A Teia – Mostra de Cultura e Economia Solidária reuniu os integrantes
dos programas Cultura Viva, do Ministério da Cultura, e Economia
Solidária, do Ministério do Trabalho e Emprego, durante quatro dias, em
São Paulo. O evento marcou o início da entrega dos kits multimídia.
Lino Bocchini
A alagoana Edna Constant contava a Patrícia Rodrigues, da Paraíba, da
experiência do projeto cultural por ela liderado em Maceió. Ao lado, o
paraense Frederico ouvia, quieto, para depois explicar às duas de que
forma grupo dele resgata a tradição dos folguedos em Vitória do Xingu.
Mais tímida, Cláudia Gama, do Museu do Marajó, localizado na enorme
ilha plantada na foz do rio Amazonas, apenas escutava. Ao final da
conversa, trocaram e-mails. Pronto. Um bate-papo, experiências
compartilhadas, contatos anotados e estava tecido mais um pedacinho da
teia.
Cenas assim se repetiram ao longo dos quatro dias da Teia – Rede de
Cultura do Brasil, evento realizado, em São Paulo, de 6 a 9 de abril.
Um gigantesco encontro que reuniu integrantes do programa Cultura Viva,
do Ministério da Cultura, e de projetos de Economia Solidária, apoiados
pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Na prática, os três pisos do
pavilhão da Bienal, no parque do Ibirapuera, transformaram-se no mais
diversificado mosaico de cultura brasileira já visto. Temperando tudo,
toques de tecnologia e inclusão digital, oficinas e seminários
coalhados de estudiosos e autoridades que tentavam explicar o fenômeno.
Linete quer produzir um CD de
música regional alagoana.
Cerca de 50 mil pessoas circularam pelos corredores do prédio, espaços
tomados de movimentação intensa e constante – mais de cem
espetáculos e 60 oficinas, muitas vezes, simultâneos. No centro das
atenções, 1,2 mil protagonistas dos Pontos de Cultura – programa do
MinC (Ministério da Cultura), que identifica e patrocina iniciativas
culturais locais –, além de 1,3 mil expositores das redes de economia
solidária. Uma overdose de informação. Num mesmo corredor, o visitante
apreciava xilogravuras de cordel cearense, ouvia o hip hop do Piauí,
provava docinhos de frutas de Goiás e assistia a um vídeo do carnaval
de rua da periferia de João Pessoa.
“Não é questão de dar o peixe, nem de ensinar a pescar”, disse o
ministro Gilberto Gil, a respeito dos grupos que participavam do
evento. “Falo, sim, de potencializar a ‘pesca’ que se faz há muito
tempo, em especial, nas áreas de risco social, nos territórios de
invisibilidade, nos grotões e nos guetos das grandes cidades
brasileiras, onde pulsam uma cultura e uma arte tão fortes, mas tão
fortes, que não há miséria, não há indigência, não há descaso ou
violência que as façam calar”. Samuel Diniz, de 20 anos, visitante que
encarou três dias de ônibus do Cariri, no Ceará, até São Paulo, dizia
ter valido a pena. “O melhor nem foi a oficina de software livre de
vídeo, muito boa para o nosso projeto. A grande oficina mesmo foi vir
aqui e ver toda essa gente, isso tudo aqui em volta. Mais um enredado
na teia”.
A realização da Teia também marcou o início da entrega de cem kits com
equipamentos digitais multimídia a Pontos de Cultura – atualmente, um
total de 445 entidades conveniadas. “Os cem primeiros, nós demos aqui
na Teia. A entrega atrasou, porque levamos um ano para comprar, foi
muito demorado. Pela lei de licitações, temos que licitar cada
equipamento em separado”, justifica o historiador Célio Turino,
secretário de Programas e Projetos Especiais do MinC.
Os primeiros kits foram para Pontos mais antigos e capacitados na área
digital, que se comprometeram a auxiliar os outros. “Para o restante,
vamos fazer diferente: aditamos o contrato em R$ 20 mil reais, e cada
um vai poder comprar o equipamento que for melhor para suas
necessidades”, diz Turino. Ele acredita que, dessa forma, além de
evitar novos atrasos, cada ponto poderá comprar os equipamentos
adequados à sua atividade – priorizando vídeo em detrimento do áudio,
ou vice-versa, por exemplo. “E esse repasse extra está garantido, sai
até junho”, garante.
Outra reivindicação de alguns Pontos diz respeito ao atraso no
pagamento das bolsas dos agentes do Cultura Viva. Até o fechamento
desta edição, ainda havia Pontos que, embora tenham se cadastrado em
novembro do ano passado, ainda não tinham recebido os repasses. “Num
programa de alcance nacional, problemas de gestão financeira são quase
inevitáveis; o importante é que sejam resolvidos depressa”, afirma o
secretário, acrescentando que isso já estaria acontecendo.
