. Recorreram também a uma pergunta óbvia: cadê os geradores? Em procissão que levava a santa, em torno do OVNI – como foi apelidado o aquário onde estavam os servidores da Telefônica, único ponto de luz aceso no Centro de Exposições Imigrantes naquele momento – os campuseiros mostravam frases de protesto nas telas dos seus notebooks e tablets. A organização instalou geradores, mas as quedas na energia e da banda larga continuaram nos dias seguintes.
As filas enormes para entrar e sair do evento, nas quais pessoas gastaram até oito horas para receber sua credencial, ou serem liberadas, depois da revista de suas mochilas, foram uma constante na Campus Party deste ano. Problemas de infraestrutura como esses levaram os organizadores a lançar a ideia de, em 2012, dividir o evento entre Rio de Janeiro e São Paulo e, reduzindo a concentração de pessoas, reduzir também a possibilidade de queda de energia por picos de utilização. Afinal, foram 6,8 mil campuseiros, fora os visitantes da área aberta de exposições, a imprensa, os convidados. “É incrível! São seis mil pessoas superinteligentes que vêm aqui para ser inteligentes juntas”, disse o jornalista Bem Hammersley, editor da revista Wired, da Inglaterra e responsável pela primeira Campus Party que será realizada nos Estados Unidos, em 2012. Essa é a força do evento, a possibilidade de compartilhar experiências. E foi isso que aconteceu em São Paulo, na Campus Party 2011, entre os dias 17 e 22 de janeiro.
A liberdade na internet foi um dos temas recorrentes nos debates realizados nesses dias. Apareceu no debate com Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, e Tim Berners-Lee, diretor do World Wide Web Consortium (W3C) e inventor da World Wide Web. Em termos genéricos, a liberdade na internet é consenso entre os internautas presentes à Campus Party. Mas a discussão tem muitos aspectos. Para Al Gore, a principal ameaça à liberdade na internet são os governos autoritários que, ao redor do mundo, tentam controlar o fluxo de informações na rede. Ele não citou nomes de países, mas deixou claro que as ameaças estão fora dos Estados Unidos. “Informação é poder”, lembrou Gore. “E a internet [com seu poder de fazer circular a informação] nos dá o potencial de avançar para um patamar mais alto em termos de participação em governos, na democracia representativa, em mercados livres que funcionem para pequenas e médias empresas, não apenas para grandes corporações”, raciocinou. “É muito importante, para o futuro da humanidade, que haja resistência [às tentativas de governos controlarem a internet]”, acrescentou o ativista ambiental.
“Mas não são apenas países que ameaçam a liberdade na internet”, ponderou Tim Berners-Lee. E citou três exemplos, para ilustrar seu ponto de vista. Primeiro, um projeto de lei em tramitação no Congresso estadunidense, batizado de Combating Online Infringement and Counterfeits Act, que dará poder à Casa Branca o direito de mandar bloquear qualquer site ou domínio que hospede conteúdo violando direitos autorais. Segundo, o predomínio de grandes empresas na rede, como o Facebook, de forma que a possibilidade de inovar fique restrita ao corpo de desenvolvedores e aos interesses dessas empresas. Terceiro, a possibilidade de empresas instalarem equipamentos para investigar o que há dentro de cada pacote que trafega na rede. A tecnologia se chama deep packet inspection (investigação profunda de pacotes). “Pode-se ver de que endereço vieram os pacotes, o que as pessoas estão lendo ali, em que tipo de sexo têm interesse, que doenças pesquisam, ou seja, fazer perfis acurados das pessoas”, revelou Berners-Lee. Quando uma empresa tem toda essa informação nas mãos, diz ele, é muito difícil não ceder à tentação de vendê-la, por exemplo para empresas de seguros. A investigação de pacotes é uma das propostas de grandes corporações de entretenimento (estúdios, gravadoras) para impedir o compartilhamento de produtos (música, filmes, seriados).
A possibilidade de compartilhar conhecimento na internet e suas implicações ainda não são totalmente conhecidas, mesmo por políticos e governantes que atuam em defesa da democratização do acesso à rede. “O que é remix?”, perguntou o ministro Paulo Bernardo, ao receber de campuseiros uma camiseta onde se lia “Remix não é crime!”. A possibilidade de recombinar informações e criar novas músicas, matérias, novos filmes é uma marca da sociedade conectada em rede, e estava em evidência naquele mesmo dia, em que o Ministério da Cultura decidiu retirar de seu site a licença Creative Commons – que permitia o uso do conteúdo por terceiros (ver página 46). No dia seguinte, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) compareceu ao debate sobre políticas públicas para lan houses. Disse não saber as razões que levaram a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, a retirar a licença. “Quero saber se houve algum problema jurídico, algum problema técnico…”, disse ele. O problema, na verdade, é político, porque a orientação do governo federal e a atuação das redes brasileiras de cultura digital são favoráveis a políticas abertas e livres na internet.
Liberdade na internet também é preocupação de Rene Silva Santos, 17 anos. Ele criou o jornal Voz da Comunidade, do Morro do Adeus, uma das comunidades do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro: “Não havia nenhum jornal que publicasse informações da própria comunidade, só de fora”. O Voz da Comunidade é mensal, tem tiragem de mil exemplares e alcançou grande repercussão quando Rene, com seus companheiros de redação, todos entre 11 e 14 anos, relataram a ocupação policial do Morro do Adeus no Twitter. Em um debate sobre cultura digital e educação, cercado de educadores e especialistas que trabalham para entender o impacto da internet sobre a juventude e auxiliar os adultos a acompanhar seus filhos e alunos no uso da internet, Rene não deu corda a inquietações sobre os malefícios que podem estar “lá dentro” da rede. “Todo mundo deveria entrar na rede e aprender a usá-la”, disse aos participantes do debate, principalmente aos adultos. “A secretária de Educação do Rio, Cláudia Costin, criou um perfil no Twitter para conversar com os professores da rede municipal”, contou.
“Se as pessoas que hoje têm 50, 60 anos não entendem a internet, e se é a rede que tem o potencial de nos ajudar a salvar o planeta, mudar a política e a economia, transformar o mundo para melhor… de quem será o trabalho de mudar o mundo?”, perguntou Bem Hammersley a uma audiência na faixa dos 20 anos. Como “mudar o mundo” tem muitos aspectos, você pode escolher o que mais lhe interessa – desenvolvimento de software livre, empreendedorismo, educação, astronomia, transparência governamental – e dar uma olhada nos debates que ocorreram nos cinco dias de evento, ainda disponíveis na internet.
Steve Wozniak, cofundador da Apple, foi outro convidado internacional do encontro. “Fui a algumas outras Campus Party e percebi que esse tipo de evento seria onde eu estaria se eu estivesse crescendo hoje. Sendo eu o tipo de pessoa que sou, que acredita no que eu acredito, nos meus computadores, na interação com outras pessoas parecidas, eu estaria aqui, eu seria um campuseiro”, disse ele ao blog Link, do Estado de S.Paulo. “Eis a grande atração: jovens cheios de ideias que querem explorar o que eles querem estar fazendo neste mundo dos computadores, o que isso vai significar para eles, o quanto isso é importante para eles, que mudanças e diferenças eles podem fazer”.