Acesso liberado

INFORMAÇÕES PÚBLICAS DEVEM ESTAR DISPONÍVEIS, COMO REGRA. E AS EXCEÇÕES
PRECISAM SER MUITO BEM JUSTIFICADAS. É O QUE DIZ A LEI.

PATRÍCIA CORNILS


ARede nº 80 – maio de 2012

NO BRASIL, tanto para cidadãos quanto para servidores públicos, o Estado tem uma faceta marcante e tristemente irônica: é visto como uma estrutura burocrática e inacessível, qual uma velha prateleira de documentos empoeirados onde é impossível encontrar informações com eficácia e agilidade. A partir do  dia 16 de maio, essa caricatura ganha outros traços. Por força de lei. Passa a vigorar, nessa data, a Lei de Acesso à Informação Pública (Lei 12.527/2011), debatida desde 2003, e sancionada pela presidente Dilma Rousseff em novembro do ano passado. A Lei de Acesso vem transformar o tratamento dado às informações recolhidas ou gerenciadas por prefeituras, governos de estado, pela União; pelas Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas e pelo Congresso Nacional;
pelos tribunais e procuradorias e pelas empresas públicas.

legações como “não posso divulgar esse dado”, “essa informação não está disponível”, “preciso consultar a chefia” não podem mais ser usadas. Porque, pela Lei de Acesso, a regra, no que diz respeito às informações públicas, é a publicidade. As informações “secretas” são estritas exceções, definidas por normas claras: dados pessoais e documentos imprescindíveis para a segurança da sociedade e do Estado (Ver página 16). Mais que isso: as informações de interesse público devem ser divulgadas ativamente, independente de solicitações dos cidadãos. E haverá punições – desde suspensão até processo por improbidade administrativa – para os servidores que não cumprirem essas determinações.
Esse avanço legislativo não é pouca coisa, observa Pedro Abramovay, ex-Secretário Nacional de Justiça. A Lei de Acesso proporciona uma transferência de poder do Estado para as pessoas. “A Constituição brasileira diz que ‘todo poder emana do povo e por ele será exercido’”, ressalta Abramovay. Nesse ponto, observa ele, nossa Constituição é diferente da de outros países democráticos, que dizem que o poder não é exercido pelo povo, e sim “em seu nome”. O direito de acesso à informação é fundamental para que os brasileiros exerçam seu poder, porque um cidadão bem informado tem melhores condições de conhecer e ter acesso a outros direitos essenciais, como saúde, educação e benefícios sociais. O acesso à informação abre portas para maior participação popular e maior controle social das ações dos governos. Essa cultura de transparência faz, indiretamente, com que os governos se aperfeiçoem.

Entre o texto da lei e a realidade, no entanto, há uma enorme lacuna. A Lei de Acesso estabeleceu um prazo de seis meses para a administração pública se preparar, antes de sua entrada em vigor. E esse prazo vence dia 16 de maio. É pouco tempo. Na Inglaterra, o prazo de preparação foi de cinco anos. A lei de acesso do Canadá valia, inicialmente, apenas para o Poder Executivo. E só no Poder Executivo Federal o prazo de implementação foi de um ano. A lei brasileira vale para todos os poderes e para todas as esferas de governo – municipal, estadual e nacional. Mas o esforço para implantá-la ainda é quase exclusivo do governo federal, onde a Controladoria Geral da União (CGU) foi encarregada do trabalho. Nos estados e municípios, a situação é muito diferente.

A organização não governamental (ONG) Artigo 19 fez uma pesquisa sobre a preparação para a Lei de Acesso em parceria com ONGs de 20 cidades com menos de 8 mil habitantes. Municípios como Cachoeira Dourada (GO), São João Del Rey (MG), Embu (SP) ou Mandaguari (PR). Recebeu uma única resposta, e mesmo assim
dizendo que nada estava sendo feito. A menos de 20 dias da entrada da lei em vigor, a Controladoria Geral do Estado (CGE) de São Paulo não deu informações sobre suas ações, alegando que “o assunto ainda está em estudo”.

Mesmo em estados onde já há uma estratégia e procedimentos concretos para implementar a lei – caso de Goiás –, a forma como é feita a divulgação das informações públicas mostra o despreparo da administração. A CGE de Goiás fez uma pesquisa para saber quantos, dos 36 sites do governo, atendiam os requisitos mínimos estabelecidos no artigo 8o da lei. Somente três – sendo que dois, apenas parcialmente – passaram no teste. O artigo 8o determina que
é dever dos órgãos e instituições públicas divulgar, em local de fácil acesso, informações de interesse coletivo ou geral. Que informações são essas? O registro das competências e estrutura organizacional de cada órgão público, endereços e telefones das respectivas unidades e horários de atendimento ao público; registros de quaisquer repasses ou transferências de recursos financeiros; registros das despesas; informações concernentes a procedimentos
licitatórios, inclusive os respectivos editais e resultados, bem como a todos os contratos celebrados; dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras de órgãos e entidades; e respostas a perguntas mais frequentes da sociedade.