Banca com cordéis, para os
visitantes da Teia.
Por agente, o valor da contribuição, que se estende por apenas um
semestre, sem direito a renovação, é de R$ 900,00, desembolsados em
seis parcelas de R$ 150,00. “O atraso nos pagamentos, que são feitos
pelo Ministério do Trabalho, é coisa grave e, com certeza, se deve a
problemas de gestão. Mas a situação está sendo regularizada”, promete
Turino. No mês passado, a maioria do estudantes, segundo ele, já teria
recebido a terceira parcela. E o compromisso dos dois ministérios
envolvidos no programa é de que ninguém mais fique sem receber.
Um dos problemas para o pagamento das bolsas é de ordem burocrática – a
falta de documentação por parte dos agentes. “Muitos não têm CPF; e,
com isso, ficam impedidos de obter o cartão bancário, indispensável
para efeito de saques”, exemplifica o secretário. O programa reúne
cerca de 11 mil agentes, entre estudantes, líderes e agitadores
culturais, com idade entre 16 e 24 anos. Cada unidade do programa pode
receber até R$ 185 mil em repasses, por três anos, em parcelas
semestrais.
Ala Ursa
É uma soma que permitiu, por exemplo, que o ponto de cultura
Bananeiras, no bairro São José, área pobre de João Pessoa, conseguisse
praticamente reconstruir a tímida casa que lhe servia de sede. Entre as
ações do Bananeiras está a manutenção do Ala Ursa, tradicional bloco
carnavalesco de crianças daquela região da capital paraibana. Mas os
seus gestores, bem como dos outros Pontos de todo Brasil, estão mesmo
ansiosos é pela chegada dos kits multimídia.
Os kits incluem computadores, monitores, switch, duas impressoras,
filmadora e câmera fotográfica digitais, MD portátil e um conjunto de
áudio (mesa de som com doze canais, amplificador, seis microfones, um
microfone de lapela, dois fones de ouvido, pedestais e cabos). O
suficiente para produzir qualquer conteúdo de vídeo, áudio ou web e
alavancar o trabalho criativo.
Aos 15 anos, Samuca já era
diretor da TV local de Nova Olinda.
Um dos grupos mais entusiasmados com os novos equipamentos era o
pessoal do Ponto Fundação Casa Grande. A entidade fica em Nova Olinda,
cidade de 15 mil habitantes perto de Crato, no Cariri, interiorzão do
Ceará, e faz rádio e TV desde 1996. Os equipamentos que usam, hoje, são
doação antiga do BNDES, feita no começo da iniciativa. A segunda vez
que algum órgão do governo deu as caras na comunidade foi para fechar a
TV local, que retransmitia para Nova Olinda e cidades vizinhas. “A
Anatel lacrou o transmissor e queria levar todo o equipamento”, lembra
Samuel Diniz, o Samuca, que, na época, com 15 anos, era o diretor da
emissora. “Foi por pouco, mas conseguimos segurar a aparelhagem”.
Samuca tem 20 anos, faixa etária da maioria dos 70 jovens que mantêm a
fundação e que continuam a produzir vídeo. Mas, agora, a produção é
exibida no pequeno cinema da cidade e em TVs educativas.
A fundação organiza laboratórios e oficinas de música, vídeo, rádio,
editoração e histórias em quadrinhos. Para tudo isso, a turma de Nova
Olinda ainda não usa software livre. “Um dos motivos que nos trouxeram
aqui à Teia é para comprar essa idéia”, explica Samuca. Além disso, a
entidade não tem site. Aliás, em Nova Olinda, a internet ainda não
chegou. “Acesso meu e-mail quando vou à faculdade, em Crato”, conta o
rapaz. Fora o kit, a fundação anseia também uma antena do Gesac
(programa do Ministério das Comunicações), para entrar na rede e
construir sua homepage com o conteúdo que produzem.
A centenas de quilômetros dali, no litoral alagoano, a ansiedade pelas
novas ferramentas é a mesma, mas a finalidade é outra: preservar a
produção musical. “A idéia é gravar a música regional, tanto a
tradicional – o guerreiro, que só tem lá –, como a moderna, com
influência de tudo, da MPB ao rock”, explica Linete Matias, do Ponto de
Cultura Olha o Chico, de Piaçabuçu (AL), na foz do rio São Francisco.
“Depois, com essas gravações, vamos produzir um CD com os principais
compositores da região”.
Rituais do Xingu, em pleno
Ibirapuera.