No governo federal, a maioria dos ministérios designou uma autoridade responsável por monitorar a implementação – em Goiás, os titulares dos 52 órgãos públicos do governo do estado também vão indicar responsáveis. O governo federal trabalha para que cada órgão e instituição coloque no ar uma página específica sobre a lei, publicando todos os dados exigidos pelo artigo 8o. Cerca de 17 ministérios – da Educação, da Justiça, da Agricultura, da Previdência
Social, dos Transportes – e a CGU publicaram esses dados nos seus sites.

A lei também prevê a criação do Serviço de Informações ao Cidadão, que será o setor responsável por receber e processar os pedidos e orientar o público. Cerca de 20 ministérios estão com estrutura física pronta para receber esses pedidos de acesso e dar orientações aos cidadãos. Outro esforço é o de informação e capacitação dos servidores. A CGU treinou, por meio de curso presencial, aproximadamente 500 funcionários que trabalharão nos SICs federais. E acaba de abrir um curso de educação a distância para capacitar servidores em geral (a primeira turma teve cerca de 800 pessoas).

O esforço do governo federal, grande, se comparado ao que se realiza pelo país, é pequeno, considerando a demanda que a lei pode gerar. “Na CGU, uma equipe de 13 pessoas cuida do assunto”, constata o pesquisador Gregory Michener, especialista em transparência pública. “No México, o Instituto Federal de Acesso à Informação e Proteção de Dados tem centenas de funcionários. Para atender uma população de 112 milhões de pessoas, um terço a menos do que no Brasil”, diz ele.

A estrutura reduzida na CGU, apesar de a Lei de Acesso ser prioridade no governo federal, mostra que será preciso pressão da sociedade sobre o poder público para fazer as novas regras sairem do papel. Uma semana antes de a lei entrar em vigor, dia 8 de maio, não havia sido publicado o decreto para regulamentação
em nível federal. Além disso, o decreto de regulamentação da lei não entrou em consulta pública. Para Arthur Massuda, da Artigo 19, esse é outro indicador de como será difícil construir a cultura de transparência: “A consulta pública é um dos instrumentos de acesso previstos na lei. Deveria ter sido usada”. A regulamentação de uma lei serve para adaptar as determinações legais à prática. Diz como vão se resolver os conflitos gerados entre a lei e outras leis em vigor. Como serão organizadas as instâncias às quais o cidadão poderá recorrer em caso de negativa de acesso às informações. Todos os poderes, nas três esferas, precisam regulamentar a Lei de Acesso, por decreto ou projeto de lei.

“Com apenas seis meses para preparar a administração, o atendimento não se dará da forma ideal nos primeiros dias”, avisa Vânia Lúcia Ribeiro Vieira, diretora de Prevenção da Corrupção da CGU. Porque a lei entra em vigor sem que a administração pública tenha dado conta de um processo que inclui várias etapas – classificar as informações, adotar um sistema de gestão de documentos, implantar sistemas eletrônicos para registrar as solicitações, preparar suas bases de dados para publicação, criar o Serviço de Informação aos Cidadãos, regulamentar a lei, criar instâncias às quais os cidadãos vão recorrer. Porém, o cidadão poderá apresentar seu pedido de qualquer forma, “mesmo se o órgão não tiver implantado o seu Serviço de Informação ao Cidadão”, afirma Vânia.

Na cartilha que preparou para os servidores do governo federal, a CGU explica o que muda, de fato, na relação entre governos e cidadãos: “Em uma cultura de segredo, a gestão pública é pautada pelo princípio de que a circulação de informações representa riscos. O cidadão só pode solicitar informações que lhe  digam respeito direto; os dados podem ser utilizados indevidamente por grupos de interesse; a demanda do cidadão é um problema: sobrecarrega os servidores e compromete outras atividades; cabe sempre à chefia decidir pela liberação ou não da informação; os cidadãos não estão preparados para exercer o direito de acesso à informação. Em uma cultura de acesso, os agentes públicos têm consciência de que a informação pública pertence ao cidadão e que cabe ao Estado provê-la. Forma-se um círculo virtuoso: a demanda do cidadão é vista como legítima; o cidadão pode solicitar a informação pública sem necessidade de justificativa; são criados canais eficientes de comunicação entre governo e sociedade; são estabelecidas regras claras e procedimentos para a gestão das informações; os servidores são permanentemente capacitados para atuarem na implementação da política de acesso à informação.”

O interesse da sociedade pela lei começa a se manifestar, fora do governo. Entre as 768 propostas encaminhadas à Consocial nacional, pelas conferências realizadas em todo o país, 31 se referem à implantação da Lei de Acesso. O assunto, portanto, começa a ser debatido pela sociedade organizada. Também na consulta pública realizada dia 24 de abril pela Procuradoria Geral da União em todos os estados, para definir o plano estratégico do Ministério Público, o tema aparece. “A Lei de Acesso foi sugerida, por representantes da sociedade civil, como um tema que os procuradores devem cobrar dos gestores públicos”, diz Allan Mansur, procurador da República no Pará e diretor da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).

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