Outro que não vê a hora de receber os equipamentos é Lula Gonzaga,
pernambucano que dedicou a vida ao cinema de animação. “Ensino o
desenho animado para os estudantes da rede pública e, através dele,
explico, por exemplo, porque aquela casa velha lá do centro de Olinda
tem valor e deve ser preservada”, diz Gonzaga. “Com o kit, vai melhorar
muito. Por exemplo: fiz um filme na cidade de Igaraçu com 40 alunos.
Para finalizar, fiquei 70 dias no Rio de Janeiro filmando em película,
que custa muito dinheiro e me obriga a ficar muito tempo fora. Com o
equipamento digital, vamos escanear tudo e finalizar no computador, pôr
o som lá, fazer até a capa do DVD. O filme sai pronto da máquina direto
para o projetor”, compara.
Autonomia
“É importante perceber que as pessoas não estão mudando de rumo com o
projeto ou com o kit”, afirma Cristiano Cabello, do Cultura Digital,
equipe contratada pelo MinC que, além de oferecer oficinas de
tecnologia para os Pontos, é uma das maiores ativistas do software
livre no Brasil. “As pessoas somam esse conhecimento digital ao que já
fazem”. Ou, como diz o coordenador do projeto, Célio Turino, “a maioria
dos trabalhos realizados nos Pontos de Cultura já existia antes do
apoio do governo, e continuarão existindo independentemente desse
apoio; e é assim que tem que ser”.
O que acontece é a articulação dessa produção com as tecnologias que
poderão lhe dar maior alcance e capacidade de expressão. Nesse sentido,
os debates realizados na Teia apontaram os principais eixos desse
movimento: a diversidade cultural, o acesso à internet e o software
livre –, numa perspectiva crescente de conhecimento compartilhado. “Ao
fabricar e vender o sapato, ele passa a não mais te pertencer. Com a
informação, é diferente: ao passá-la adiante, você não deixa de tê-la”,
afirmou, no evento, Ladislau Dowbor, professor da PUC de São Paulo.
Segundo André Lemos, professor da Universidade Federal da Bahia, são
quatro os fenômenos essenciais no mundo digital de hoje: os blogs (cada
um escreve o que quiser, sem precisar de um editor), o software livre
(o usuário mexe no código do programa), o ponto a ponto (permite trocas
de arquivos com outro computador) e o podcast (uma nova forma de
emissão sonora). “Todas essas mídias mostram que a visão não é mais
paternalista, de cima para baixo. Temos na mão o instrumento. Não é
preciso mais do Estado e de grana”, acredita.
O principal nome por trás do projeto dos Pontos de Cultura é Célio
Turino, secretário de Programas e Projetos Especiais do Ministério da
Cultura. Segundo ele, o Estado não pode se desobrigar da cultura, ele
tem papel fundamental no amparo e na sustentação da produção cultural.
No entanto, ressalta, o Estado não pode ser dirigista nem centralizador.
O orçamento do Cultura Viva, programa do qual os Pontos de Cultura
fazem parte, tem o maior orçamento do MinC, diz Turino. São R$ 48
milhões. Em 2004, o campo do orçamento do qual vem essa verba era de R$
5 milhões. “Ou seja, houve um aumento de 900% em dois anos”, destaca.
Muitas das dificuldades na gestão dos programas, na sua opinião,
derivam da estrutura elitizada da máquina estatal. “O Estado não está
preparado para atender esse povo das periferias, está preparado para
atender aos mais ricos, os de sempre, os rentistas, os grandes
fazendeiros. Estamos tentando mudar isso, mudar a própria postura da
burocracia”, diz. Nesse esforço, o MinC levou à Teia gente da
administração e da Controladoria da União, por exemplo. “Assim, eles
conhecem o que está além dos números e dos trâmites burocráticos.
Espero que, quando as pessoas voltarem, tenham uma visão diferente”,
explica Turino.
A visão diferente que se espera não é apenas a da administração
pública, mas da própria sociedade. “As pessoas se condicionaram a ver a
cultura apenas na aparência, nos espetáculos consagradados,
pré-definidos. Basta ver a cobertura da grande imprensa para a Teia.
Foi muito pequena, eles nem se dão ao trabalho de vir aqui, ver o que
está acontecendo. É um processo de alienação, de condicionamento de
informação, de martelação: isso é bom, aquilo lá que o povo faz é de
segunda, no máximo, uma açãozinha sócio-educativa, ou folclore”,
critica. E faz uma comparação com a exposição Dinos na Oca (de
esqueletos de dinossauro que acontecia também no Ibirapuera). “É uma
atração paga, e a nossa é gratuita. E, mesmo assim, tem mais fila lá do
que aqui. Mas onde um professor vai ter a oportunidade de mostrar para
o aluno uma dança do Xingu, uma música regional de Alagoas?”.